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Entre avanços e novos desafios, município aposta na merenda escolar como estratégia para ampliar o acesso à comida de verdade, fortalecer a agricultura familiar e enfrentar o avanço dos alimentos ultraprocessados
Quando a lei que amplia de 30% para 45% o percentual mínimo dos recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) destinados à compra direta de alimentos da agricultura familiar entrar em vigor, em 1º de janeiro de 2026, muitas cidades brasileiras terão de se desdobrar para cumprir a nova exigência. Valente (BA), porém, não deve enfrentar esse desafio. O município, localizado a 260 quilômetros de Salvador, já superou esse percentual em 2024 e tende a ampliar o desempenho em 2025, segundo dados ainda em consolidação. No ano passado, Valente recebeu R$ 943.668,00 do PNAE, dos quais R$ 454.493,83 foram destinados à compra de produtos da agricultura familiar – o equivalente a 48,16% do repasse anual.
Por trás desse investimento está um contexto que vai além do cumprimento da lei. Em Valente, assim como em outras partes do país, há sinais de redução no consumo de alimentos saudáveis e aumento da presença de produtos industrializados na dieta da população, além de mudanças nos canais de comercialização, com perda de espaço do autoconsumo e dos circuitos curtos. Diante desse cenário, fortalecer a merenda escolar como política pública de abastecimento local surge como uma das principais oportunidades para ampliar o acesso à comida de verdade e consolidar a segurança alimentar no município.
Outro fator decisivo para que o desempenho de Valente na alimentação escolar não seja fruto do acaso é o processo histórico de organização da agricultura familiar e de fortalecimento das políticas públicas locais. Ao longo das últimas décadas, agricultores e agricultoras se estruturaram em associações, cooperativas e grupos produtivos, muitos deles impulsionados por entidades da sociedade civil, o que garantiu diversidade, regularidade e capacidade de fornecimento ao mercado institucional. “Aqui, a política pública não funciona sozinha. Se não tivesse uma sociedade civil organizada, esses resultados não existiriam”, afirma a secretária municipal de Educação, Cultura, Esporte e Lazer, Maura da Silva Miranda.
Além da base social e produtiva, o município investiu na qualificação da gestão da alimentação escolar, tratando a merenda como eixo estruturante da política de segurança alimentar. Valente ampliou a equipe de nutricionistas, incluiu a produção local no planejamento dos cardápios e estruturou um sistema próprio de armazenamento e distribuição, com câmara fria, carro refrigerado e controle rigoroso da entrega dos alimentos. “A gente precisava ter domínio sobre o que chega à escola, na quantidade certa, com qualidade e segurança alimentar”, explica Maura. Segundo ela, essa estrutura é decisiva para viabilizar a compra de produtos da agricultura familiar, especialmente alimentos *in natura*. “Quando você organiza a logística e garante armazenamento adequado, você reduz desperdício e dá segurança tanto para quem produz quanto para quem consome”, completa.
Localizado no Território do Sisal, no semiárido da Bahia, o município de Valente ocupa uma área de aproximadamente 395 km². Inserido no bioma Caatinga, o território é marcado por vegetação adaptada à escassez de água, como jurema-preta, licuri, caroá e cactáceas, fundamentais para o equilíbrio ambiental da região. O clima é quente e semiárido, com chuvas irregulares que variam entre 600 e 700 milímetros por ano e temperaturas que podem oscilar de 17 °C a 35 °C. Os solos, geralmente rasos, pedregosos e pobres em nutrientes, somados à presença de águas subterrâneas salobras, impõem desafios à produção agrícola e exigem práticas de manejo adequadas para evitar degradação e desertificação. Segundo o Censo de 2022, Valente tem 24.362 habitantes, com pouco mais de um terço da população vivendo na zona rural, mantendo modos de vida fortemente ligados à agricultura familiar e à convivência com o semiárido.
