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Dono da Natural da Vaca era o maior beneficiário de desvio do dinheiro do Leite Para Todos, aponta a PF

Inácio França / 21/07/2025
A fotografia mostra uma cena ao ar livre, com fundo de grama seca e folhas espalhadas. Em primeiro plano, vê-se uma mão segurando um copo de vidro, que está sendo preenchido com leite. O leite está sendo derramado de uma jarra de vidro transparente, captada no momento em que o líquido branco flui para dentro do copo. A imagem foca nos detalhes do leite sendo servido, com espuma se formando no topo do copo. A luz do dia realça o brilho do vidro e a cor branca do leite.

Crédito: Couleur/Pixabay

A Polícia Federal indiciou 40 pessoas pela formação de organização criminosa especializada em fraudar e desviar recursos federais do Programa de Aquisição de Alimentos/Leite, o Leite Para todos, gerido em Pernambuco pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Agrário.

Em seu relatório final, a delegada Bianca Alves de Oliveira afirma que, pelo menos desde 2014, o grupo se estruturou “em núcleos, cada qual com seu distinto papel e posição”, cometendo delitos contra a saúde pública, corrupção passiva e ativa, peculato, estelionato, falsidade documental, obstrução à justiça e lavagem de dinheiro.

Remetido para a 24ª Vara Federal de Pernambuco como parte do processo 0801794-30.2024.4.05.8302, o relatório confirma e aprofunda aquilo que a delegada havia adiantado à Justiça para justificar os mandados de prisão, busca e apreensão na segunda operação policial, realizada em junho de 2023.

Os dois principais núcleos apontados no relatório são formados por seis homens. O grupo dos “líderes” é, na verdade, uma dupla de empresários: Paolo Avallone e Francisco Garcia Filho. A PF os indiciou por eles desempenharem “papel de proeminência na organização criminosa, não só confabulando o esquema delituoso, mas dele possuindo total domínio dos fatos, desde o nascedouro”. A atenção e os esforços dos policiais se concentraram sobre esses dois.

Abaixo deles na hierarquia da organização, estão os “gerentes”. São outros quatro nomes: Geraldo Fernandes Lobo Nogueira, Domingos Sávio Neves Tavares, Marcelo Ladislau Pereira de Alcântara, Márcio Mastroiane Lins da Costa. Ligados diretamente aos empresários “líderes”, eles seriam “os responsáveis por gerir o esquema criminosa e mantê-lo em pleno andamento”.

Entenda como funcionava a fraude, segundo a PF

O Programa de Aquisição de Alimentos/Leite (PAA/Leite) prevê que governos estaduais contratem organizações da agricultura familiar para fazer a coleta, pasteurização, embalo e transporte do leite para os pontos de distribuição. O leite deve ser distribuído para “famílias em insegurança alimentar e nutricional” e merenda escolar. Ou seja, os recursos do programa que em Pernambuco recebeu o nome de Leite Para Todos é destinado para pequenos produtores, não para financiar o agronegócio ou grandes indústrias.

De acordo com o Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE), a Polícia Federal, a Controladoria Geral da União (CGU) e a Receita Federal, a Natural da Vaca, com ajuda da Planus Representações, se apropriou de, no mínimo, R$ 93,7 milhões que seriam destinados á agricultura familiar. Para isso, as empresas contaram com três cooperativas “de fachada”, que foram contratadas pelo Governo do Estado entre 2014 e 2023, mas que, com inúmeros documentos e recibos falsos, repassavam os recursos para as duas empresas.

Um chefe influente e participativo

O empresário Paolo Avallone é dono de cinco empresas e já teve como sócios primos e um tio da governadora de Pernambuco, Raquel Lyra (PSD). Até 2021, foi casado com a atual procuradora-geral do estado, Bianca Ferreira Teixeira, prima de Raquel. O casal está divorciado há, pelo menos, três anos.

De acordo com a PF, todas as empresas do holding Natural da Vaca foram usadas para fraudar e lavar dinheiro público obtido ilegalmente.

No relatório, fica evidente que a polícia não tem dúvidas de que Avallone não era um sócio distante, alheio ao que acontecia no seu grupo empresarial: “a cadeia do processo produtivo da Natural da Vaca Alimentos Ltda, por meio do qual são praticadas fraudes na composição do leite integral, com o consequente fornecimento de produto de qualidade nutricional baixa, está sob controle de Paolo Avallone”.

