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A receita brasileira para sabotar o favorito ao Nobel da Paz de 1972

Samarone Lima / 22/02/2016

palacio-itamaratyA diplomacia brasileira que atuava para o regime militar na Noruega conseguiu desenvolver, a partir de dezembro de 1970 (quando os primeiros documentos oficiais são enviados de Oslo ao Palácio do Itamarati, em Brasília), uma fórmula quase matemática de “neutralizar” às sucessivas candidaturas do arcebispo Dom Helder Câmara ao Prêmio Nobel da Paz.

Foi usando esta “fórmula”, que Dom Helder foi derrotado em 1970 para o hoje obscuro Norman Borlaug. No ano seguinte, para o chanceler alemão Willy Brandt. Nas duas disputas, o brasileiro era apontado como o franco favorito, pela mídia internacional, graça ao apoio de uma rede internacional que envolvia parlamentos, sindicatos, federações, organizações de direitos humanos e figuras de renome mundial.

Para 1972, não havia mais o que inventar. Era só seguir a receita dos anos anteriores, que consistia basicamente em:

  • Descobrir, o mais rápido possível, o nome dos candidatos aprovados pelo Comitê do Prêmio Nobel (para isso, bastava acionar o onipresente empresário norueguês Tore Munck, que hora estava no Brasil cuidando dos seus negócios com os militares, hora estava na embaixada em Oslo, entregando papéis secretos do Nobel);
  • Caso o nome de Dom Helder Câmara estivesse na lista oficial dos candidatos, a embaixada brasileira mandaria um “documento secreto”, alertando para o fato, com um aviso final: “Ele aparece como o mais provável vencedor”, ao lado de algum outro candidato importante.
  • Surgiria, então, o alerta máximo para iniciar o processo de ‘neutralização” do arcebispo brasileiro, que duraria alguns meses. Envolveria produção de dossiês, entrega de materiais confidenciais repletos de calúnias a membros do Comitê Nobel, artigos em revistas no Brasil e na Noruega, demonizando Dom Hélder Câmara, descrevendo-o como um homem perigosíssimo, quase um Che Guevara de batina.
  • Aguardar temerosamente o resultado final. Comemorar sua derrota, como acontecera em 1970 e 1971.
  • Avaliar os motivos que levaram Dom Helder Câmara, favorito nas duas candidaturas, à derrota (neste caso, autoelogios explícitos).
  • Acionar o radar para a listagem do ano seguinte, sempre com a frase: “No próximo ano, Dom Helder virá mais forte.”

A máquina diplomática brasileira puxou a fórmula do bolso dia 28 de fevereiro de 1972, quando a temporada do Nobel da Paz daquele ano começava.

Num ofício com o carimbo de “secreto” o embaixador Jayme de Souza Gomes informa que, por meio de “pacientes indagações junto a personalidades ligadas à Comissão Especial do Parlamento Norueguês”, conseguiu fazer um panorama detalhado sobre a posição dos principais candidatos. Era o ponto 1 da fórmula.

nobel medalhaEra preciso, agora, seguir o segundo: identificar na lista dos candidatos, com a devida urgência, as três palavras que mais atormentavam a ditadura brasileira naquele momento: Dom Helder Câmara.

“Segundo informações colhidas em fontes merecedoras de crédito, e embora guardadas as devidas reservas por tratar-se de assunto extremamente sigiloso, foi todavia possível apurar-se que, (…) dentre os quais figura, pela terceira vez, o nome de Dom Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife.”

Era preciso avaliar as condições dos principais concorrentes.

“Apontam-se os nomes do economista e pacifista francês Jean Monnet, dos padres católicos norte-americanos Philip e Daniel Berrigane e da escritora e jornalista norueguesa Elise Ottesen-Jensen, para só mencionar os pretendentes que parecem reunir maiores probabilidades de êxito na competição”.

A exemplo dos anos anteriores, a embaixada brasileira elenca os cinco membros da Comissão Especial do Parlamento da Noruega, encarregados de escolher o Nobel da Paz. Estes cinco nomes definiam qualquer vencedor.