Para entender como Valente desenvolveu uma sociedade civil tão forte, é preciso voltar um pouco no tempo e conhecer a história da comunidade rural de Papagaio. Distante 10 quilômetros da sede do município, Papagaio ocupa lugar estratégico na trajetória de organização social de Valente. Foi ali que, em 1972, a construção da Casa de Areia Branca se tornou um espaço de encontros, formações e articulação política promovidos pelo Movimento de Evangelização Rural (MER), contribuindo diretamente para o fortalecimento do movimento sindical e para a chamada “Tomada do Sindicato”, em 1975, quando agricultores assumiram o comando do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Décadas depois, Papagaio continuou a se destacar como território de inovação social e produtiva, com experiências como casas de farinha, grupos de beneficiamento de alimentos e iniciativas lideradas por mulheres que articulam economia solidária, agroecologia e políticas públicas como o PNAE.
Associação Sabores da Terra mudou a realidade de mais de 30 famílias na comunidade de Papagaio, zona rural de Valente, BA.
Crédito: Inês Campelo/Marco Zero
Atualmente, são dois grupos de beneficiamento de alimentos: o Sabores da Terra e o Delícias da Mandioca, ambos compostos por mulheres vinculadas à Associação Comunitária de Papagaio. O objetivo era aproveitar o excedente de frutas como umbu, acerola, tamarindo, manga e caju e, ao mesmo tempo, gerar trabalho e renda para as famílias. Hoje, os dois empreendimentos beneficiam diretamente doze mulheres e 30 famílias da comunidade.
Eliete Oliveira, presidente da Associação e também do Conselho de Segurança Alimentar de Valente, lembra que, em 2007, quando surgiu o Sabores da Terra com apoio da APAEB (Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira), a situação das mulheres da comunidade era bem mais complicada. “As mães de família viviam com o Bolsa Família, passando necessidade, e não tinham condições de sair para trabalhar em outra comunidade porque não tinham transporte. Algumas mulheres não podiam sair porque os maridos não deixavam.” Hoje, elas vendem sua produção para a prefeitura de Valente, por meio do PNAE, para mercados locais e lojas em outras cidades.
Josielma Lima é uma dessas integrantes do grupo que teve sua vida transformada pelo projeto. Entrou em 2009, ainda adolescente. Hoje, com 32 anos, é mãe de três filhos e dedica parte do seu tempo **à cozinha industrial** montada na sede do Sabores da Terra, produzindo polpa de frutas congelada, sequilhos e uma diversidade de alimentos feitos com produtos da agricultura familiar. Além do reforço na renda familiar e do sentimento de empoderamento que compartilha com as outras mulheres do grupo, Josielma sente orgulho de ajudar a produzir alimentos de qualidade que seus filhos estão comendo na escola.
Ela conta que a filha mais velha, Laís, de 16 anos, já no ensino médio na Escola Wilson Lins, é tão fã da comida do Sabores da Terra que busca “informações privilegiadas” em casa. “Ela chega perguntando: ‘mãe, que dia vai ser aquele bolinho?’”, conta Josielma, referindo-se ao cupcake vendido para o PNAE e que se tornou o carro-chefe do cardápio entregue nas escolas do município.
A Fundação APAEB (Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira) e as organizações que integram a Rede ATER Nordeste têm desempenhado papel central na construção de políticas e estratégias voltadas à segurança alimentar e ao fortalecimento da agricultura familiar em Valente. No município, essa atuação se materializa por meio do projeto *Cultivando Futuros – Transição agroecológica justa em sistemas alimentares do Semiárido brasileiro*, que busca promover a agroecologia, fortalecer a soberania alimentar e ampliar a incidência das organizações da sociedade civil sobre as políticas públicas locais.
Executado em parceria com a AS-PTA e com apoio da organização alemã Brot für die Welt, o projeto integra uma rede de 12 organizações da Rede ATER Nordeste que atuam em 20 municípios do Semiárido. Em Valente, a iniciativa tem contribuído para criar espaços de diálogo entre agricultores familiares, poder público e sociedade civil, como oficinas temáticas, fóruns multiatores e a própria audiência pública sobre segurança alimentar e nutricional realizada no município.
A atuação da Fundação APAEB e da Rede ATER também se concentra na análise da efetividade das políticas públicas existentes, como o PNAE, o PAA, o acesso à água por meio de cisternas e mecanismos de proteção à renda, a exemplo do Garantia-Safra. O objetivo é identificar avanços, limites e oportunidades para ampliar o acesso a alimentos saudáveis, fortalecer os mercados institucionais e valorizar a produção agroecológica local.
