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Davi contra Golias ou só mais uma construção moderna na Rua da Aurora?

Laércio Portela / 28/08/2020

O casarão número 987 da Rua da Aurora e o terreno vizinho onde será construída a nova sede da Associação do Auditores do TCE-PE. Crédito: Laércio Portela/MZ Conteúdo

Depois que o repórter relatou tudo o que havia apurado para escrever essa reportagem, do outro lado da linha a jornalista e cineasta Sandra Ribeiro emenda: “É uma luta entre Davi e Golias, você entende?”.

O Golias a que Sandra se refere é a Associação dos Auditores Externos do Tribunal de Contas do Estado. O Davi é ela mesma. No mito bíblico, Davi é um jovem pastor de Israel que derrota o gigante guerreiro filisteu Golias arremessando uma pedra em sua testa. Uma vitória inesperada, considerando a disparidade de forças na disputa.

Não parece que esse será o desfecho do embate entre Sandra e a Associação dos Auditores.

O marco dessa história é a lei 15.754 assinada pelo então presidente da Assembleia Legislativa, deputado Guilherme Uchôa, em 21 de dezembro de 2015. O texto trata da cessão do terreno público na esquina da Rua da Aurora com a Travessa do Costa, pertencente ao Tribunal de Contas do Estado, para a Associação de Auditores do TCE – uma entidade privada sem fins lucrativos – construir sua nova sede.

O terreno é vizinho ao casarão do século XIX pertencente à família de Sandra e onde ela mora com o filho Guilherme Ribeiro, 44. Lá funciona a ONG Aurora Filmes, que ofereceu por vários anos cursos de cinema para alunos da rede pública de ensino. Sandra vê a construção da sede da Associação como uma ameaça às estruturas do casarão e o comprometimento do que considera um “patrimônio da cidade”.

Em defesa da sua tese, ela traz numa pasta uma série de fotos antigas da cidade onde se vê o casarão à beira do Rio Capibaribe. É fácil identificá-lo pelas empenas em 45 graus do telhado, bem visíveis, já que ao longo de décadas não houve qualquer construção no lado que dá para a Travessa do Costa.

Mas essa paisagem deve mudar nos próximos meses. Há duas semanas, a Associação subiu um muro em torno do terreno e deu início às escavações, justamente depois de ser questionada pela Marco Zero sobre a nova sede. Atualmente a entidade funciona num espaço alugado perto dali, na Avenida Mário Melo.

O projeto, de térreo e primeiro andar, é assinado pelo escritório Rangel Moreira Arquitetura, um dos mais badalados do Recife.

Rangel tem em seu currículo edifícios de “alto padrão” construídos nos bairros de Casa Forte, Apipucos, Tamarineira, Jaqueira (Recife), na Reserva do Paiva (Cabo) e também em Caruaru. Muitos deles premiados. É do escritório também o projeto de home center da Ferreira Costa.

“A sede da entidade dos auditores vai dialogar com as construções já presentes e com a paisagem local e valorizar o passeio público da Rua da Aurora, um dos mais belos endereços do Recife”, é o que diz material de divulgação no site oficial da entidade. “Também utilizamos elementos no traçado que remetem ao Monumento Tortura Nunca Mais, localizado na Praça Padre Henrique, logo em frente ao terreno”, explica o arquiteto Luiz Rangel.

Desenho da nova sede da Associação dos Auditores do TCE-PE ao lado do casarão 987 da Rua da Aurora.

Siri na lata

“Eu sou cabeça dura, sabe? Muita gente já me disse: ‘Sandra, não brigue com eles não porque eles são barra pesada’. Mas eu sou tinhosa, sabe? Desde criança minha avó dizia que eu era siri na lata”, conta. Nessa briga, ela já mobilizou a Justiça, o Ministério Público, a Prefeitura do Recife e a Defensoria Pública do Estado.

Na Justiça, são três processos: ela é ré no que tramita na 10a Vara Civil da Capital. Trata-se de uma ação de reintegração de posse. A Associação diz que a área de trás da casa de Sandra pertence originalmente ao Tribunal de Contas e faz parte do terreno cedido à entidade de representação dos auditores.

Sandra se revolta com essa demanda. Hoje com 61 anos, mostra fotos ao lado da mãe e da avó quando ainda era criança nos anos 1960 no quintal de trás da casa comprada em 1930. Ela fez uma reforma em 2005 e transformou o quintal num estúdio de vídeo e fotografia para as aulas da Aurora Filmes. Criada em 2006, a ONG se manteve até 2016 com recursos do Funcultura, mas de lá pra cá não foi contemplada nos editais e passou a oferecer cursos particulares.

