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Criticada por não dialogar sobre energia eólica, governadora petista do RN finalmente receberá movimentos sociais

Crédito:Davi Revoedo/Cáritas

Nenhum outro estado brasileiro produz mais energia eólica do que o Rio Grande do Norte. Os dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) indicam que, até 10 de maio deste ano, foram gerados diariamente 6,66 gigawatts-hora por 218 parques eólicos funcionando no território potiguar.

Toda essa atenção à energia renovável se dá em um estado governado por uma mulher negra, professora, sindicalista e filha de agricultores do interior da Paraíba. E não apenas isso: Fátima Bezerra foi a única mulher eleita governadora pelo Partido dos Trabalhadores em 2018, no auge do antipetismo.

Com esse perfil, seria de esperar que o processo de licenciamento e implantação dos parques eólicos no Rio Grande do Norte estivesse acontecendo com participação dos movimentos sociais, debate entre ambientalistas e gestores público, diálogo com as comunidades da pesca e da agricultura. A realidade, no entanto, é bem diferente.

De tanto receberem denúncias de agricultores e pescadores vizinhos a algum dos 2.325 aerogeradores operando no estado, ativistas de várias organizações e movimentos sociais tentam, desde o início do mandato da governadora do PT, encaminhar as demandas e pedir providências às autoridades estaduais. Aos representantes das comunidades e das entidades da sociedade civil, juntaram-se ambientalistas e um coletivo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). De nada adiantou.

Nenhum canal de diálogo foi aberto para se discutir a inexistência de zoneamento ambiental que defina onde pode e onde não pode instalar parques eólicos, os riscos à saúde provocados pelo funcionamento ininterrupto das torres, a destruição de nascentes d’água, os contratos abusivos impostos pelas empresas aos agricultores ou as restrições de circulação que prejudicam a atividade pesqueira. À exceção da Procuradoria Geral do Estado, que se colocou em defesa dos interesse das comunidades, o restante do governo estadual parecia alheio a tudo isso.

No dia 2 de março de 2021, parecia que as coisas iriam mudar. Segundo Maria das Neves Valentim, do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental no Rio Grande do Norte, naquele dia houve o primeiro e único contato formal com a equipe do governo. O encontro foi com a secretária-adjunta da Casa Civil, Maria do Socorro da Silva Batista. “Avaliamos a conversa como positiva, ela se mostrou sinceramente surpresa e admitiu que o governo não tinha conhecimento que os parques causavam tantos impactos negativos”, conta.

Otimistas, Maria das Neves e os demais ficaram à espera de um convite para os próximos encontros, provavelmente com o próprio secretário da Casa Civil, talvez com a própria governadora.

A prometida segunda conversa nunca ocorreu. Pelo contrário, pouco mais de três meses depois, no dia 17 de junho, a decepção: o Diário Oficial publicou um ato de Fátima Bezerra criando o Conselho Estadual de Política Energética apenas com paricipação de cinco secretários do prório governo, dois deputados estaduais, um representante de cada universidade pública, cinco especialistas em energia indicados pela governadora e aprovados pela Assembleia Legislativa, representantes dos empresários e um prefeito indicado pela Federação dos Municípios.

“Nenhum representante dos maiores prejudicados: pescadores, pescadoras e as famílias agricultoras. Nenhuma organização ambientalista. Nada”, critica a pesquisadora Moema Hofstaetter, do Laboratório Sociedades, Ambientes e Territórios, da UFRN.

Também ficou sem resposta a nota de repúdio emitida pela articulação de entidades como o Fórum Mudanças Climáticas, Comissão Pastoral da Terra, Comissão Pastoral da Pesca, Serviço de Assistência Rural e Urbana (SAR), Arquidiocese de Natal, Instituto Seridó Vivo, Rede Mangue Mar, ONG Oceânica, colônias de pescadores e pesquisadores na área de ecologia.

