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Distrito Guararapes: testemunho da crise civilizatória

Marco Zero Conteúdo / 11/11/2025
Foto aérea da Avenida Guararapes, no centro do Recife, em um dia ensolarado. A imagem mostra uma ampla via com faixas exclusivas de ônibus e diversos coletivos circulando ou parados nos semáforos. De ambos os lados, há prédios altos e antigos, muitos com fachadas em tons claros e arquitetura das décadas de 1940 a 1960. Árvores espaçadas aparecem nas calçadas e, ao fundo, é possível ver o mar e parte da área portuária da cidade. A cena transmite a sensação de uma região central, histórica e urbanizada, mas com pouco movimento de pedestres e veículos.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

por Norma Lacerda*

Há alguns dias foi veiculada, nos meios de comunicação MarcoZero, OxeRecife e Folha de Pernambuco, artigo da minha autoria cujo título remete à ação incivilizada praticada pelo poder público: a revogação da Lei dos Doze Bairros. Aqui estou, novamente, denunciando mais uma: o projeto Distrito Guararapes, concebido à luz dos interesses corporativos imobiliários.

Importa iniciar a conversa afirmando que existem várias eras do capitalismo. A passagem de uma era para outra sempre foi capitaneada por elites com o apoio da chamada base científica da humanidade. A era mais próspera do capitalismo foi no pós guerra quando ocorreu – nos países com ditos elevados níveis de cultura e com o que se acredita ser potencial de desenvolvimento – um equilíbrio entre o setor público e o mundo empresarial, dando origem ao Estado do bem-estar social. Perdurou até os anos 1960, quando emerge o neoliberalismo e, com ele, o avanço de mecanismos violentos de apropriação da riqueza produzida pelos trabalhadores.

No Brasil, embora tenha ocorrido, ao longo do século XX, a implantação de um sistema de proteção social, este foi caracterizado por grande seletividade e desigualdade social. Tais qualificações tomaram maior dimensão após os anos 1990 com a abertura econômica do país. Não sem razão, o Brasil consta na lista dos dez países mais desiguais do mundo. O Recife é frequentemente listado entre as capitais com maior desigualdade.

A continuidade da seletividade e desigualdade ocorreu respaldada no aparato regulatório do Estado que, entre outras medidas, normatizou o funcionamento das parcerias público-privadas (PPP – Lei nº 11.079/2004) e dos sistemas financeiros imobiliários (várias leis). Neles foram introduzidas inovações, ou seja, mecanismos para a ampliação de ganhos rentistas fundamentados na valorização imobiliária.

O projeto Distrito Guararapes, uma PPP – cuja elaboração foi financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Urbano e Regional (BNDES) – insere-se neste contexto nacional. A ele se soma a recente dinâmica socioespacial vivenciada pelo centro histórico do Recife. Este centro tem sido, sobretudo a partir do anos 2000, objeto de benesses ofertadas ao setor privado. Entre elas ressaltam-se: (i) redução, desde 2006, de 60% do ISS às empresa de tecnologia da informação e comunicação (TIC), economia criativa (EC) e educação que se instalam na área de abrangência do projeto Porto Digital; (ii) alienação via leilão de terrenos (2008) da União, situado no Cais José Estelita, para um gigantesco empreendimento imobiliário; (iii); cessão de terreno, também da União (2012), a um consórcio de empresas para implantação – ao longo da faixa litorânea dos bairros do Recife e São José – de bares, restaurantes, museu, hotel, centro de convenções etc (iv) promulgação da Lei Recentro (2021), estabelecendo benefícios fiscais às empresas que recuperam imóveis destinados às atividades de turismo, lazer e habitacional nos dois citados bairros e no de Santo Antônio.

Acrescente ainda as recompensas estabelecidas pela Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) de 2025, aos proprietários que se habilitarem a construir ou a recuperar imóveis na centralidade histórica recifense.

Nada disso encorajou a recuperação de imóveis em Santo Antônio. Era preciso ir além, inovar para atrair o setor imobiliário. Escolheu-se então uma ampla porção territorial de Santo Antônio para ser disponibilizada, durante 30 anos, a uma concessionária – a vencedora da licitação, a quem caberá executar obras, gerir ativos imobiliários e operacionalizar serviços. Custará aos cofres municipais R$ 310 milhões de reais. Serão objeto da concessão: 16 hectares de espaço público e 14 edificações a serem desapropriadas pelo poder público.

À concessionária caberá (i) elaboração e execução das melhoria do espaço público (R$ 135 milhões de reais), o que inclui implantação de vias compartilhadas, ciclovias, deques flutuantes e recuperação de praças; (ii) realização de retrofit de 14 imóveis (194,3 milhões de reais), sendo 12 destinados à habitação de interesse social (HIS) e dois à instalação de edifício garagem e de cinemateca. Trata-se, portanto, de uma mega operação financeira-imobiliária, custeada com recursos públicos.

A concessão do espaço público significará que determinados lugares não serão de livre circulação de todos os recifenses, pois serão explorados economicamente por meios de eventos. Farão parte da receita da concessionária. O espaço público será entregue sem pudor aos interesses corporativos para a extração de renda.

Quanto às moradias, nos 12 imóveis a serem retrofitados, serão financiadas pelo Programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV). Nada de serem custeadas no âmbito da própria operação imobiliária. Nada de dividir ganhos, nada de ações distributivistas. Ademais, o anúncio de habitação de interesse social (HIS) é um engodo. O projeto propõe que as moradias sejam reservadas para famílias com até 7,9 salários mínimos, ou seja, até R$ 11.992. Segundo o IBGE, famílias que recebem esse montante de rendimento encaixam-se na classe social B (R$ 8.300 a R$ 26.000), ou seja, remete a segmentos da classe média.

Em suas linhas centrais, o objetivo do projeto é transformar o bairro de Santo Antônio em “um centro de negócios” – aliás, estas palavras estavam lá, no site do BNDES (2023) – sem que fosse aventada qualquer iniciativa de caráter distributivista, o que, com certeza, contribuirá para uma sociedade ainda mais desigual. Pensar que o projeto em questão foi custeado por esta instituição financeira – um banco de desenvolvimento econômico e socialé no mínimo inquietante. Mais inquietante ainda é pensar que – no caso do projeto seguir em frente – provavelmente contará com o apoio financeiro desta instituição para viabilizá-lo.

Indiscutivelmente, há a necessidade de “fazer uma embolada”, ou seja, algo para a população pobre “sair da lama e enfrentar os urubus.Esse algo remete à urgência do Estado não se deixar capturar exclusivamente pelas forças do mercado e, com a participação da sociedade, promover ações distributivistas. Isto significa procurar um equilíbrio entre, de um lado, ações que impulsionem a recuperação da centralidade histórica recifense e, de outro, garantam a permanência da população ali residente e até mesmo ampliem o ingresso de novos habitantes por meio da locação social, além daqueles previstos na PPP Morar no Centro.

*Professora do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE e integrante da Academia Pernambucana de Ciências (APC)

AUTOR
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Marco Zero Conteúdo

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