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Ele também perdeu o olho numa ação da PM pernambucana: “Única indenização foi ir para a prisão”

Maria Carolina Santos / 31/05/2021
Ativista Marcelo Gerson, que perdeu um olho em 2005 após ser atingido por uma bala de borracha

Crédito: Arquivo Pessoal

Quando viu que dois homens, trabalhadores como ele, podem perder a visão de um olho por conta de tiros de bala de borracha da Polícia Militar, Marcelo Gerson de Paula soube exatamente a dor que eles estão passando. Em 2005, Marcelo foi alvejado no olho direito por um tiro de borracha do Batalhão de Choque da Polícia Militar durante a violenta desocupação de um casarão na Rua Velha, no centro do Recife. Ele perdeu todo o globo ocular. Nunca recebeu um centavo de indenização por parte do Governo de Pernambuco. “A única indenização que eu recebi foi ir para a prisão”, diz Marcelo, que, em um desenrolar absurdo dos fatos, foi preso 14 anos depois da desocupação e passou nove meses detido em regime fechado.

A desocupação que gerou a série de violências de Estado contra Marcelo Gerson aconteceu no dia 23 de agosto de 2005 – na época, o governador era o hoje senador Jarbas Vasconcelos. Marcelo era um dos líderes do Movimento de Luta e Resistência Popular e ocupava com 30 famílias o casarão de número 201 da Rua Velha. Na manhã daquele dia, ele e outros integrantes do movimento estavam indo para uma audiência na Câmara dos Vereadores quando dois oficiais de Justiça chegaram ao local com uma viatura da polícia.

Surpreendidas, já que estavam em negociação com a prefeitura do Recife e o Ministério Público de Pernambuco para ficar definitivamente no prédio, as famílias se recusaram a sair. Não houve negociação com os moradores.

O Batalhão de Choque da Polícia Militar, à época comandado pelo tenente coronel Luiz Meira, foi acionado e em pouco tempo o local se transformou em um campo de batalha. “O coronel Meira disse que ia nos torar. Quando eles deram o primeiro tiro, revidamos”, lembra Marcelo. Os moradores jogaram pedras, bolinhas de gude e coquetéis molotov, que acabaram não pegando fogo. Um pneu incendiado também foi jogado pelos moradores, para bloquear a entrada do casarão.

Não adiantou. O Batalhão de Choque entrou em uma casa vizinha e, de lá, jogou bombas de gás e de efeito moral nos moradores. O prédio pegou fogo. E foi aí que os policiais se aproximaram mais e começaram a atirar indiscriminadamente.

Olho ficou pendurado

Foi no meio da escuridão e da fumaça que Marcelo Gerson sentiu o impacto. O tiro veio do lado esquerdo e primeiro a bala bateu no nariz dele, deixando um buraco, antes de atingir o olho direito. “Eu pensei que ia morrer. Não conseguia ver nada, estava tudo turvo. Um colega chegou perto e disse que meu olho tinha saído para fora. Ficou pendurado”, lembra.

Neste momento, em meio ao incêndio, moradores, incluindo crianças, começaram a sair do casarão. “Quem tirou as famílias de lá fomos nós mesmos, ninguém ajudou”, recorda. Ele foi levado sob custódia policial para o Hospital da Restauração. “Os policiais não queriam que eu fosse atendido. Me colocaram em um local afastado, sem atendimento”, diz. Só depois que militantes do Movimento Negro Unificado (MNU) e de movimentos dos sem teto chegaram ao hospital é que Marcelo foi, enfim, atendido. “Se não tivesse chegado ninguém, eu teria sido deixado lá para morrer”.

Ele passou 17 dias internado no HR, sob escolta. Foi liberado pela polícia, mas, assim como aconteceu com quatro pessoas detidas no sábado após a manifestação no centro do Recife, passou a responder a um inquérito policial. Catorze anos depois, em março de 2019, ele voltou a ser preso.

O policial que efetuou o disparo não foi identificado. A violência policial teve grande repercussão, inclusive nacional. Mas Meira, que meses antes já havia agredido em outra desocupação o então deputado estadual Roberto Leandro, à época presidente da Comissão de Cidadania da Assembleia Legislativa de Pernambuco, só seria temporariamente afastado do Batalhão de Choque após a repressão violenta aos protestos estudantis daquele ano. Mas logo foi promovido, já na gestão Eduardo Campos em 2007, a diretor-geral de operações da PM.

Desde novembro do ano passado, Luiz Meira, aposentado da PM, é presidente do PTB em Pernambuco, partido de apoio ao governo Bolsonaro. Também foi líder em Pernambuco do Aliança pelo Brasil, partido que Jair Bolsonaro tentou fundar.

Já para as 30 famílias que ocupavam o casarão, pouca coisa mudou. Ao longo dos anos, foram inúmeras as promessas de um lar. Até hoje, 18 famílias, incluindo Marcelo Gerson, seguem recebendo o auxílio moradia da Prefeitura do Recife, no valor de R$ 200 mensais.