Rio Grande do Norte tem 218 parques eólicos com 2.325 aerogeradores Crédito: Davi Revoedo/Cáritas

Petista rompeu o silêncio

No dia 17 de maio, a Marco Zero entrou em contato com as assessorias de comunicação de duas secretarias (Gabinete Civil e Desenvolvimento Econômico) e do Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte (Idema), órgão de controle ambiental do governo potiguar. Logo em seguida a assessora especial da governadora assumiu a responsabilidade de centralizar as respostas às 11 questões – devidamente contextualizadas – enviadas pela nossa equipe de reportagem.

No diálogo mantido via WhatsApp com a assessoria especial, abriu-se inclusive a possibilidade de entrevistar algum representante do governo estadual. Todavia, dez dias depois do primeiro contato, não obtivemos nenhuma resposta, nem mesmo à oferta de negociar o prazo para o envio do retorno, pois avaliamos que o volume e a complexidade das questões demandavam tempo para serem respondidas.

Diante do silêncio, na quinta-feira, 26 de maio, informamos que a reportagem seria publicada, mas que a Marco Zero permaneceria à disposição para publicar o posicionamento governamental sobre o tema.

Quando a matéria estava prestes a ser publicada, representantes dos movimentos sociais informaram que o silêncio havia sido rompido. Primeiro, o senador Jean-Paul Prates (PT-RN) realizou uma conversa com as organizações, da qual o Fórum Mudanças Climáticas negou-se a participar. Em seguida, a governadora agendou um encontro formal para esta segunda-feira, 30 de maio, contando inclusive com a presença de Maria das Neves representando o Fórum.

A campanha da Cáritas

Estabelecer diálogo com os gestores públicos não é a única dificuldade do movimento popular para enfrentar as consequências negativas dos parques eólicos. Denunciar esse problema também não é fácil. “Os governos e os empresários vendem a ideia de que estão trazendo desenvolvimento econômico, mas na verdade estão fazendo o que sempre foi feito nos 522 anos de história do Brasil: usam os recursos do Estado para lucrar, passando por cima dos direitos e da vida dos trabalhadores, dos camponeses, dos negros, dos indígenas”, resumiu Moema Hofstaetter.

Foi por essa razão que a organização católica Cáritas Brasileira deu início a uma campanha para tentar ampliar o alcance das denúncias.

Uma série de pequenos documentários disponíveis no canal da Cáritas Regional no YouTube são exibidos junto com a exposição itinerante de fotografias montada em espaços públicos de Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Em Natal, as imagens foram expostas em meados de maio, no centro de convivência da UFRN, o coração da universidade.

A campanha não se resumiu a ações de comunicação. O assessor jurídico e de incidência política da Cáritas, Daniel Lins, já se tornou um rosto conhecido nas reuniões com pescadores e camponeses. “Os contratos caracterizam a relação desigual entre grandes empresários de um lado e pequenos agricultores do outro. Há diversas cláusulas abusivas, a começar pela cláusula de sigilo, que praticamente impede os camponeses de pedir ajuda caso se sintam prejudicados”, explica Daniel.

A Cáritas passou a distribuir um folder para os agricultores das áreas de interesse para os parques eólicos. Em linguagem bem acessível, o folheto desnuda os principais problemas enfrentados por aqueles que já convivem com os aerogeradores ou que cederam suas terras às empresas, com tópicos como: “Você não pode se arrepender”, “Você não pode decidir o que plantar ou como usar a propriedade” ou “E, ainda por cima, não vai ter desconto na conta da luz”.

A Cáritas também atua na organização e articulação política das comunidades. “O lobby das empresas junto aos poderes executivos e legislativos é muito forte. Por isso, também é necessário dialogar com parlamentares que podem contribuir para a construção de uma marco regulatório que garanta justiça socioambiental no modelo de transição energética, que hoje é muito permissivo às empresas”, explica Lins.

  • Se quiser conhecer o folder, é só acessar o arquivo em PDF:

Ameaças no sertão…

Quem vive da pesca, do cultivo de alimentos ou do turismo rural no semiárido potiguar deverá enfrentar mais dificuldades nos próximos anos. Outros 127 parques eólicos estão em construção no Rio Grande do Norte, pelo menos 23 deles em municípios da região do Seridó, a exemplo de Bodó, Currais Novos, Jardim de Angicos, Lagoa Nova e Parelhas.