O tal “processo produtivo” da Natural da Vaca está no centro do processo judicial porque, segundo a delegada Bianca Oliveira, “por meio desta empresa que são praticadas as outras condutas criminosas, como falsidade documental, crime contra saúde pública, obstrução à Justiça, demonstradas em relatório parcial anterior, além de estelionato, peculato, corrupção e lavagem de dinheiro”.

As perícias nos documentos e equipamentos eletrônicos que estavam em poder do empresário, apreendidos nas operações policiais de novembro de 2022 e junho de 2023, teriam abastecido os investigadores com provas em fartura. Com as informações obtidas, foi possível determinar que ele atuava diretamente e era o maior beneficiário das fraudes.

Avallone controlava o caminho dos milhões que saíam dos cofres do governo estadual para as contas das cooperativas do esquema, controlada por funcionários de sua empresa ou da Planus, e, de lá, para as contas de suas empresas. O dinheiro pago a Coopeagri, por exemplo, depois de várias transferências, retornava para outra conta da instituição no Banco do Brasil.

Ao final, era retirado em diversos saques de até R$ 4.999,00 numa agência em Chã Grande, município a 265 quilômetros de Itaíba. Esse procedimento era adotado para confundir fiscais e auditores, algo típico de operações ilegais. As mensagens trocadas por Avallone com os “gerentes” da organização criminosa e seu principal cúmplice, Francisco Garcia, segundo a PF, não deixam dúvidas de que ele coordenava tudo.

Mesmo assim, em seus depoimentos, o empresário tentou colocar a culpa no presidente da cooperativa “fantasma” de Itaíba, Severino Pereira da Silva. Porém, a PF afirma ter encontrado provas de que esse homem era remunerado para atuar como “testa de ferro” da organização. Pereira da Silva também figura na lista de indiciados e, ao ser interrogado, desmentiu o empresário: “o presidente da Coopeagri afirma quem teria ficado com o dinheiro era Paolo”.

Outras mensagens indicam que Avallone autorizou a “compra” de 200 cadastros falsos de agricultores familiares forjados por um funcionário do Instituto de Pesquisa Agronômica (IPA). Cada cadastro custava R$ 50,00. O servidor também está entre os 40 indiciados no inquérito. Os cadastros eram usados para simular pagamento a pequenos agricultores.

A PF encontrou grande quantidade de recibos em branco, já assinados com assinaturas falsificadas, nos escritórios da Natural da Vaca. Muitos desses recibos estavam em nome de produtores de leite falecidos há décadas – esse aspecto secundário do esquema, aliás, mereceu mais atenção da mídia pernambucana do que o fato da fraude ter sido executada com o uso de uma das maiores indústrias de laticínios do estado.

Defesa reafirma inocência e questiona investigação

Responsável pela defesa de Paolo Avallone, da Natural da Vaca e dos funcionários da empresa indicados pela PF, a advogada Sandrele Jorge, do escritório cearense Valença e Associados, respondeu aos questionamentos da Marco Zero. Ela questionou o relatório da PF como sendo “mero relatório de indiciamento, sustentado por elementos frágeis e questionáveis, sem contraprova técnica ou
metodologia adequada na coleta de provas”.

Segundo a defensora, “o que existe até o momento são indícios não consolidados, muitos deles obtidos sem observância aos critérios legais e científicos necessários para comprovar irregularidades. A defesa apresentará, nos autos, a contestação detalhada desses pontos, demonstrando a inocência dos
investigados”.

Na mesma nota, reproduzida na íntegra abaixo, a advogada critica a Polícia Federal pelo que considera ser um “vazamento seletivo de informações”. “A espetacularização de uma investigação que deveria tramitar em sigilo está causando danos irreparáveis à imagem de pessoas inocentes, colocando em risco empregos e a sobrevivência de uma empresa legítima”, afirma.

Leia abaixo a nota da defesa de Paolo Avallone e da Natural da Vaca:

Em nota oficial, a defesa dos sócios da empresa Natural da Vaca rebate as acusações veiculadas na imprensa sobre suposta participação em fraude alimentar, organização criminosa e irregularidades em contratos públicos. Os advogados destacam que as alegações repousam sobre um mero relatório de indiciamento, sustentado por elementos frágeis e questionáveis, sem contraprova técnica ou metodologia adequada na coleta de provas.