Asse Lionaes (presidente do “Lagting”, Câmara Alta do Parlamento), que é a presidente da Comissão Nobel;

Bernt Ingvaldsen (presidente do “Storting”, parlamento), membro da Comissão Diretora do Partido Conservador e vice-presidente da Comissão Nobel;

Helge Refsum (juiz do Tribunal de Justiça da cidade de Bergen);

Sjur Lindebraecke (diretor do conselho de administração do “Bergens Privatbank);

John Sannes (presidente do Instituto de Política Exterior da Noruega, sediado em Oslo).

Espionagem requintada

Este ano, em especial, a diplomacia brasileira parece ter refinado sua máquina de coleta de informações junto à Comissão do Parlamento. São revelados até os nomes e funções dos assessores, que darão suporte à comissão:

Professor Prebe Munthe (consultor em História Política);

Jakob Sverdrup (consultor em Economia Social Social);

Torkel Opsahl (consultor em Direito Internacional).

A revelação do nome dos consultores indica também o que poderá acontecer, nos próximos meses, quando cada candidato tiver a sorte ou infelicidade de ser escolhido. Havia uma enorme diferença, por exemplo, entre Prebe Munthe e Jakob Sverdrup, que também trabalharam na eleição de 1971.

Prebe Muthe fora o encarregado de dar o parecer sobre um dos maiores cientistas brasileiros, o homem que publicara, em 1946, um estudo clássico intitulado “Geografia da Fome”, reconhecido internacionalmente. Sobre ele, Munthe não se preocupou sequer em buscar um pouco de informação, muito menos em ser delicado:

“Um ponto, entretanto, está esclarecido: ele deixou o Brasil depois do Golpe de Estado em 1964, e ele vive atualmente em Paris”, escreveu o relator.

Aos demais membros do Nobel, soou como se o brasileiro não tivesse gostado daquele espetáculo desagradável, então arrumou suas malas e foi viver em Paris.

Na verdade, Josué de Castro era o embaixador do Brasil na ONU, em 1964, mas estava em seu país, quando os militares deram o golpe militar. Ele foi o décimo homem a ter os direitos políticos cassados, por 10anos, e foi imediatamente destituído da representação diplomática. Diante de sua importância, vários países lhes abriram as portas. Ele escolheu a França.

Morreu dia 24 de setembro de 1973, aos 65 anos. No exílio, comentou com amigos:

“Não se morre só de enfarte, ou de glomero-nefrite crônica… morre-se também de saudade”.

Jakob Sverdrup era mais dedicado. No ano anterior, fora encarregado do parecer sobre Dom Helder Câmara, um texto delicado e comovente, de 16 páginas, contando a vida do arcebispo, desde o nascimento, em 7 de fevereiro de 1909, em Fortaleza, no Ceará, até aquele momento, em que era um dos principais favoritos ao Nobel da Paz.

“A sua coragem pessoal é indiscutível. Ele possui prestígio e importância, o que faz com que a sua mensagem seja ouvida, tanto no Brasil, como fora do território nacional”, diz ele, ao final do seu parecer.

A embaixada brasileira precisa, sempre, saber os nomes dos principais adversários de Dom Helder. Faz parte da estratégia.

“Com as devidas reservas de notícias filtradas através de discreta e arriscada cooperação de personalidades ligadas a esta embaixada, procurarei destacar, em rápida súmula, a análise das possibilidades dos mencionados candidatos”, diz o embaixador brasileiro, que a cada ano parece ampliar sua capacidade de acompanhar tudo o que se passa nos bastidores do Prêmio Nobel da Paz.

Após a “arriscada cooperação”, os cinco favoritos para o Prêmio de 1972 são listados e comentados pelo embaixador:

Dom Helder Câmara;

Jean Monnet;

Philip e Daniel Berrigan;

Elise Ottesen-Jensen.

Para o consulado brasileiro em Oslo, a Comissão Nobel, após realizar sua primeira reunião anual, já tem dois favoritos: Dom Helder Câmara e o economista francês Jean Monnet. Com a ressalva de sempre:

“O primeiro parece merecer a preferência da Comissão Parlamentar”.

E uma informação nova, que parece modificar o cenário político dos interesses do Brasil na derrota:

“Conforme foi acentuado no parágrafo final do ofício número 37/72, evidencia-se cada ano mais difícil a ação desta embaixada no sentido de obstar a vitória do candidato Helder Câmara”.

