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Em 1985 eu tinha 16 anos, e nunca, nas conversas familiares, ou nas muitas escolas que tinha frequentado, alguém me informou que durante todos esses anos, eu tinha vivido sob uma ditadura.
Nasci em maio de 1969, quando o país era governado por uma Junta Militar. Estava com cinco meses, quando assumiu a presidência o sanguinário Emílio Garrastazu Médici.
Meu pai era funcionário do Banco do Brasil, e parecíamos nômades, em cima do seu Fusca cinza (placas IZ- 3059). Moramos no no Crato (CE), onde nasci, Brejo Santo (CE), Imperatriz (MA) e Fortaleza (CE). Nunca ouvi críticas aos milicos. Meu pai, bastante autoritário em casa, não tocava no assunto, mas nunca o vi elogiando o regime.
Num misterioso dia de 1985, por motivos que até hoje desconheço, apareceu em nossa casa um livro de capa vermelha, com a imagem de uma pessoa dentro de uma roda (para mim, era o que parecia), e um aviso: ”Um relato para a história”, e “prefácio de Dom Paulo Evaristo, Cardeal Arns”.
Era um ser estranho, aquele objeto.
Nossa biblioteca familiar tinha as onipresentes enciclopédias Delta Larousse, revistas Pais & Filhos, além de de uma miscelânea que envolvia Adelaide Carraro, Jorge Amado, revistas “Placar”, e outros que não lembro. O livro que me fez ser leitor obstinado foi “Papillon, do francês Henri Charrièrre, que é uma história de aventuras.
Desavisadamente, resolvi abrir aquele livro que começava com “Brasil”, acompanhado do intrigante “Nunca Mais”.
Eram relatos comoventes e dolorosos, de pessoas que tinham sido presas e torturadas durante a ditadura. Todo o material foi coletado de depoimentos de pessoas que passaram por prisões, e foram torturadas.
Foram quase seis anos de um trabalho sigiloso, envolvendo advogados e jornalistas, sob o manto protetor do arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, com financiamento do Conselho Mundial de Igrejas, para coletar no Superior Tribunal Militar os relatos de presos políticos, feitos durante seus julgamentos. Além do arcebispo, o porjeto contou com o apoio fundamental do reverendo James Wright (1927-1999), da Missão Presbiteriana do Brasil Central.
O Brasil ainda estava sob o jugo dos militares, mas o mundo assombroso da violência, estava escancarada.
O livro se tornou um fenômeno. Lançado pela Editora Vozes, permaneceu na lista dos dez mais vendidos por 91 semanas. Na época, foi o livro de não-ficção brasileiro mais vendido de todos os tempos.
“Estávamos ainda sob a ditadura, mas nenhum militar falou nada, questionou nada. Contra os fatos, não há argumentos”, lembra Luiz Eduardo Greenhalgh, um dos idealizadores do projeto.
Não sabia que minha vida estava mudando, por causa daquele livro. Três anos depois, eu estava no Recife, estudando Jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco, com a semente daquele livro monumental em minha alma.
Por essas coisas que não podemos explicar, em 1995 estava na Cúria Metropolitana da Igreja Católica de São Paulo, comandada pelo Cardeal Arns, trabalhando no jornal “O São Paulo”.
Desde o dia sete de setembro de 2024, no Memorial da Resistência, em São Paulo, essa história está aberta ao público, com a exposicão Uma vertigem visionária – Brasil: Nunca Mais.
Neste período, mais de 85 mil pessoas já visitaram a exposição, que tem cartazes, fotos, gráficos, documentos, gravações em vídeo das pessoas que participaram da conspiração pela memória e denúncia da ditadura. Um mergulho no passado, para que ele não se repita, no momento em que o Supremo Tribunal Federal se prepara para julgar os conspiradores do golpe de Estado liderado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
Exposição que resgata história do projeto já foi visitada por 85 mil pessoas
Crédito: Levi Fanan/Memorial da Resistência
Brasil: Nunca Mais é a mais ampla pesquisa realizada pela sociedade civil sobre a tortura política no país. O projeto foi uma iniciativa do Conselho Mundial de Igrejas e da Arquidiocese de São Paulo, os quais trabalharam sigilosamente durante cinco anos sobre 850 mil páginas de processos do Superior Tribunal Militar. O resultado foi a publicação de um relatório e um livro, em 1985, que revelaram a gravidade das violações aos direitos humanos promovidas pela repressão política durante a ditadura militar. O sucesso da publicação continua influenciando gerações e impulsionou o compromisso do Estado brasileiro com o enfrentamento à tortura.
Com curadoria do pesquisador e professor Diego Matos, a mostra é dedicada à memória do projeto homônimo, empreendido entre 1979 e 1985. A iniciativa foi responsável por sistematizar e, clandestinamente, produzir cópias de mais de 1 milhão de páginas contidas em 707 processos do Superior Tribunal Militar (STM), revelando a extensão da repressão política do Brasil no período.
A história do projeto e seus desdobramentos é apresentada junto a testemunhos em vídeo de advogados, jornalistas e defensores de direitos humanos, que, por anos, tiveram seus nomes mantidos no anonimato: Paulo Vannuchi, Anivaldo Padilha, Ricardo Kotscho, Frei Betto, Carlos Lichtsztejn, Leda Corazza, Petrônio Pereira de Souza e Luiz Eduardo Greenhalgh, por meio do programa Coleta Regular de Testemunhos do Memorial. Há também entrevistas com Dom Paulo Evaristo Arns, Marco Aurélio Garcia, Eny Raimundo Moreira e Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, pertencentes ao acervo do Armazém Memória.
O arquivo de 707 processos judiciais expõe os depoimentos de presos políticos sobre as ações de repressão, vigilância, perseguição e tortura do aparato estatal. As cópias desse conteúdo, que por anos foram mantidas em segurança em acervos preservados na Suíça e nos EUA, tiveram repatriamento, retornando ao Brasil em 2011. Atualmente encontram-se sob salvaguarda do Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp, em Campinas.
Hoje, o material coletado na pesquisa está disponível em site próprio, o Brasil Nunca Mais Digital, sob cuidados do Ministério Público Federal.
Dom Paulo Evaristo Arns impulsionou a pesquisa
Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil
Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.