Desse modo, o que existe até o momento são indícios não consolidados, muitos deles obtidos sem observância aos critérios legais e científicos necessários para comprovar irregularidades. A defesa apresentará, nos autos, a contestação detalhada desses pontos, demonstrando a inocência dos investigados.

A Natural da Vaca, seus sócios e funcionários construíram reputação ao longo de anos de trabalho, com um portfólio diversificado de clientes — inclusive de grande porte — sendo que os contratos com a cooperativa (esta que tinha contratos com ente público e não a empresa) representavam menos de 10% do faturamento mensal antes da operação, a qual inclusive causou crise em parte dos negócios. A espetacularização de uma investigação que deveria tramitar em sigilo está causando danos irreparáveis à imagem de pessoas inocentes, colocando em risco empregos e a sobrevivência de uma empresa legítima.

As contestações técnicas aos laudos apresentados, incluindo a impugnação de eventuais irregularidades processuais, estão sendo adotadas com a observância do devido processo legal.

Por fim, a defesa critica o vazamento seletivo de informações, reforçando que a presunção de inocência é um princípio constitucional e confia que, ao final, a Justiça reconhecerá a ausência de fundamento nas acusações e a inocência dos sócios, que sempre agiram dentro da legalidade, da transparência, com respeito à saúde pública, regras sanitárias e jamais coadunaria com qualquer conduta diferente disso.

O outro nº 1

Avallone e Francisco Garcia Filho, o outro empresário que comandava o esquema, já se conheciam. A PF constatou que a Natural da Vaca fornecia laticínios para a Planus na época em que a empresa era contratada pelo Programa Fome Zero, de 2003 a 2010, e como fornecedora de merenda escolar da rede de ensino de Pernambuco.

Para se ter ideia do grau de confiança que existe na relação entre eles, ao longo do período em que a organização chefiada pela dupla atuou desviando dinheiro público, R$ 47,5 milhões foram transferidos da indústria de laticínios para a Planus de Garcia.

Sem nota fiscal que atestasse a razão de tamanha movimentação financeira, a delegada Bianca Oliveira quis saber o porquê, mas “Paolo Avallone não soube esclarecer a razão de remeter dinheiro de sua empresa para a empresa de Garcia”. Foi o que o industrial respondeu e está registrado no relatório.

Por isso, a Polícia Federal cravou que Garcia Filho “tem posição de superior hierárquico na esfera de tomada de decisões, destacando-se ainda como um dos maiores beneficiados com os recursos desviados”.

Com experiência em contratos com órgãos públicos, a função de Garcia Filho era cuidar de tudo que dizia respeito à Coopeagri: receber recursos da Secretaria de Desenvolvimento Agrário em nome da cooperativa, prestar de contas, pagar impostos, manter documentação atualizada, fazer a contabilidade e fazer os pagamentos de R$ 10 mil mensais a Severino Pereira da Silva, que, ao menos “no papel”, presidia a instituição.

Garcia era o procurador da Coopeagri junto à secretaria estadual e o escritório da Planus no bairro do Cordeiro, zona oeste do Recife, garantia a estrutura para a existência jurídica da pequena cooperativa de Itaíba. A PF resume assim: “a gestão da documentação da Coopeagri era direcionada a partir de orientações de Francisco Garcia, mediante o uso da estrutura da Planus Administração”.

No inquérito policial, as provas disso estariam em “inúmeros documentos e mensagens de celular em que o próprio Garcia trata com seus funcionários sobre títulos e pagamentos que precisam ser efetuados mediante dinheiro da Coopeagri”.

Nem sempre a relação com o presidente da instituição de Itaíba foi amena. Áudios e mensagens encontradas nos celulares dos participantes do esquema indicam que, em novembro de 2020, quando a fraude era cometida há seis anos, Pereira da Silva se mostrava insatisfeito, sentindo-se usado por Avallone.