A ditadura brasileira voltou a vencer a batalha contra o arcebispo de Olinda e Recife, desta vez de forma surpreendente. Talvez pressionada de todos os lados, a Comissão declarou não haver vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 1972.

O jogo sujo explicitado

Neste ofício que é o último obtido pela Comissão da Verdade de Pernambuco junto ao Itamaraty, a diplomacia brasileira já não tem mais pudores em analisar o jogo sujo que realizou, longe dos holofotes e dos jornalistas. Mas, após três anos de sucesso, a preocupação agora é de não continuar se repetindo.

“De fato, os argumentos utilizados nos dois últimos anos tiveram o fim precípuo de tornar polêmica a figura do prelado brasileiro aos olhos da Comissão Nobel, mas não podem ser repetidos “ad infinitum”, observa Jayme de Souza, que participou das três campanhas de “neutralização”.

Em 28 de fevereiro de 1972, ele mesmo explica em seus relatórios verborrágicos o que foi feito para tirar as chances de Dom Helder.

1970:

“O arcebispo brasileiro foi apresentado como antigo nazi-fascista, dados os seus laços do passado com a extinta Ação Integralista Brasileira, circunstância que o incompatibilizou, até certo ponto, nos círculos ligados à Comissão Nobel, pelos ressentimentos da ocupação do país pelas forças alemãs durante a II Guerra”.

1971:

“Foi sobretudo realçada a ameaça que pairava sobre os capitais noruegueses investidos no Brasil pelo eventual risco de sua expropriação, nacionalização ou ainda estatização, caso fosse vitoriosa a candidatura do Arcebispo de Olinda e Recife, pelo aumento de seu prestígio junto às classes populares brasileiras, sua ambição política e a sua liderança na ala progressista da Igreja Católica do Brasil”

“Outro argumento empregado foi a tentativa de demonstrar sua deficiente cultura econômica, ao serem contrarrestadas (sic) as duas sistemáticas críticas à política econômico-financeira dos três últimos governantes do Brasil. Esse objetivo foi atingido pela discreta efusão, dentro aos membros da Comissão Nobel do Parlamento Norueguês, da monografia de autoria do padre Felix A. Morlion, O.P., intitulada “A dialética política de Dom Helder Câmara”.

1972:

O objetivo principal da embaixada este ano, após conseguir alcançar seu objetivo e “dividir” o Comitê, é o de “evitar a suspeita de qualquer interferência do Governo brasileiro ou de sua representação diplomática neste país”.

“Acredito que a ação desta embaixada terá que limitar-se, este ano, ao atento acompanhamento do desenrolar dos acontecimentos ligados à escolha do Prêmio Nobel de 1972, na esperança de que seus esforços, empreendidos nos anos 1970 e 1971, ainda sejam capazes de deter, ou pelo menos minorar, a pertinaz campanha dos adeptos de Dom Helder Câmara neste país e no exterior, que não se deixarão abater enquanto o Arcebispo de Olinda e Recife não receber a glória de ser, por fim, um galardoado com o Prêmio Nobel da Paz”.

Todos os documentos citados nesta série de matérias do Marco Zero foram obtidos pela Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara junto ao Itamaraty, e disponibilizadas neste endereço:

http://200.238.101.22/docreader/docreader.aspx?bib=Nobel&pasta=Premio%20Nobel%20da%20Paz

Dom Helder desiste

heldersAs correspondências secretas da embaixada brasileira em Oslo, fornecidas pelo Itamaraty à Comissão da Verdade, se encerram em 28 de fevereiro de 1972. Neste ano, não houve vencedor do Nobel da Paz.

Em 1973, no entanto, Dom Helder continuava firme na disputa, pela quarta vez consecutiva. Sua indicação partira do próprio Willy Brandt, que o derrotara em 1971, com o apoio do de mais 40 membros do Partido Social Democrata, em Bonn.

“Há uns teimosos insistindo em campanha nacional em torno do Nobel da Paz”, escreveu Dom Helder, em 31 de abril de 1973. “Fiz de tudo o que estava ao meu alcance para evitar, o que me parece, só terá resultados contraproducentes”.