Outros empreendimentos de energia eólica estão prestes a serem licenciados pelo Idema.

Um deles, cujo processo de licenciamento está em andamento no Idema, deverá ser erguido exatamente no território que, em abril deste ano, foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco).

Os geoparques são áreas que devem ser preservadas por causa da relevância para se conhecer a história do planeta Terra. No caso do Seridó, além das formações geológicas únicas, existem também 21 sítios arqueológicos de inscrições rupestres pouco estudados e os raros santuários ecológicos na caatinga com felinos, araras maracanã e papagaios verdadeiros.

É nesse geoparque que o Idema deve licenciar o parque eólico Cordilheira dos Ventos que, antes mesmo de ser licenciado, já foi parcialmente vendido pela Renova Energia à AES Brasil.

Caatinga na região a ser ocupada pelo parque eólico Cordilheira dos Ventos é santuário de papagaios. Crédito: Jorge Dantas

Depois de uma audiência pública no município de Cerro Corá, onde a equipe das empresas apresentou o relatório de um estudo cujas visitas de campo duraram apenas seis dias, a ONG Instituto Seridó Vivo mobilizou 92 especialistas, mestres e doutores de áreas tão variadas como Arqueologia, Geologia e Biologia para emitir uma nota técnica revelando a superficialidade do estudo e justificando porque a obra do Cordilheira dos Ventos não deve ser autorizada.

A nota técnica, cujo arquivo em PDF publicamos abaixo, foi ignorada pelo Idema.

Agora, as esperanças dos integrantes do Seridó Vivo estão depositadas na conversa de segunda-feira com a governadora Fátima Bezerra. O biólogo Damião Valdenor, integrante da ONG, explica: “Vamos tentar mostrar a ela a necessidade de definir um zoneamento no Rio Grande do Norte para os parques e convencê-la de não licenciar este e outros empreendimentos em um território tão sensível como o geoparque”. Valdenor admite que, por alimentar esperanças na mudança de postura, as organizações do movimento popular têm agido com cautela na relação com o governo estadual para: “Todos nós ajudamos a eleger Fátima, mas chega uma hora que tudo tem seu limite”.

…e novas ameaças no mar

Os pescadores e pescadoras do Rio Grande do Norte estão acompanhando a tramitação do Projeto de Lei 576/2021, que regulamenta a produção de energia eólica offshore. Em português, com os aerogeradores instalados em alto mar. Se a proposta do senador Jean-Paul Prates for aprovada, a vida da comunidade pesqueira deverá ser diretamente afetada.

O pescador Luís Ribeiro, da Comissão Pastoral da Pesca, espera mais dificuldades a serem criadas pelas empresas, cujos parques no litoral já provocam vários problemas, do eterno barulho igual a um “helicóptero que nunca pousa” até as cercas que impedem pescadores e suas famílias de chegarem à praia pelas trilhas usadas há décadas.

“Vou dar um exemplo: todos os anos, dezenas de barcos saem de Macau, no norte do estado, para a pesca da albacora no litoral perto da divisa com a Paraíba. No meio do caminho, já estão projetados vários parques marítimos, que terão zona de exclusão e vão obrigar os pescadores a gastar mais óleo diesel”, explica Ribeiro, mais conhecido no mundo da pesca como “Itá”.

O uso das redes de pesca que ficam à deriva no mar, esperando os peixes também está ameaçado: o mapa mostra que os parques projetados ficam na rota das correntes que levam as redes e os cardumes. “Se uma rede dessas for parar no meio do parque e enroscar-se nas torres, o pescador não vai poder entrar na zona de exclusão, a não ser que queira levar tiro ou ter o barco apreendido pelos seguranças”, desabafa.

Parques offshore já projetados para litoral do RN. Crédito: Ibama/MMA

Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.

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AUTORES
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.

Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.