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Mesmo depois de operação policial, Raquel Lyra renovou benefícios e isenções fiscais para a Natural da Vaca

Inácio França / 06/07/2023

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

A investigação que vinha sendo tocada sigilosamente pela Polícia Federal sobre a fraude no programa federal de aquisição de alimentos em Pernambuco tornou-se pública em novembro de 2022, quando a Justiça expediu 36 mandados de busca e apreensão no Recife e em oito cidades do interior. Na época, os nomes dos investigados não foram divulgados, mas as fontes oficiais informaram que o foco era desvio de dinheiro em contratos de fornecimento de leite geridos pela Secretaria de Desenvolvimento Agrário durante o governo Paulo Câmara.

O tema parecia um prato cheio para Raquel Lyra (PSDB), que pôs fim a 16 anos de hegemonia dos socialistas em Pernambuco ao ser eleita governadora um mês antes. Ela, no entanto, limitou-se a reafirmar no Twitter a promessa de reabrir a delegacia especializada em crimes de corrupção.

Seis meses depois, na terça-feira 13 de junho, mais uma operação conjunta da PF, Receita Federal e Controladoria Geral da União, desdobramento da anterior, fez seis prisões, cumpriu outros mandados, quebrou sigilos telefônicos e bancários. Dessa vez, com a informação pública de que, durante os últimos oito anos do PSB à frente do estado, uma empresa privada – a Natural da Vaca – teria desviado milhões de recursos públicos a partir de um contrato entre o governo e uma cooperativa fantasma.

Para uma governadora que costuma responsabilizar seu antecessor pelos problemas do estado, como fez algumas vezes durante a entrevista ao programa Roda Viva, na segunda-feira, 26 de junho (veja aqui e aqui), era de se esperar que ela e seus aliados usassem o fato para desgastar ainda mais os adversários, tentando capitalizar politicamente a investigação policial. Nada disso ocorreu.

Acontece que, no intervalo entre as duas operações policiais autorizadas pela Justiça Federal, a governadora Raquel Lyra renovou os benefícios e isenções fiscais da Natural da Vaca. No dia 28 de abril deste ano, o Diário Oficial publicou o decreto 54.662, atualizando os “estímulos” do Programa de Desenvolvimento do Estado de Pernambuco (Prodepe) concedidos à indústria “Nutrir Produtos Lácteos Ltda. atualmente denominada Natural da Vaca Alimentos Ltda”.

O Prodepe é um programa criado em 1995, pelo então governador Miguel Arraes, que prevê um pacote de incentivos financeiros e isenções fiscais de até 100% de impostos estaduais, principalmente o ICMS, para “atrair e fomentar investimentos na atividade industrial”.

O texto do decreto do governo Raquel informa que uma reunião do comitê diretor do Prodepe , no dia 21 de março, assegurou a renovação dos benefícios a uma empresa investigada de desviar dinheiro que deveria beneficiar proprietários rurais de baixa renda e garantir leite para a população mais vulnerável. Apesar da informação não ter sido divulgada para a imprensa, o foco das investigações já não era segredo para ninguém, pois, àquela altura, a maior parte dos suspeitos já tinham constituído advogados e o conteúdo do relatório da auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE) nº 21100872-2 era conhecido pelas autoridades pernambucanos há, pelo menos, um ano.

Laços de família

No entanto, os nomes das autoridades que assinam o decreto talvez ajudem a explicar o motivo do silêncio da governadora tucana. Além de Raquel Lyra, assinaram a extensão do benefício o secretário da Fazenda, Wilson José de Paula, o secretário da Casa Civil, Túlio Vilaça Rodrigues e a procuradora geral Bianca Ferreira Teixeira. Dos quatro signatários do documento, ao menos três têm ou já tiveram vínculos com a Natural da Vaca e seu atual sócio majoritário, Paolo Avallone.