Reuru Araújo, de 12 anos, com a família na propriedade em que criam cabras. Produção vai parar na sua merenda escolar
Crédito: Inês Campelo/Marco Zero
Quem também come na escola o que vê sendo produzido em casa é Reury Araújo, de 12 anos, estudante do Colégio Estadual Luciberto Oliveira dos Santos. Ele adora o iogurte de leite de cabra. “Quando tem, eu caio matando. Não sobra nada. Se pudesse, repetia”, conta, com orgulho. “Eu sempre falo para os meus amigos que o leite é lá de casa.” Ele não pode garantir, já que outros produtores locais também fornecem o produto, mas imagina que pode estar tomando leite de seu próprio animal de estimação. “Eu tenho uma cabra que se chama Estrelinha.”
Mas, para essa garrafinha de iogurte chegar à merenda de Reury e de seus colegas de classe, há muito trabalho e política pública envolvidos. Tudo começa na pequena propriedade que o pai dele, Renilton Araújo, divide com a família para criar pouco mais de 30 cabeças de cabra, de onde tira uma média de 60 litros de leite por dia.
Na propriedade de Renilton existe um resfriador de leite com capacidade para armazenar mil litros. O equipamento, instalado pela Associação Comunitária Caprinocultura Solidária – Laticínio DaCabra, é compartilhado com o irmão, Ricael, e com outros seis produtores vizinhos que trabalham de forma cooperada. Dia sim, dia não, uma equipe do Laticínio DaCabra recolhe a produção e leva para o beneficiamento, onde o leite é pasteurizado e transformado em queijos, doces e, claro, no iogurte que Reury tanto gosta.
O Laticínio DaCabra, criado nos anos 2000 pela APAEB, tem transformado a vida dos pequenos produtores locais. Além de comprar o leite cru, promove capacitações sobre manejo adequado dos animais, oferece assistência técnica às famílias, disponibiliza atendimento veterinário aos rebanhos e facilita a compra de ração, reduzindo os custos com insumos. A associação também paga um valor acima do mercado: Renilton vende o litro por R$ 3,51, enquanto atravessadores costumam pagar cerca de R$ 2,00. “Se não fosse a cooperativa, o preço do litro estaria a uns R$ 0,50”, calcula.
Ricael vende o leite de cabra para produção de iogurte, queijos e doces
Crédito: Inês Campelo/Marco Zero
A família de Reury também acessa outras políticas públicas voltadas ao pequeno agricultor. Recentemente, conseguiu liberar um financiamento do programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais, do governo da Bahia. São duas parcelas, de R$ 2.600,00 e R$ 2.000,00, sem necessidade de ressarcimento. Com esse recurso, os irmãos pretendem ampliar a sala de ordenha, murar e aumentar a área coberta onde as cabras circulam. Agora, aguardam apenas o dinheiro cair na conta.
Tanto Renilton quanto Ricael aprenderam a criar cabras com o pai, Salvador Araújo, e a mãe, dona Eleonice, que estão no ramo há mais de 20 anos. Seu Salvador lembra do tempo em que colocava o leite em uma moto e saía para vender a produção — antes da cooperativa. Eram tempos mais difíceis. Tanto que outros dois filhos do casal foram tentar a vida em São Paulo, onde permanecem até hoje, repetindo um caminho comum a muitos jovens da região.
Agora, com as coisas melhorando, Reury já sonha em seguir na agricultura familiar e se prepara para entrar na Escola Família Agrícola Avani de Lima Cunha (EFA Valente). Na escola, que funciona em regime de semi-internato, ele passaria 15 dias na instituição e 15 dias em casa. Sairia de lá como técnico agrícola, preparado para ampliar os negócios da família e, no futuro, quem sabe, produzir seu próprio iogurte.
Crédito: Inês Campelo/Marco Zero
Esta reportagem foi produzida em parceria com a Rede Ater Nordeste.
Jornalista e cofundadora da Marco Zero. Apaixonada por imagens e manualidades.
Sérgio Miguel Buarque é jornalista, cofundador e coordenador executivo da Marco Zero Conteúdo.