“Uma casa do século XIX não tem terraço, tem quintal. Isso é arquitetura portuguesa de época, toda casa tem quintal. Eu transformei o meu quintal num estúdio para uma ONG do audiovisual. Eles estão dizendo que eu tomei essa área, que pertence a eles. Já fizeram três projetos arquitetônicos diferentes. No primeiro, simplesmente apagaram a minha casa e, agora, no último, estão incluindo meu quintal”, reclama Sandra.

Na sequência: fachada do casarão em 1992; Guilherme, filho de Sandra, sozinho no quintal de trás da casa e no carrinho com a mãe de Sandra (final dos anos 1970); Sandra com a avó (1963). Na última, Sandra e amigos, com Guilherme no colo (1978). Todas imagens no casarão 987. Crédito: Arquivo Familiar/Reprodução

Em 2004, o projeto de reforma do casarão proposto pela moradora foi aprovado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) com parecer do então superintende regional Frederico Faria Neves de Almeida. “A iniciativa de restauração, visando sua preservação, é louvável, uma vez que propõe o resgate de uma imagem da cidade em determinada época… O projeto em si atende aos critérios básicos de preservação adotados pelo Iphan e se constituirá em elemento de destaque no contexto urbano local caracterizado pela ocupação de edifícios habitacionais de grandes gabaritos”, explicou na época.

Sandra construiu o estúdio, mas, por falta de recursos, não completou toda a reforma, que previa mais um ambiente no primeiro andar da casa. “Se obtive autorização da Prefeitura para fazer a obra em 2005 como é que agora querem dizer que essa área não me pertence?”, questiona.

Sob pressão

A jornalista vai além. Conta que durante décadas o terreno onde será construída a sede da Associação fazia parte da casa da sua avó, que cultivava plantas e mantinha um galinheiro. O terreno teria sido tomado e o muro derrubado por homens enviados pelo TCE reclamando a propriedade, em 1995. De lá pra cá, o espaço ficou sendo utilizado como estacionamento de carros de funcionários do Tribunal.

“Já fui agredida verbalmente e tenho sofrido muita pressão. Já ouvi muitas ameaças. Pressionaram até os estagiários do projeto da Aurora Filmes. Essa pressão já começou lá atrás com minha mãe e minha tia. Eles estão nos perseguindo faz muitos anos. Uma perseguição que passa de geração em geração.”, queixa-se.

Sandra aponta para a parte dos fundos de sua casa, que a Associação diz pertencer ao TCE. Crédito: Laércio Portela/MZ Conteúdo

Ela aguarda o fim da pandemia para uma nova audiência na 10a Vara Cível. Acusa a Associação de pressioná-la para assinar um documento concordando com a obra. “Eu perguntei para o juiz se eu era obrigada a assinar e ele disse que não”, conta. “Eles estão fazendo que nem o ministro Ricardo Sales (Meio Ambiente) disse que faria, naquela reunião com Bolsonaro, aproveitando a pandemia para passar a boiada. Estão iniciando a obra sem a autorização da Justiça”, acusa.

A Associação contesta o discurso da ilegalidade. “Não existe atualmente ordem judicial ou de qualquer outra natureza impedindo que seja realizada a construção da sede da Associação. Todos os pedidos formulados pela proprietária vizinha nesse sentido foram negados pelo Judiciário, em duas ações judiciais distintas, o que demonstra a falta de razão jurídica no seu pleito, já que não existe direito que permita ao vizinho impedir a construção em bem alheio pela sua mera vontade”, informou em resposta à reportagem.

Também contesta a pressão e as ameaças. “Jamais houve qualquer espécie de constrangimento para que a proprietária vizinha assinasse algum documento formulado pela Associação. Ocorreram apenas tratativas legítimas entre as partes, dentro do processo judicial, para a formalização de um acordo que conciliasse os interesses das duas partes e possibilitasse a construção da sede da Associação”.

As respostas da Associação aos questionamentos da MZ Conteúdo

A falta de entendimento atrasou o cronograma inicial da obra e o primeiro alvará de construção concedido pela Prefeitura, válido até novembro de 2019, perdeu o prazo. Teve que ser renovado. O atual vale até 27 de fevereiro do próximo ano.

A Associação corre contra o tempo mais uma vez. Com custo de R$ 650 mil, “recursos privados oriundo das contribuições dos associados”, a obra tem estimativa de 8 meses para ser concluída, a partir do seu início, segundo informação repassada pela entidade.