A começar pela governadora. Vale lembrar que a Cooperativa dos Pecuaristas e Agricultores de Itaíba (Coopeagri) entrou na lista de fornecedores do Governo de Pernambuco em agosto de 2014, ou seja, no período de oito meses em que João Lyra Neto foi governador, completando o mandato de Eduardo Campos, após sua renúncia para concorrer à presidência do Brasil. Na época, o cunhado de Lyra Neto, o publicitário Marcelo José Pimentel Teixeira, havia acabado de sair formalmente da sociedade com Avallone na indústria de laticínios e deixado dois de seus filhos na empresa – Breno Ferreira Teixera e Waldemiro Ferreira Teixeira. Marcelo é irmão da esposa do ex-governador, Mércia, portanto tio de Raquel Lyra.

Breno Ferreira Teixeira permaneceu como sócio do cunhado na Nutritiva Produtos Alimentícios até 2019. A Nutritiva faz parte da composição societária da holding Natural da Vaca. Nesta reportagem da revista Negócios PE, intitulada “Comendo pelas beiradas”, Breno e Paolo aparecem juntos falando dos planos de crescimento da indústria.

Marcelo Teixeira, um dos sócios da agência de publicidade Makplan, não está sendo investigado pela Polícia Federal, mas será um nome recorrente nos próximos parágrafos desta reportagem.

O secretário da Casa Civil, Túlio Vilaça Rodrigues, terceiro nome a assinar o decreto 54.662, manteve vínculos profissionais com a Natural da Vaca, atuando como advogado em processo de habilitação de créditos, em 2012, já mencionado na primeira matéria publicada pela MZ. Esse caso, no entanto, não tem qualquer elo com a fraude investigada pela PF. Vilaça é pessoa de confiança da governadora, ao ponto de ter exercido os cargos de procurador-geral do município em Caruaru e secretário municipal da Fazenda, quando ela foi prefeita.

Por fim, há o assinatura da atual titular da Procuradoria Geral do Estado, Bianca Ferreira Teixeira. Prima de Raquel, filha de Marcelo, irmã de Breno e Waldemiro. E ex-esposa do dono da Natural da Vaca, Paolo Avallone, considerado pela PF como o “líder” e “principal expoente da organização criminosa investigada”. O casamento acabou entre 2021 e 2022. Os dois estão divorciados, mas permaneceram casados durante todo o tempo em que, segundo a PF, a Natural da Vaca teria se beneficiado do contrato assinado entre o governo e a cooperativa “de fachada” em Itaíba.

Encontro com Raquel?

Em meados de 2022, no âmbito do processo 802457-47.2022.4.05.8302, a Polícia Federal manteve escutas autorizadas pela Justiça nos telefones de vários investigados. De acordo com as transcrições desses “grampos” legais, no dia 20 de julho de 2022, Paolo Avallone interrompeu uma conversa por celular com sua irmã e sócia Giovanna Avallone, porque estaria chegando ao Campo das Princesas: “Eu tô chegando no Palácio ligo pra tu depois”, disse Paolo, encerrando a ligação em seguida. Os dados da operadora Claro confirmam que o telefone do empresário estava na região do Palácio do Campo das Princesas naquele intervalo de tempo.

Depois de sair do Palácio, ocupado naquela época por Paulo Câmara, Avallone teria ido se encontrar com seu ex-sogro e ex-sócio Marcelo José Pimentel Teixeira em uma das torres empresariais do shopping RioMar.

E esse encontro, do qual a PF tem imagens, vai ajudar a entender porque a descoberta do esquema criminoso da Natural da Vaca constrange Raquel Lyra e pessoas do primeiro escalão do atual governo.

Os policiais federais decidiram acompanhar o encontro de Marcelo com o principal acusado da fraude porque escutaram Avallone dizer, às 14:28min do dia 20 de julho de 2022, que iria encontrar o “chefe da quadrilha” após sair do Palácio do Campo das Princesas. Depois, a polícia parece ter entendido que “chefe da quadrilha” é a forma como o empresário se refere, de maneira bem humorada, ao ex-sogro.

