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Filho de oficial do Exército produz filme para romper silêncio sobre a repressão e a ditadura

Samarone Lima / 18/04/2023
Homem branco, jovem, calvo, de barba preta e óculos de aro preto, posa para a câmera no meio de uma rua iluminada pelo sol. Ele veste uma camisa vermelha com escudo da CBF em amarelo do esquerdo do peito e uma pequena foice-e-martelo no lado direito da camisa.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Caio Felipe Rezende nasceu em 1994, em Fortaleza, no Ceará, em uma família de classe média, e tinha na avó biológica, que era sua mãe adotiva, a grande fonte de histórias do passado – e ele era glorioso. Sobre o golpe de 1964, contava que o Brasil chegou perto de viver uma guerra, lembrava o clima de “prontidão” das Forças Armadas, mas nunca soube explicar quem era o real inimigo. Seu pai, aquele oficial do Exército aposentado, discreto, cordial, sempre disponível para conversar com os filhos, e com uma imensa dificuldade de dizer “não” em família, tinha feito parte daquela “Revolução de 1964”. Segundo a mãe, ele ajudou a evitar uma guerra civil no Brasil. Ele fez parte dos que tomaram o poder para “dar um jeito no Brasil”.

Quando começou a crescer e fazer perguntas ao pai sobre aquele movimento que parecia ter sido “glorioso”, Caio recebia respostas evasivas.

“Eu fiquei de prontidão no quartel-general, e não fiz nada, não prendi ninguém, não fiz nada. A gente jogava damas o tempo todo”.

Mas tinha em casa um acervo dos tempos de caserna que demonstrava uma forte participação nas demandas oficiais. Placas, retratos e comendas descansavam dentro do guarda-roupa, junto ao uniforme, coberto com a capa do Estado Maior. Na parte de cima, em sacos plásticos, um capacete de aço, quepe, duas baionetas Mauser 1898 e duas espadas da campanha da Guerra do Paraguai.

Somente no governo de Jair Bolsonaro (2019 a 2022), as relíquias ganhariam lugar de destaque na casa.

“Tudo entrou em cena com destaque. Até peças de uniforme que eu nunca tinha visto, apareceram”, lembra Caio.

Continuava impecável a capa que usara, em ocasiões solenes. “Ele tinha um orgulho silencioso. Nasci em 1994, mas nossa casa parecia estar ainda em 1964”..

A primeira vez que viu aquele homem calmo, cordato, que não se alterava por nada, que apoiava os filhos incondicionalmente, que era amoroso com a família, foi na posse do primeiro mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva, em janeiro de 2003.

Ele ficou surpreso. O pai estava com raiva. Mas a seu jeito. Resmungava, sem alterar o equilíbrio.. Nunca deu um grito em casa. Era um protesto baixo, só para ele ouvir. Mas surgia, aos olhos de um menino de nove anos, um homem passional. Muito controlado em suas próprias emoções, mas passional. Mais tarde, lembrando daquela reação, descobriu que o pai tinha um ”ódio apaixonado”, que ficara guardado durante anos.

“Sapo barbudo! Criminoso! Ladrão! Esse cara não pode estar aí”, resmungava.

Na adolescência, começou a se interessar pelos livros disponíveis em casa. Eram publicações da Biblioteca do Exército, que o pai recebia como assinante especialmente sobre a Segunda Guerra Mundial, que a Biblioteca do Exército enviava para os assinantes. O nazismo, o funcionamento da Gestapo (a polícia secreta criada pelos nazistas para monitorar e perseguir quem representasse uma ameaça ao estado) despertaram sua atenção.

“Neste período, eu não era de direita. Era um fascista mesmo. E tinha simpatia pelo nazismo, mas nunca militei ao lado deles. Quando fui conhecê-los enquanto movimento organizado, já era 2015/2016, quando eu já começava a questioná-los. Aí, eu não quis mais me juntar a eles”.

O resumo daquele período confuso se resume em uma frase:

“Me preparei, li, estudei, mas não consegui ser um fascista”..

“Será que o papai pode ser preso?”

Caio parecia enredado em um labirinto de informações truncadas, mas não desistia de entender o mistério que rondava aquele universo que parecia tão cheio de regras, do mundo militar, e perguntas sem respostas.

Estava com 16 anos, em 2010, quando o Supremo Tribunal Federal marcou para abril, o julgamento final de um pedido da OAB para revisar a Lei da Anistia, de 1979, que acabou dando o perdão aos representantes do Estado (policiais e militares) acusados de praticar atos de tortura durante o regime militar. Caso o pedido de revisão da Lei fosse aprovado, muitos militares que trabalharam diretamente nos órgãos de repressão, que resultaram em torturados, mortos e desaparecidos, poderiam – ao menos hipoteticamente – ser presos.