Pedido indeferido

Na 18a Varia Cível da Capital tramita ação de abril de 2019 em que Sandra pede a suspensão, por liminar, do início das obras por colocar em risco o casarão 987 e, na análise do mérito, que a Justiça proíba em definitivo a construção do prédio. Na 4a Vara da Fazenda Pública da Capital corre uma ação popular, também de autoria de Sandra, questionando a legalidade da doação do terreno público do TCE para a Associação por não enxergar “interesse público” na ação.

Em decisão de 14 de junho de 2019 o juiz Djalma Andrelino Nogueira Júnior indeferiu o pedido de liminar por não considerar que houve na cessão qualquer dano ao patrimônio público. Sandra recorreu da decisão. O advogado que a defendia nas três ações na Justiça deixou os casos e a jornalista procurou a Defensoria Pública do Estado para assistí-la nesses processos.

O caso chegou ao Ministério Público, em 2017, por meio de inquérito civil instaurado pela 20ª Promotoria de Justiça de Cidadania da Capital (Habitação e Urbanismo) e arquivado em dezembro do mesmo ano. Ainda em 2017, o tema foi recebido como “notícia de fato” pela 13ª Promotoria de Justiça de Cidadania da Capital (Defesa do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico-Cultural) e arquivado em fevereiro de 2018.

De acordo com a assessoria de comunicação do MPPE, esse segundo processo foi arquivado por conta de parecer da Diretoria Executiva de Controle Urbano do Recife (Dircon) informando que “o imóvel de número 987 da rua da Aurora não se encontra em área de Zona Especial de Preservação Histórico-Cultural e tampouco possui características para ser classificado como Imóvel Especial de Preservação”.

Casarão descaracterizado

Em maio de 2017, Sandra entrou com pedido de avaliação do imóvel na Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural da Secretaria de Planejamento Urbano do Recife com o intuito de tê-lo reconhecido como Imóvel Especial de Preservação. Seis meses depois, recebeu a resposta negativa da gerente geral do órgão, Lorena Correia Veloso. “Essa diretoria não identificou os valores necessários para a classificação do referido imóvel em IEP, devido, principalmente, ao seu nível de descaracterização”.

A Lei municipal 16.284 define como IEPs “exemplares isolados, de arquitetura significativa para o patrimônio histórico, cultural e/ou artístico da cidade do Recife, cuja proteção é dever do município e da comunidade nos termos da Constituição Federal e da Lei Orgânica Municipal”. Para um imóvel ser declarado IEP é preciso lei específica da Câmara Municipal do Recife.

Nem tudo foi derrota para a moradora até aqui. No ano passado, a procuradora Eleonora de Souza Luna levou o tema para debate na reunião do Conselho Superior do Ministério Público e votou pelo reconhecimento do interesse do MPPE para investigar o pedido feito por Sandra Ribeiro contra a obra da sede. Na ocasião, ela se posicionou pela falta de atribuição da 13a Promotoria e pelo encaminhamento do caso para a 20a Promotoria da Capital. Segundo a assessoria do MPPE, a ação está em “procedimento preparatório, em análise”.

No voto por escrito, a procuradora cita parecer da Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural da Prefeitura do Recife em que nega o pedido de Sandra Ribeiro para transformar o casarão em Imóvel Especial de Preservação, mas informa que existem estudos em andamento na cidade que o insere no polígono de preservação do bairro de Santo Amaro.

“Ora, se há estudo de preservação do polígono do bairro de Santo Amaro, encontrando-se o imóvel situado nesse trecho, é incompatível a construção de prédio moderno colado no casarão, que vai lhe obscurecer, retirando toda a beleza de uma edificação antiga”, argumenta a procuradora, remetendo o caso para a 20a Promotoria para “se inteirar de tal projeto arquitetônico e, dentro das regras urbanísticas para construção de imóveis novos, lutar pela preservação de imóveis antigos da cidade do Recife, que são testemunha da vida em sociedade em tempos passados”.

Segundo a Marco Zero Conteúdo apurou, o estudo de preservação de Santo Amaro está parado na Prefeitura, enquanto avançam pelo bairro os projetos de prédios de alto gabarito implantados pelo setor imobiliário privado. A reportagem tentou contato com a assessoria da Secretaria de Planejamento Urbano e encaminhou email com a demanda por informações, mas não obteve resposta até a publicação desse texto.

Obras em andamento

O fato é que, enquanto o caso permanece em procedimento preparatório no MPPE, 1 ano e meio depois de ser encaminhado pela procuradora, e tramita em três ações na Justiça, Associação vai iniciando a obra sem obstáculos legais.

Foto recente do terreno vizinho ao casarão 987, cercado e com a placa da construção. Crédito: Laércio Portela/MZ Conteúdo

Operários já começaram a preparar o terreno para a construção da sede.

