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Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo
Por Joana Suarez
Início de agosto deste ano. Chega uma mensagem no grupo de Whatsapp nomeado “Segura a Curva das Mães – Norte / Nordeste”. Uma senhora pedia ajuda para a neta de 15 anos que havia sido estuprada e a família tentava sufocar a informação. Ela estava no interior do Rio Grande do Norte e Andrea Souza na capital, Natal. Pelo aplicativo de mensagens já começaram a conversar. Passaram-se alguns dias até convencerem avó e neta a irem até Natal fazer a denúncia e o exame de corpo delito.
Andrea acompanhou as duas. Quem fez o exame na adolescente foi um médico, segundo Andrea. “Um homem! A menina não foi tratada bem. A gente fala para as mulheres fazerem um X na mão, irem na farmácia (como estratégias para pedirem ajuda), mas os atendimentos são muito ruins”, disse, sentindo-se desesperançosa. “A gente está numa sociedade doente, que justifica o que os homens fazem e culpa as mulheres”, desabafou.
Andrea tem 49 anos e é a terceira geração da linhagem materna que passou por violência. Desde 2018 está no ativismo, como mulher preta e mãe solo. Entrou para o Segura a Curva, que apoia mães e suas famílias em situação de vulnerabilidade agravada pela Covid-19. Elas se ajudam desde recursos financeiros até acompanhamentos diários – se salvam. “É a rede pequena funcionando, que sabe exatamente o que cada uma está passando”, diz Andrea.
No Recife, na comunidade Caranguejo Tabaiares, 11 mulheres em situação de violência estão sendo apoiadas pelo coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste. Ali, a prioridade é combater o que Daniele Lins chama de violência alimentar. “O que mais tortura elas (na pandemia) é correr atrás do alimento, porque o agressor está em casa e quer a comida pronta”, afirmou Dani.
E, com os maridos na comunidade, em sua maioria vendedores ambulantes, sem poder trabalhar por causa da Covid-19, ficou difícil denunciar agressões. “Nós mulheres negras e de periferia que sentimos mais essa violência”, comentou Dani.
No Cabo de Santo Agostinho, na Grande Recife, Nivete Azevedo, coordenadora do Centro de Mulheres do Cabo, também identificou a necessidade do alimento junto às marisqueiras da região. Reproduziram o panfleto com linguagem simples sobre a lei Maria da Penha e mandaram com a cesta básica para elas. “A estrutura de atendimento às mulheres ainda é muito frágil, mesmo depois de tantos anos de lei”, lamentou o que sentiu neste período de pandemia.
Nivete lembra de uma mulher que foi até a organização porque estava sofrendo violência mas acreditava que Deus iria resolver. Evangélicas procuram ajuda quando já não estão suportando mais. Vítimas dizem que o pastor tinha mandado perdoar o marido, “pois o homem é a base da casa”.
“Tem um dado da Vara da Mulher do Cabo que indica que 40% das mulheres que conseguem chegar no serviço são evangélicas. A gente vê o quanto isso é forte, pois sabemos que ainda há subnotificação”, mencionou Nivete.
O caminho encontrado por mulheres para desviar dos agressores, do conservadorismo da igreja e do sistema opressor foi o do fortalecimento entre mulheres.
“Elas têm que se sentir seguras para terem coragem de dar o primeiro passo. O agressor não deixa elas se livrarem dele, e elas acham que isso é normal”, afirmou Daniele, do Caranguejo Tabaiares. Hoje, com 34 anos, ela já viveu sob violência com o companheiro, mas há sete anos não deixa mais ninguém levantar a voz para ela. Sabe por experiência própria que quando alguém diz para uma mulher que é “só ela denunciar”, não entende o que está por trás dos ciclos de agressões.
O coletivo criou um kit de autocuidados para levantar a autoestima delas. Com o caos econômico do coronavírus, o dinheiro que elas conseguem é para comprar comida, tomam conta de todo mundo e esquecem de se cuidar, “não lembram que precisam de um absorvente, um creme, um sabonete melhor”, descreve Dani. Cuidando do que está machucado, conversando, elas caminham até o que seria o segundo passo: denunciar.
O trajeto até a denúncia, no entanto, pode ser tortuoso até mesmo quando se trata de uma simples ligação. Em julho, uma mulher de Olinda, Região Metropolitana do Recife, tentou ligar no número 180 por quatro dias e a ligação não completava. Ela procurou Roberta Oliveira, educadora social e candomblecista, irmã de santo do mesmo terreiro. O ex-companheiro havia sequestrado o bebê do casal em meio à quarentena.