Durante este ano, o tema do Nobel da Paz apareceu várias vezes em suas “Cartas Conciliares”, que escrevia nas madrugadas e mandava aos colaboradores mais próximos.

Em 17 de outubro de 1973, ele volta a escrever:

“As Agências Telegráficas Internacionais me interpelam, dizendo que, às vésperas do Nobel da Paz de 1973, sou apontado como favorito indiscutível. Respondo, amável, que todos os dias, vemos em corridas de automóveis, em partidas de futebol, em corridas de cavalos, “favoritos” serem superados…”

“Os irmãos Barrigan – Filip e Daniel – me escrevem dizendo que devo saber que sou o favorito absoluto do Nobel da Paz 1973. Eles me transmitem um apelo, dizem, em nome de milhões: o prêmio, vindo, que eu o rejeite como protesto por haver o Comitê de Oslo aceito a candidatura de Richard Nixon… Respondi-lhes dizendo que o Nobel da Paz jamais chegou a preocupar-me”.

A “candidatura de Richard Nixon” era como Dom Helder se referia a um dos concorrentes de 1973, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kissinger.

Bem humorado em sua carta, ele prossegue:

“A vocês eu digo: na eventualidade de o prêmio vir, enquanto depender de mim nem admitirei gozações em cima de Nixon, tipo a América curvou-se ante ao Brasil…”

O resultado oficial foi surpreendente. Os vencedores foram Henry Kissinger e Le Duv Tho, líder do Vietnã do Norte, por terem facilitado o cessar-fogo na Guerra do Vietnã.

“Que eu não ganhe o Nobel da Paz, entendo e aceito sem problema. Me parece que o Pai esteja decidido a tirar-me de caminhos mais humildes e simples. Mas – sem julgar intenções – Nobel da Paz para Nixon, é demais…”

Ao saber que seu “querido compadre”, Francisco Mooren, tinha criado, há Holanda, o grupo de amigos “Ação D. Helder Câmara”, para fazer propaganda de sua candidatura ao Nobel de 1974, Dom Helder resolve escrevê-lo, para dissuadi-lo da ideia.

“Agradecendo, de coração, tanto trabalho incalculável da Ação D. Helder Câmara, como as adesões que muito me honraram, venho pedir-lhes que não insistam: desistam”, diz, numa carta escrita em 17 de outubro de 1973.

O motivo era a violência da máquina repressiva no Brasil, que só aumentara, desde a sua primeira candidatura, em 1970.

“No momento em que lhes escrevo, cinco colaboradores meus estão “desaparecidos”. Não é impossível que, amanhã, sejam apresentados como tendo reconhecido e confessado que Organizações nossas, como a Operação Esperança, estão ligadas à subversão e ao terrorismo…”

E as últimas palavras de Dom Helder encerram esta longa jornada, que envolveu os esforços de milhares de pessoas, em várias partes do mundo, para que ele tivesse sido eleito, em algum momento, o Prêmio Nobel da Paz.

“O apoio, encorajamento que vem de você é o melhor Nobel da Paz. Isto sem esquecer, em plano infinitamente mais alto e mais profundo, o consolo que Deus nos dá de sofrer um pouco pela justiça e o serviço de um Mundo mais respirável e mais humano”.

Prêmio Popular da Paz

Em 10 de fevereiro de 1974, Dom Helder Câmara finalmente chegou a Oslo para receber o Prêmio Popular da Paz, criado pela Liga Norueguesa da Juventude, com apoio do Movimento Trabalhista, sindicatos e partidos, indignados com a não premiação ao Nobel da Paz ao brasileiro.

Na solenidade, o reverendo Gunnar Stalsett, secretário-geral do Conselho das Relações Exteriores da Igreja da Noruega, informou que o nome de Dom Helder tinha sido apresentado novamente à Comissão Nobel, com o apoio de 450 parlamentares de diversos países europeus.

Em seu discurso, ele falou do que sempre o moveu, com ou sem Prêmio Nobel :

“O prêmio que me confiais, eu o porei a serviço destes sonhos, destas Utopias. Será uma ajuda para a nova guerra – sem violência – pela Humanização do mundo”.

AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.