Balas de borracha

Há pelo menos 75 tipos de projéteis menos letais que são usualmente chamados de “balas de borracha”. É uma invenção oriental, amplamente usada em manifestações em Singapura e Hong Kong, nos anos 1960. O primeiro país do ocidente a usar o equipamento foi a Grã-Bretanha nos anos 1970, substituindo a madeira dos projéteis por borracha.

Logo depois, Israel e Estados Unidos desenvolveram também seus próprios projéteis. Mesmo com menor potencial letal, as balas de borracha podem matar. Em 2017, a revista científica BMJ Open analisou 1.984 casos e descobriu que 53 morreram em consequência dos tiros de borracha. Ou seja, um a cada 37 feridos faleceu.

Em 2019, o Chile viveu uma grande discussão sobre balas de borracha após 200 pessoas terem perdido a visão após serem alvejadas em protestos. O Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade do Chile analisou as balas usadas e viu que apenas 20% do material era borracha. Havia também metais, como chumbo. Desde então, a polícia chilena diz não usar mais esses projéteis.

No Brasil, está em tramitação desde 2015 um projeto de lei do deputado federal Leopoldo Meyer (PSB/PR) para restringir o uso de balas de borracha, ou de elastômero, nome técnico do material. O PL estabelece que munição de borracha só poderá ser disparada após se esgotarem todos os demais recursos. E que somente agentes com treinamento específico poderão manusear as armas, assim como todo uso deve ser acompanhado de um relatório detalhando as circunstâncias da decisão. O projeto já foi aprovado nas comissões e aguarda desde 2017 votação no plenário. Na enquete do site do Senado, a maioria dos votos é contrário ao projeto.

Prisão após 14 anos

Após perder um olho, Marcelo Gerson recebeu a opção de uma prótese ocular, mas ele recusou. Hipertenso, não quis passar pela cirurgia, que era apenas estética. “Não ia fazer diferença na minha vida, não ia trazer minha visão de volta”, conta.

Trabalhar como vigilante, o seu emprego antes da violência, ficou difícil. “Fiquei desempregado, aleijado. Fui tentar me aposentar por invalidez e disseram no INSS: ‘você tem um olho, pode trabalhar'”, lembra. Morando na praia de Gaibú, no Cabo de Santo Agostinho, ficou vivendo de bicos, fazendo segurança de quiosques e serviços como eletricista.

Ao chegar em casa depois de um dia de trabalho na praia, em 14 de março de 2019, dois policiais da Delegacia de Capturas o esperavam. O processo lá de trás havia corrido à revelia, sem o conhecimento ou participação de Marcelo. “Cheguei a ir em uma audiência, mas depois não recebi mais nada. Pensei que havia prescrito. Disseram que não me encontraram, mas como não? Eu trabalhei inclusive em emprego público, como coordenador de política de igualdade racial na prefeitura de Jaboatão dos Guararapes. Viajei nesse período duas vezes para Brasília. E nunca recebi nada”, reclama.

Na delegacia, Marcelo Gerson ligou para o advogado Cláudio Carraly, com quem havia trabalhado na Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes. Foi então que o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) entrou na defesa de Marcelo. Mas, àquela altura, não havia muito o que ser feito juridicamente para livrá-lo da prisão. Ele já havia sido condenado na segunda instância.

Marcelo então viveu o terror de mais um violência do Estado. Passou quatro meses no Cotel e depois mais cinco meses na Penitenciária Agro Industrial São João (PAISJ), em regime fechado. “Foi aterrorizante. Colocar uma pessoa que nunca foi presa, junto de estupradores, assassinos, traficantes. Eu só estava lutando pelo artigo sexto da Constituição Brasileiro, o direito à moradia”, diz.

Ao sair para o regime aberto, as dificuldades continuaram. Marcelo Gerson não conseguiu, por exemplo, solicitar o auxílio emergencial. “O meu CPF está inutilizado, só vai ser liberado quando eu cumprir a pena;. Também não posso votar. Você luta pelos direitos humanos mas o Estado não permite. Diz que você é um vândalo. No código penal, peguei o crime de balbúrdia. Fui marginalizado”, lamenta.

Sem indenização

Marcelo Gerson não abriu processo contra o Governo do Estado. Mas ainda não descarta a possibilidade. “Tenho vontade de processar o Estado. Mas demora anos e anos e anos. Você morre e não vê o dinheiro. Estou tentando viver a vida do jeito que Deus permitiu”, diz.

Indignado com o que aconteceu na manifestação de sábado, Marcelo Gerson lamenta que a polícia militar continue tão truculenta como antes. “Que policia cidadã é essa? É para prender bandido ou bater nas pessoas que se manifestam?”, questiona.

Para Jonas Correia e Daniel Campelo da Silva, os dois trabalhadores atingidos sábado por balas de borracha da PM, Marcelo Gerson deixa um recado. “Espero que ele lutem, que não desistam. É sim difícil demais processar o estado porque mesmo perdendo , ele tem recursos para continuar recorrendo. E nem todos os advogados vão até o fim, até as últimas instâncias. O que aconteceu com eles foi uma injustiça. E eu acredito que toda injustiça deve ser ser punida”, diz o ativista.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com