Roberta acionou uma parceira advogada que, de posse de todos os prints das mensagens de ameaças do homem, entrou com medida protetiva e pedido de pensão para os filhos.Roberta criou o Coletivo Primeiro Atendimento para levar informação para essas mulheres vítimas acessarem as redes públicas de proteção e atendimento. “Por falta de informação, não se sabe o que fazer mesmo”.
A candomblecista presenciou o começo do relacionamento dessa irmã de santo e sempre dizia que era abuso, “mas parece que está na cultura aceitar esse tipo de agressão”. É por isso que esse é um tema que machuca toda mulher. “Uma brincadeira sem graça, um toque indesejado. Muito tarde percebi que fui vítima de violência também”, disse Roberta, decidida a se unir para que isso não fique impune e não se repita mais.
A impunidade passa da polícia ao sistema judiciário. É aí que entram coletivos de advogadas que, juntamente com psicólogas, garantem proteção. Grupos como a Mana a Mana, o Instituto Maria da Penha e a ONG Tamo Juntas representam pedidos de medidas protetivas, mandados de prisão, ações de divórcio, pensão, guarda e regulamentação de visitas dos filhos.
Mas, como vemos com as histórias atendidas por Margareth Senna, narradas aqui nas reportagens, elas vão muito além da Justiça papelar. Margô, que atendeu em 2019 cerca de 3 mulheres por mês, passou para uma média mensal de 6 na pandemia, sendo que dez ela deu a mão por 24 horas, por vários dias. As vítimas que têm renda de até dois salários mínimos são atendidas gratuitamente pela advocacia popular.
O Justiceiras é outro projeto criado na pandemia, já soma mais de 3 mil voluntárias que, de março a agosto, atenderam mais de 1.600 mulheres em todo o país. Mulheres com diversas formações suportam, voluntariamente, outras mulheres pelo Whatsapp —(11) 99639-1212.
O balanço enviado pelo grupo apontou que 6 em casa 10 atendidas tem filhos crianças e/ou adolescentes, e em 8% o agressor já foi preso. Quatro em cada 10 das mulheres que passaram pelo Justiceiras buscaram desabafar com familiares e amigos, mas não denunciaram. Outro dado relevante é que em 30% dos casos, os agressores têm acesso aos celulares das atendidas.
Em todas as reportagens desse material especial, as histórias pareciam se repetir, se cruzavam e se resolviam por percursos semelhantes. São apenas alguns exemplos de mulheres que passam pelos mesmos capítulos de sofrimento, e não serão as últimas, infelizmente.
Um estrutura maior envolve a violência contra a mulher numa sociedade de poderes masculinos. E é nesse enfrentamento que entram organizações como a SOS Corpo e o Fórum de Mulheres de Pernambuco. Não estão na lida de atendimento às vítimas, mas na luta política, buscando promover discussões e transformações sociais.
“Nosso papel é o monitoramento político, da rede de serviço, denunciar, dar visibilidade e encaminhar campanhas”, explicou Analba Brazão Teixeira, antropóloga da equipe do SOS Corpo e da Articulação de Mulheres Brasileiras. O instituto feminista fez um levantamento dos serviços que estavam funcionando na cidade logo no início da pandemia. Ligaram para os Centros de Referência dos bairros, para saber como estava o funcionamento.
Muitos desses grupos usam as mídias sociais como canal de contato com as mulheres e vítimas. Renata Albertim, da startup Mete a Colher, acredita que as ferramentas digitais vieram para ficar no enfrentamento da violência e a pandemia mostrou ainda mais isso. “Não tenho uma visão romântica de que a internet vai resolver tudo, sabemos que muitas mulheres não conseguem ter acesso, mas tem que fazer parte, no período de isolamento foi muito necessário”.
Vamos, então, meter a colher onde e como for preciso para salvar vidas.
Esta reportagem faz parte da série “Um vírus e duas guerras”, que vai monitorar até o final de 2020 os casos de feminicídios e de violência doméstica no período da pandemia. O objetivo é visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. Ela é resultado de uma parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, sediada no Amazonas; #Colabora, no Rio de Janeiro; Eco Nordeste, no Ceará; Marco Zero Conteúdo, em Pernambuco, Portal Catarinas, em Santa Catarina; AzMina e Ponte Jornalismo, em São Paulo.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.