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Governador Paulo Câmara processa estudante que o satirizava em perfil de humor no instagram

Maria Carolina Santos / 10/06/2021

David Alves está sendo processado pelo governador de Pernambuco. Crédito: Arquivo Pessoal

No final de abril de 2019, o estudante de ciências políticas David Alves, 26 anos, foi à Delegacia de Repressão aos Crimes Cibernéticos, na Rua da Aurora. Um dia antes, havia recebido uma intimação para depor, assinada pelo delegado Eronides Alves de Meneses Júnior. Enquanto aguardava, observou que apenas o escrivão tomava os depoimentos das pessoas intimadas em outros casos. Quando chegou a sua vez, David encontrou na sala o delegado, um escrivão e dois agentes de polícia. O seu crime: criar uma conta no instagram usando o nome do governador Paulo Câmara (PSB).

Dentro da sala, outra coisa chamou a atenção de David. Havia um banner com a foto dele. “Sim, um banner, impresso, com uma foto minha que estava no instagram e que foi tirada no clube da minha tia”, contou, em entrevista à Marco Zero. Na delegacia, ficou sabendo que estava sendo investigado por injúria, difamação e falsidade ideológica. Também disseram que a investigação havia sido pedida pelo procurador do Estado – que na época era Ernani Medicis, que havia assumido em janeiro daquele ano.

Somente na terça-feira, 8 de junho, David resolveu expor o que aconteceu na delegacia e o fato de, dois anos depois, ter recebido uma intimação para depor em um processo que corre no Juizado Especial Civil Criminal do Torcedor e que tem Paulo Henrique Saraiva Câmara como o ofendido. A intimação para depor no processo judicial chegou no dia 29 de março deste ano.

Bolsista do Prouni, morador do Alto Santa Terezinha, em Água Fria, e sem dinheiro para contratar um advogado, David resolveu procurar ajuda com um vídeo no instagram e um fio no Twitter. “Não falei antes porque estava com medo. A polícia foi na minha casa em 2019, para me intimar a depor. Sabem onde moro. Tentei arranjar um defensor público, mas tive dificuldade em encontrar. Resolvi postar para ter repercussão e me sentir protegido. Mas antes senti muito medo”, conta.

Após os apelos, David recebeu a ajuda do vereador Ivan Moraes (PSOL), que se comprometeu a prestar assistência jurídica. “Mas eu estou tentando falar com o governo também. Uma ação dessas é péssima. Quem critica Bolsonaro por perseguir quem o chama de genocida não pode compactuar com um absurdo desses. O ideal seria o governador mesmo retirar a queixa. E pedir desculpas”, afirmou o vereador à Marco Zero, completando que ainda hoje deve definir qual advogada vai pegar o caso.

Na delegacia, além do banner, David relata outro fato fora do padrão. Ele diz que foi solicitado a fazer um vídeo pedindo desculpas ao governador Paulo Câmara. Não o fez. “Prefiro morrer a passar essa vergonha. Não fui coagido, nem nada. Só perguntaram. Eu lembro quem me pediu para fazer o vídeo, mas não me sinto à vontade agora para dizer quem foi. Prefiro falar com o advogado primeiro”, diz. Com a negativa do vídeo, David conta que os policiais pediram para apenas gravá-lo na delegacia, “para mostrar serviço”. “Disseram que estavam sendo pressionados pelo governo”, recorda.

Naquele dia, assinou um termo de comparecimento, se comprometendo a ir para audiência, quando convocado. Ele achou que não tinha dado em nada. Meses depois, em setembro, diz que uma advogada conhecida procurou algum registro de processo contra ele, mas não encontrou. Ficou tranquilo, até que chegou a intimação para depor à Justiça.

Na delegacia, perguntaram para David se ele era filiado a algum partido político. David se define como de esquerda. “Eles achavam que eu era bancado por um partido político. E, por incrível que pareça, é logo um partido que se banca como de esquerda que está me coagindo”, reclama. “Me senti censurado, perseguido e intimidado. Vê só o tempo que demorei para expor o caso…fiquei com medo. Um governo que paga de democrático. Fico só vendo”, diz.

Em segredo de Justiça

Como David Alves formalmente ainda não tem advogado – a assessoria jurídica de Ivan Moraes entrará no caso nos próximos dias – há algumas perguntas ainda sem respostas. A Marco Zero questionou a Polícia Civil e o Governo de Pernambuco sobre o caso: se foi algum post específico que motivou o processo, se a investigação foi pedida pelo procurador do estado, por qual crime o estudante foi indiciado etc.

David achava que havia sido indiciado apenas por falsidade ideológica. Mas a Polícia Civil de Pernambuco respondeu à Marco Zero que ele foi indiciado pela prática dos crimes de injúria, difamação e falsa identidade. “O inquérito foi concluído e remetido à Justiça em maio de 2019”, diz a nota da Polícia Civil, que não responde quem solicitou a investigação. O Governo de Pernambuco ainda não respondeu à MZ. Quando a resposta chegar, esta matéria será atualizada.