A cada reportagem exibida na TV sobre o assunto, a tensão em casa aumentava. Num almoço, Caio escutou a pergunta que lhe marcou:

“Será que o papai pode ser preso?”

“Quando eu perguntava, ninguém respondia nada, e o papai ficava muito tenso”.

A tensão aumentou com a possibilidade de prisão do general Newton Cruz, considerado um símbolo da repressão do regime, acusado de ter envolvimento no atentado no Riocentro, em 30 de maio de 1981.

“O Newton cruz era muito amigo do papai . Foi seu chefe. Quando ele viu a matéria na TV, deu um murro na cadeira resmungou sem perder a fleuma.

“Que coisa é essa? Cadeia para um general?”

Nada aconteceu. Por 7 votos a 2, o STF julgou o pedido da OAB improcedente.

No dia 18 de novembro de 2011, foi criada, oficialmente, no governo Dilma Rousseff, a Comissão Nacional da Verdade, para investigar as “graves violações de direitos humanos, entre 1946 e 1988.

“Isso é tudo mentira, é uma farsa, uma palhaçada. Se eu fosse chamado, jamais falaria”, comentou o pai.

Caio começou a metamorfose. Deixou de ver os sites nazistas, e começou a assistir, pela internet, os depoimentos de vítimas da ditadura na Comissão da Verdade.

Estava chegando a hora de conversar a sério com o pai.

Perguntou sobre interrogatórios.

“O senhor participou de algum?”.

“Nunca. Eu trabalhava com logística”.

“O senhor fez o curso de informações?”

“Deus me livre!”

Com esta resposta, Caio ficou cismado. Algum segredo guardado havia.

Mas não sabia o que fazer. Estava com 17 anos, e tudo era nebuloso. Ironicamente, em sua casa, a verdade era escorregadia.

Resolveu pesquisar por conta própria.

Retornou ao pai, não mais com perguntas, mas com uma decisão.

“Pai, vou pesquisar sobre esse período”

“Não vou falar nada. Não tenho nada a ver com isso. Do Exército, só quero mesmo o meu salário”

O pai, no entanto, deixou que pegasse os telefones dos militares que eram seus amigos, para tirar suas dúvidas.

Caio ficou extasiado. A agenda tinha o nome e a patente de todos os amigos do pai.

No primeiro encontro, Caio perguntou a um amigo do seu pai, um coronel também da reserva:

“Onde o senhor estava no dia 31 de março de 1964?”

E imediatamente começou a ler tudo sobre a ditadura.

Como era filho de um militar de alta patente, muito querido, Caio começou a ser recebido por vários militares da reserva, que indicavam outros para falar. A resposta aos pedidos de conversa eram sempre as mesmas:

“Você não é o filho de fulano? Venha aqui em casa, rapaz, que conversamos sim!”

Caio nunca imaginaria que estava começando um projeto que mudaria sua vida.

Era o ano de 2014, cinquentenário do Golpe.

Fez um curso de cinema, abandonou o curso de História, virou cineasta e começou a entrevistar militares de várias patentes. Agora, Caio está em Pernambuco pesquisando personagens para o roteiro do seu primeiro documentário em longa metragem.

O filme se chama Servil, e tem como foco militares de diversas partes do país que atuaram no aparato repressivo durante a ditadura.

“O filme que estou fazendo é sobre os agentes. Mas é também o ensaio de um herdeiro da repressão que não aguenta mais. Que sente necessidade de falar sobre isso. É a exposição da minha desconstrução, a forma como a radicalização do Brasil me radicalizou”.

Ele acredita que “não dá pra avançar nesse tema sem falar sobre os filhos de agentes”, e continuar varrendo isso para debaixo do tapete, “fingindo que não é importante, que a gente não faz parte da quebra do silêncio”.

“Me dói profundamente o que as Forças Armadas fizeram com o povo brasileiro. Há uma dor latente nas pessoas que estão com a ferida aberta, e a gente sabe quem são os culpados”, diz Caio.

“O esquecimento é um adoecimento da memória”, completa, antes de sair para coletar mais respostas para as perguntas que nunca foram respondidas em casa.

O documentário foi Foi financiado pelo XIV Edital Ceará de Cinema e Vídeo da Secretária de Cultura do Estado do Ceará.

Os nomes dos familiares e dos militares que já deram depoimento ao documentário não foram revelados a pedido de Caio.

Por influência da família, Caio era simpatizante do nazismo na adolescência. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

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AUTOR
Foto Samarone Lima
Samarone Lima

Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.