Veja a transcrição dos áudios obtidos pela PF:

Print de transcrição de um áudio com o seguinte conteúdo: Em 19/11/2020, SEVERINO envia um áudio para GERALDO, o qual segue transcrito: “Gera, não é que... o SÁVIO e o GARCIA disseram que vinham pra aqui hoje e não vieram. Eu só tenho você... pra me proteger... e Deus, né?! (ininteligível) Ah, porque queria que eu mandasse aquele negócio (ininteligível). Eu trabalho... Eu, toda a vida, sobrevivi, então... dez conto veio! que ele me dá por mês lá na cooperativa, que ele usa minha cooperativa, eu gasto mais de vinte com o pessoal aqui. (ininteligível) dessa porra, eu cancelo essa (ininteligível) e acabou-se. Agora não venha tirar onda pra cima de mim. Dá para arrumar meio mundo de gente e não sei o quê. (telefone no fundo começa a tocar) Sávio tá me ligando aqui.” (Áudio 1)

Crédito: Reprodução/Polícia Federal
Print de transcrição de áudios com o seguinte conteúdo: Em seguida, SEVERINO manda outro áudio: “Gera, que eu tava mandando áudio pra tu, aí GARCIA tava ligando. Eu disse: ‘GARCIA, eu não tou atrás disso não. Eu sou um homem de trabalho, vivo de trabalho. Eu não tou atrás de gente pra juntar coisa e... (ininteligível). Artele disse: ‘Não, eu vou ver aqui uma ajuda financeira pra você.’ ‘Sim, tá certo, não tem problema’. Quando eu tava falando com tu ali, ele ligou (ininteligível) ele disse que vinha pra cá hoje, não veio. Não, não tem problema. Deixe que eu me viro. (...)” (Áudio 2); No dia seguinte (20/11/2020), ele manda três áudios, dos quais só se conservou o último. Segue transcrição: “Viu, GERALDO?! (???) esse negócio aqui, vou cancelar. Tou aqui com a minha família toda reunida aqui. Eu vou cancelar esse negócio da cooperativa. Segunda eu vou no cartório aqui, não quero saber de ‘bobônica’, disso mais não. Deixe que... eu não quero saber... é muita gente pra eu estar sustentando e pra tá... que PAOLO me prometeu o céu e as estrelas naquele tempo. Disse: ‘Pele, não sei o quê, não sei o quê.’ Pronto, tá certo. Tudo bem. Hoje ele tá rico e eu fiquei ‘fudido’. Então, eu vou... segunda-feira já vou no cartório aqui. JOZUEL tá aqui mais eu já. Vou lá e dou baixa. Eu não quero... eu vou cancelar... (...) os outros se dá bem, coisa e tudo e eu só tomando no cu. Quero saber mais não. Cabou-se. Podem arrumar outro aí. Se já arrumaram também não sei, mas eu não quero mais não. Não tou pra isso mais não.” (Áudio 3); No dia seguente, SEVERINO aparenta demonstrar arrependimento: “Geraldo ter mandado cabeça quente bicho segunda Vo aí”

Crédito: Reprodução/Polícia Federal

O que diz a defesa de Francisco Garcia

João Vieira Neto, advogado que representa Francisco Garcia e a empresa Planus no processo, respondeu ao pedido de qual seria o posicionamento dos seus clientes. Por meio de nota, o defensor afirma ter recebido “com surpresa o teor do relatório policial, vem esclarecer que todos os fatos serão devidamente debatidos perante a Justiça Federal, nas cercanias do devido processo legal, da ampla defesa e do efetivo contraditório, de modo a acreditar fielmente na justiça, com o condão de demonstrar a lisura, execução efetiva e idoneidade da empresa e de seu sócio”.

Leia abaixo a nota da defesa de Francisco Garcia Filho:

O Advogado João Vieira Neto, que patrocina os interesses e a defesa da empresa PLANUS ADMINISTRAÇÃO E PARTICIPAÇÕES LTDA e do Sr. Francisco Garcia Filho, por tudo o quanto veiculado na imprensa local sobre a investigação conduzida pela Polícia Federal, em Pernambuco, relativa à contratação, prestação de serviço e o fornecimento de leite, por programa governamental, recebendo com surpresa o teor do relatório policial, vem esclarecer que todos os fatos serão devidamente debatidos perante a Justiça Federal, nas
cercanias do devido processo legal, da ampla defesa e do efetivo contraditório, de modo a acreditar fielmente na justiça, com o condão de demonstrar a lisura, execução efetiva e idoneidade da empresa e de seu sócio.

Recife-PE, 17 de julho de 2025.

Essas são as reportagens publicadas pela Marco Zero em 2023 a respeito das operações policiais contra o esquema de fraudes contra o programa Leite Para Todos:

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.