Outra dúvida é por que o processo está no Juizado do Torcedor. De acordo com Assessoria de Comunicação do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), o Juizado Especial do Torcedor (Jetep) tem competência apenas para “processar e julgar as causas cíveis e criminais de menor complexidade e de menor potencial ofensivo, definidas na Lei nº 9.099/95, decorrentes dos conflitos surgidos durante as atividades desportivas de grande porte, no início ou no término dos jogos, nos termos da Lei Federal n° 10.671/2003, e cuja pena não ultrapasse dois anos”.

De acordo com o TJPE, as ações judiciais que tratam de crimes cometidos na internet, como falsidade ideológica e difamação, devem ser distribuídas para varas da Justiça Comum.

A Marco Zero não teve acesso ao processo (0000694-11.2019.8.17.8131) porque, segundo o TJPE, a ação corre em segredo de justiça. Por isso, o tribunal também não pode divulgar informações sobre seu trâmite, decisões, julgamentos ou recursos. Somente os envolvidos e seus advogados/representantes legais têm acesso.

O site do TJPE, porém, mostra a movimentação do processo. A ação chegou ao juizado em 08 de julho de 2019. E recebeu vista do Ministério Público em outubro daquele ano. Há a designação de uma audiência liminar, que geralmente é de conciliação, em julho de 2020. Mas David não recebeu nada sobre isso. Em 29 de março, consta a intimação dele para depor. A data da audiência permanece em aberto.

O rei Paulo Câmara 40

O perfil @pauloreicamara40 tinha uma foto do governador. Mas, diz David, não deixava dúvidas de que era uma brincadeira: “A descrição era: ‘Perfil satirizando atual governador de Pernambuco. O melhor governador da história. Me chame para governar o seu estado”‘, conta. Quando saiu do ar, no início de fevereiro de 2019, o perfil tinha quase 10 mil seguidores e os stories batiam recordes de 5 mil visualizações, segundo David. Ao excluir o perfil, o instagram deu a justificativa de que ele estava se passando por outra pessoa.

A Marco Zero não teve acesso às postagens que eram feitas no perfil. Não há vestígios da página nas redes ou nos sistemas de busca.

Segundo David, o perfil não postava fake news ou injúria. O rapaz, porém, não guardou nenhum print do perfil. Na delegacia, diz, havia vários: dos posts do feed e dos destaques do stories. “Queria que tivesse alguns, para provar que não tinha nada de difamação. Eu tentei fazer de todas as formas para não infringir as leis. Estava tomando cuidando para não perder a página, porque se ela cresce, você pode até ganhar um trocado com ela. Tinha todo o cuidado do mundo”, afirma. Na delegacia, mostraram para ele prints com ofensas ao governador. “Mas não eram de posts meu. Eram pessoas nos comentários, não eu”, explica David.

Na descrição de alguns posts feitos por ele à reportagem, o perfil transparece um humor adolescente. Um exemplo: em uma caixa de perguntas nos stories, um seguidor reclamava da UPA do bairro. A resposta de David: “Não se preocupe. Amanhã eu vou aí no seu bairro e construo três UPAs. Feliz ano novo!”. A congratulação era, segundo ele, a marca registrada do perfil, porque foi criado no mês de dezembro.

Outro exemplo: no dia em que o Batalhão de Choque agrediu os técnicos de enfermagem que protestavam em frente ao Hospital da Restauração, David diz que postou uma foto do Derby com os dizeres “Enquanto vocês estão aí, estou indo para Boa Viagem tomar um banho de mar. Feliz ano novo”.

David conta que posts da página haviam repercutido nos perfis Recife Ordinário, que hoje tem 1,1 milhão de seguidores, e do jornalista Ronan Tardin, que tem hoje 171 mil seguidores. No dia em que saiu do ar, David diz que a página tinha ganhado mil seguidores. Estava no auge.

O estudante fala que se sentia monitorado pelo governo. Apesar de nenhuma conta oficial seguir a página, ele diz que vez ou outra checava perfis que viam os stories dele e percebia que eram de pessoas que trabalhavam no Governo do Estado. O perfil do hoje secretário de Desenvolvimento Econômico Geraldo Julio, então prefeito do Recife, havia bloqueado a página. Para reforçar que pessoas do PSB e do governo acompanhavam seu conteúdo, David recorda de um comentário de Pedro Campos, irmão do atual prefeito do Recife, João Campos (PSB). “Ele dizia que não concordava com o perfil, mas que era feita com humor”, diz.

Um ano depois que a página caiu, ele passou a usar outra. Dessa vez, o alvo era João Campos (PSB), ainda candidato. “Tinha só mil seguidores. No perfil tinha que era “João Campos, o príncipe que veio do céu para governar Recife”, tirava onda com o fato de ele estar disputando com uma prima e tal”, conta. A página teve vida curta e caiu em poucas semanas. David desistiu das sátiras.

Hoje, no instagram pessoal dele, não há conteúdo além do vídeo da denúncia e outro mais recente, de maio. Ele diz que arquivou o antigo perfil pessoal após o fim de um relacionamento.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com