Paolo Avallone sai do estacionamento do RioMar. Crédito: PF/pág. 268 do processo 0802457-47.2022.4.05.8302

Às 18:46min de 21 de julho de 2022, dia seguinte ao encontro entre Paolo e seu ex-sogro, a escuta telefônica da PF flagrou uma conversa entre o empresário e sua namorada, na qual ele diz que estava dirigindo, a caminho de “Caruaru encontrar Raquel”. A namorada pergunta “Onde tu vai encontrar com ela?” Paolo responde: “Na casa dela”. A PF colocou esse trecho em negrito, destacando que “Raquel, possivelmente trata-se da candidata ao Governo do Estado de Pernambuco, Raquel Lira (sic)”, pois em telefonema anterior a namorada explica que encontrou Raquel fazendo campanha e Paolo ressalta que vai até Caruaru para encontrá-la.

Os policiais não confirmaram se houve o encontro, mas as antenas da operadora Claro confirmaram tanto o deslocamento do celular do industrial quanto sua presença em Caruaru naquela noite.

O que diz o Governo de Pernambuco

A secretaria de Comunicação do governo atendeu à solicitação da Marco Zero e enviou nota de esclarecimento que publicamos na íntegra:

“A respeito da atuação das empresas investigadas nas operações Lácteos e Desnatura da Polícia Federal (PF), no âmbito da Governo de Pernambuco, por suspeitas de irregularidades realizadas na gestão anterior, informamos que:

1) A gestão da governadora Raquel Lyra denunciou aos órgãos de controle estaduais, em dez de abril deste ano, uma série de contratações com suspeitas de irregularidades herdadas da gestão passada, entre elas aquelas relacionadas ao programa “Leite de Todos”. Nesse caso, foi citada nominalmente a Operação Lácteos da PF, e especificamente a situação da Cooperativa dos Pecuaristas e Agricultores de Itaíba (Coopeagri), apontada nas investigações como “cooperativa de fachada” gerida pela empresa Natural da Vaca.

2) No referido documento, que apresentou um diagnóstico da administração estadual após o encerramento dos primeiros cem dias da nova gestão, registrou-se que os dados ali demonstrados “exigem continuidade e aprofundamento para providências de controles interno e externo no sentido de proteger o erário e, por fim, o cidadão”. O documento foi amplamente divulgado à imprensa e à sociedade, inclusive tendo sido disponibilizado no site https://assessoriaespecial.pe.gov.br/diagnostico_situacao_governo_pe.

3) Desde o primeiro dia da nova gestão o programa “Leite de Todos” foi suspenso, não tendo sido realizado pela Secretaria de Desenvolvimento Agrário, Agricultura, Pecuária e Pesca, em 2023, quaisquer pagamentos à Cooperativa investigada. Com efeito comparativo, no ano passado a referida pessoa jurídica recebeu R$ 6,5 milhões do Governo do Estado pela execução do “Leite de Todos”.

4) Em relação ao Decreto nº 54.462, de 28 de abril de 2023, a renovação do Programa de Desenvolvimento do Estado de Pernambuco (PRODEPE) obedeceu à legislação do programa. O processo foi iniciado em maio de 2022 e chancelado em decisão colegiada do comitê diretor do Prodepe – 134ª reunião, realizada em 21 de março deste ano. Com a apresentação de toda a documentação necessária, houve o ateste do comitê. No encontro, também foram submetidos e aprovados outros 47 pleitos de empresas já incentivadas para adequação à legislação do referido Programa de Desenvolvimento.

5) A procuradora-geral do Estado, Bianca Ferreira Teixeira, não mantém relação com Paolo Avallone, com quem está em processo de divórcio litigioso.

6) A Secretaria da Controladoria-Geral do Estado (SCGE) está adotando todas as medidas cabíveis, em defesa do interesse público, com base na Lei Estadual Anticorrupção (Lei nº 16.309/2018) e nas demais normas pertinentes”.

