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Festival Fala! terá abertura em homenagem à poética preta e periférica de Miró da Muribeca

Giovanna Carneiro / 19/09/2023

Crédito: Pedro Caldas/Cortesia

Para exaltar a ironia, consciência, inteligência e genialidade de Miró da Muribeca, sua admiradora e amiga Odailta Alves fez questão de relembrar um dos versos do poeta pernambucano: “Se você acha que maconha é coisa de ladrão é porque roubaram a tua consciência”. Poeta, homem negro, morador do bairro da Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, Miró faleceu em julho de 2022, mas a sua obra segue sendo homenageada e referenciada como “uma verdadeira aula de história sobre o Recife e o Brasil”.

Sabendo da importância da literatura de Miró para a comunicação popular e a construção do imaginário social, a 4ª edição do Festival Fala!, que acontece nos dias 21, 22 e 23 de setembro, no Recife, celebra a vida e a obra do poeta. Com o tema “Notícias de uma poética preta e periférica”, a mesa de abertura do evento, na próxima quinta-feira (21), no Cais do Sertão, contará com participações de artistas, profissionais da comunicação e amigos que conviveram com Miró.

A homenagem tem início às 18h30 com uma intervenção artística da cantora, compositora e instrumentista pernambucana Isaar. Em seguida, o bate-papo sobre a vida e a obra de Miró será realizado com mediação do jornalista Pedro Lins junto com Isaar; Odailta Alves, escritora, educadora, atriz e ativista dos Direitos Humanos; Flávio Valdevino – conhecido como Flavão -, ilustrador, quadrinista, designer, produtor, pesquisador e apresentador do programa “Baile Diamante Negro” na rádio Frei Caneca; e Rosa Maria, cozinheira e empreendedora proprietária do Restaurante Tempero de Rosa e do Hotel Central.

Após a mesa de abertura, o primeiro dia do festival finaliza com a apresentação artística do Afoxé Omô Nilé Ogunja, com uma performance que celebra a ancestralidade e a cultura negra pernambucana.

Poesia pulsante em um corpo político

É difícil pensar o Recife e sua cultura sem pensar em Miró da Muribeca. Sempre presente no Centro da cidade, dialogando, recitando, sorrindo, confraternizando e comunicando para a população, o poeta era conhecido pelo seu jeito único, irreverente e genial de falar dos problemas e das desigualdades sociais através de sua arte bastante política.

Isaar, cantora, compositora e instrumentista. Crédito: Arquivo Pessoal

Homem negro, morador do bairro da Muribeca, periferia da Região Metropolitana do Recife, Miró atravessou as fronteiras impostas pelas legitimações que muitas vezes só a academia pode conferir e se tornou um renomado escritor, poeta e performer, reconhecido nacionalmente com obras publicadas pela Companhia Editora de Pernambuco (CEPE).

“Tudo que Miró fazia era cheio de verdade e a verdade dele era uma verdade dura, então ele trazia isso de forma poética, com acidez, humor e também com muita vontade de se mostrar. Ele conseguia se conectar com várias pessoas, ele sabia se impor muito poeticamente”, declarou Isaar.

Para a artista, que conviveu com Miró, revisitar a sua obra é um exercício que deve ser realizado constantemente, pois o poeta disserta sobre questões atemporais e fundamentais para a formação social: “Miró traz uma poesia muito acrônica, sua presença, seu jeito de se manifestar no mundo, sua forma de recitar, tudo isso faz dele um combo de expressões que a gente precisa estar sempre revisitando, relendo e lembrando para que outros poetas e pessoas da cidade saibam da existência dele”.

Amigo íntimo de Miró e seu vizinho durante muito tempo, Flavão acompanhou de perto o início da carreira do poeta pernambucano e pôde beber de sua fonte de conhecimento, além de conhecer bem as dificuldades enfrentadas pelo poeta até o momento do seu reconhecimento. “Quando a gente escutava falar em poeta e poesia, a gente pensava em acadêmicos brancos, privilegiados, que estavam muito distantes da gente. O próprio termo poeta era muito seletivo, ninguém pensava em um homem negro neste lugar e Miró veio para mudar isso, ele fez com que a poesia chegasse em outros lugares, ele trouxe a poesia e a literatura pra perto da gente, do povão mesmo”, disse Flavão.

Odailta Alves, escritora, educadora, atriz e ativista dos Direitos Humanos. Crédito: Arquivo Pessoal

Diante dos depoimentos, é perceptível porque uma mesa que homenageia Miró é composta inteiramente por pessoas negras. Uma celebração a sua vida e sua obra é também uma celebração à negritude e a uma luta antirracista, como afirma Odailta Alves: “Miró é essa poesia pulsante que denuncia as violências sofridas por ele enquanto homem preto que tinha consciência do seu corpo político desprivilegiado dentro de uma sociedade racista como a nossa” .

“Ter Miró e sua obra sendo homenageados na abertura do Festival FALA! é extremamente importante e representativo para gente que faz literatura preta na cidade do Recife. Miró é um homem genial, um poeta que conseguiu ter um processo de produção criativa a partir do cotidiano, por isso Miró é um grande comunicador da favela e também do Centro, uma comunicação que é preta e universal”, concluiu Odailta.

De todos que integram o bate-papo sobre a vida de Miró, Rosa Maria é a que esteve mais próxima do poeta nos momentos finais de sua vida. Miró faleceu aos 61 anos, no Hotel Central, na Conde da Boa Vista, onde morou por alguns anos, incluindo o tempo da pandemia, período em que ficou mais próximo da proprietária do hotel.

Rosa Maria, cozinheira e empreendedora proprietária do Restaurante Tempero de Rosa e do Hotel Central. Crédito: Arquivo Pessoal

“Nós tínhamos uma relação mãe e filho e também uma relação de amigo e amiga. Um segurava na mão do outro. A pandemia foi um momento bem triste que compartilhamos juntos porque um poeta preso é como um passarinho na gaiola e Miró era um cara do mundo, da ponte, do banco de praça, da mesa de bar, ele era o cara”, relembrou Dona Rosa.

Emocionada, a cozinheira e dona do Hotel Central diz que recebeu com muita alegria o convite para participar do Festival FALA! e poder celebrar a vida de seu saudoso amigo: “A poesia de Miró impacta e vai impactar para sempre porque ele é a história viva do poeta de rua, da pessoa que morou na periferia e viu todo o sofrimento. A poesia dele é um reflexo do que acontece com os pobres e pretos brasileiros, é como a gente é tratado pela polícia, como somos tratados pela sociedade. Ele falava de tudo isso sem medo e por isso a poesia dele merece respeito para sempre, daqui a cem anos a gente ainda vai lembrar do que ele falava sobre as questões sociais”.

As inscrições para o Festival FALA! são gratuitas e podem ser realizadas no Sympla. Além da cerimônia de abertura do dia 21, nos dias 22 e 23 de setembro o evento contará com uma programação extensa e diversificada, com oficinas, mesas de debates, rodas de conversa e apresentações artísticas.

AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.