A entidade diz que a nova sede “não implicará em destruição, danos estruturais ou descaracterização do imóvel vizinho”. Alega que o projeto, aprovado e licenciado pela Prefeitura do Recife, “leva em consideração a estrutura do imóvel vizinho e observa a necessidade de sua conservação, assim como dos demais imóveis do entorno”. Garante que o prédio não será construído colado ao casarão e que será levantada uma parede independente, separada da parede vizinha.

Preservação em perspectiva

Procurada pela reportagem para fazer uma avaliação sobre o caso, a professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, Vera Milet, especialista em preservação, concorda com o laudo do DPPC.

Com base em fotos e documentos enviados pela Marco Zero, ela argumenta que “a edificação que restou possui apenas característica volumétrica de um imóvel do século XIX. Perdeu todos os elementos que podem assegurar a classificação do imóvel como IEP. Nas imagens enviadas, observei que todos os elementos de fachada como modenatura, frisos e ornatos foram removidos”, analisa.

Mas, assim como o laudo do Iphan de 2004, Vera destaca a presença da Aurora Filmes no casarão. “Mais recentemente, o imóvel adquire importância cultural pelo trabalho que nele vem sendo desenvolvido. Mas o imóvel pode permanecer íntegro do ponto de vista estrutural se alguns cuidados forem tomados, como laudo técnico de engenheiro e recomendações necessárias para evitar problemas estruturais (com a obra da sede). É também necessário o registro praticamente diário de todos os danos que possam ocorrer”, sugere.

Vera alerta para a total descaracterização da quadra onde está o casarão, ocupada por prédios de alto gabarito construídos na segunda metade do século XX. São quatro edifícios de 20 andares ou mais, um ao lado do outro (Montreal, Iemanjá, Capibaribe e Alfredo Bandeira). Na esquina da rua da Aurora com a Rua Capitão Lima, fechando a frente da quadra, encontra-se a nova sede da Rede Globo, num prédio moderno inaugurado em janeiro de 2018.

Foto aérea de 1970 da quadra onde fica o casarão 987, do lado esquerdo da imagem, na sombra do Edifício Montreal. Crédito: Arquivo

Registro da Rua da Aurora em meados do Século XIX

O engenheiro civil José de Britto Silva Júnior estudou o desenvolvimento da quadra a pedido de Sandra. Segundo ele, todos os terrenos ocupados pelos quatro edifícios possuem 44 metros de fundo. Ele presume que o terreno original do casarão da família da jornalista também teria originalmente os mesmos 44 metros. Hoje são 31 metros. “Os antigos moradores ou mesmo os avós de Sandra devem ter vendido parte do terreno”. Quanto à área do estúdio, reivindicada pela Associação, Britto repete o mesmo argumento de Sandra de que a Prefeitura aprovou projeto da reforma incluindo o antigo quintal.

Ele contesta a posição do DPPC, da Prefeitura do Recife, que negou a designação de Imóvel Especial de Preservação para o casarão. “Existe um princípio básico nas construções antigas de que as empenas dos telhados seculares são intocáveis. Mesmo porque estão desaparecendo e as autoridades deviam garantir uma distância de 500 a 1000 metros delas. A construção da sede vai ocultar 90% dessa beleza estética que o casarão apresenta para a cidade. As autoridades não podem ser omissas e devem rever a autorização dessa obra. A Associação pode encontrar um outro lugar para a sede”, defende o engenheiro, chamando a atenção de que “o casarão 987 é o único e último na Rua da Aurora com tipologia de uso residencial e uni-familiar”.

Mobilização

Sandra tentou mobilizar os moradores da Travessa. São 15 casas originalmente construídas, segundo ela, para acolher os trabalhadores de uma antiga empresa de azulejos da família Brennand. Chegou a convidá-los para uma reunião, mas eles não compareceram. “Acho que têm medo, receio de entrar nessa briga”.

Uma coisa é certa: os moradores estão acostumados com as mudanças no entorno da vizinhança. Depois da Rede Globo, a sede da Associação é só mais uma. Na quadra por trás da Travessa, em todo o quarteirão do cruzamento da Avenida Mário Melo com a Rua da Fundição, vai ser construída a maior igreja da Assembleia de Deus de Pernambuco e uma das maiores do Brasil. O complexo religioso tem previsão até de hotel e, certamente, afetará todo o movimento na área.

Apesar de tantos reveses, Sandra segue a sua luta. “É Davi contra Golias, você entende?”.

AUTOR
Foto Laércio Portela
Laércio Portela

Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República