Nos tempos de Paulo Câmara

Durante os oito anos de gestão de Paulo Câmara foram seis os secretários que fizeram a gestão do contrato com a Cooperativa dos Pecuaristas e Agricultores de Itaíba (Coopeagri), a entidade “fantasma” considerada inidônea pelo TCE-PE. Segundo a polícia, a cooperativa foi usada pelos empresários Paolo Avallone e Francisco Garcia Filho para desviar recursos do Programa de Aquisição de Alimentos/Leite, do Governo Federal, para suas empresas, como relatamos nas duas reportagens anteriores desta série.

De acordo com o relatório 21100872-2 do TCE e os processos 0802457-47.2022.4.05.8302 e 0801654-64.2022.4.05.8302, da Justiça Federal, nenhum dos titulares da pasta de Desenvolvimento Agrário cumpriu com a obrigação de fiscalizar a execução do contrato e exigir a documentação necessária, incluindo laudos de análises laboratoriais. Graças a essa negligência, o Governo de Pernambuco teria pago R$ 81.479.353,55 – sem contar com outros 20 pagamentos que aparecem como liquidados, mas sem o registro de pagamento efetivo – por leite sem condições de ser consumido. A maior parte desse dinheiro teria ido parar nas contas da Natural da Vaca e seus “laranjas”.

Dos seis secretários, Nilson Mota, Wellington Batista, Dilson Peixoto e Claudiano Martins Filho foram os que passaram mais tempo no cargo, Luiz Eduardo Antunes e Cláudio Asfora também assumiram a pasta, mas por poucos meses, já no final do segundo mandato de Paulo Câmara. Apenas o período de Dilson Peixoto (2020) foi auditado pelo TCE.

Não é só isso: as investigações da PF abrigam revelações incômodas para o ex-governador. Antes daquela visita ao Palácio seguida por um encontro com o ex-sogro no RioMar, no dia 20 de julho, Paolo Avallone teria ido ao menos uma vez à sede do governo estadual.

No dia 11 de julho de 2022, portanto, às vésperas do início da campanha eleitoral, a PF acompanhou por meio da escuta autorizada pela Justiça, a ida de Paolo Avallone a uma agência do Bradesco na rua Paissandu, na Ilha do Leite, onde sacou R$ 355 mil. Eis o que diz o processo a respeito do que ele fez após retirar o dinheiro em espécie: “em seguida, comparecendo ao endereço da Planus Administração e Participações, e, ato seguinte, ao Palácio do Campo das Princesas (…) Destaque-se que não foi possível identificar até o momento com quem Paolo teria ido se encontrar no Palácio do Campos das Princesas ou qual o teor do encontro na ocasião”.

Em outras oportunidades, Avallone realizou saques de valores expressivos, mas sem visitas ao Palácio.

Caso você não tenha lido a segunda reportagem desta série, a Planus é uma empresa que fornece merenda escolar para a secretaria estadual de Educação, suspeita de fazer lavagem de dinheiro no esquema da Natural da Vaca.

Os dados da operadora de telefonia celular confirmam que, das 17:01min às 17:24min daquele dia, o aparelho celular de Avallone realmente esteve na área da sede do governo estadual.

Em outro telefonema, no dia 14 de julho, desta vez em conversa com o responsável financeiro da Natural da Vaca, Geraldo Lobo Nogueira, Avallone faz outra menção a essa visita ao Palácio.

O que diz o ex-governador Paulo Câmara

A assessoria do ex-governador e atual presidente do Banco do Nordeste, Paulo Câmara, também enviou nota de esclarecimento sobre o assunto:

“A contratação da referida empresa para sua participação no Programa Leite para Todos se deu no ano de 2014, sendo renovada nos anos posteriores. Assim que a investigação sobre a empresa se tornou pública, em novembro de 2022, a então gestão estadual se colocou à disposição dos órgãos de controle para contribuir na apuração dos fatos e não renovou o incentivo fiscalparaamesma”.

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AUTOR
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Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.