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Crédito: Sebastiandoe5 / Wikimedia Commons
“Esta é a BBC de Londres”.
Esta era a senha para que, em plena ditadura militar, milhares de brasileiros tivessem acesso a informações que eram proibidas de serem divulgadas pelos militares. Sempre às 19h, em ondas curtas, as notícias chegavam ao Brasil graças ao trabalho incessante de uma discreta jornalista inglesa que morava no bairro de Perdizes, em São Paulo.
Ela enviava as notícias por fax ou lendo os textos pelo telefone, muitas vezes utilizando as fichinhas de orelhões. Para escapar da vigilância da Polícia Federal, que só permitia o envio de fitas cassete para o exterior após uma “escuta” do material, Jan Rocha gravava suas reportagens e se mandava para o aeroporto de Guarulhos. Ficava de olho em passageiros que chegavam no check-in para Londres, depois abordava com calma e perguntava se era possível levar aquela fita para Londres.
“Uma pessoa da rádio vai buscar no aeroporto”, explicava.
E sempre deu certo.
As notícias que chegavam à sede da BBC, uma potência mundial da comunicação, eram transformadas em programas de rádio, em português, e transmitidas pontualmente a partir das 19h, quando todas as estações de rádio brasileiras eram obrigadas a retransmitir o programa oficial “A voz do Brasil”, produzido pelo próprio governo.
No mesmo momento em que o programa oficial exaltava obras faraônicas do governo militar, como a rodovia Transamazônica, os textos de Jan mostravam outra realidade. O título do informe de 24 de julho de 1974 era “Na Amazônia, o gado tem preferência”.
“Pelo menos nessa área não há discriminação racial. As terras de tribos indígenas, arrendatários, pequenos proprietários ou posseiros são igualmente disputadas ou simplesmente invadidas pelas grandes empresas de desenvolvimento agrário que querem as áreas para a criação de gado ou exploração mineral lucrativa”.
De 1973 a 1985, Jan Rocha foi incansável na busca do que estava censurado, escondido, mal contado, ou simplesmente fatos mentirosos, hoje batizados de “fake news”. Seus informes destoavam da propaganda oficial do regime, que investia milhões para exaltar as cores da bandeira, do “país que vai pra frente”, e praticar a intolerância a qualquer oposição, com um adesivo fartamente distribuído durante o governo Médici (1969-1973) -”Brasil: ame-o ou deixe-o”.
Dez anos depois daquilo que a mídia nacional chamou “milagre econômico”, em 30 de agosto de 1983, o informe de Jan tinha como título “Famintos comem ratos e raízes por causa da seca”. Em setembro do mesmo ano, a BBC informava que mais de três mil policiais estavam em alerta e contingentes da polícia militar foram retirados de outras áreas para proteger supermercados. “Desde que os saques começaram uma semana atrás, mais de 50 lojas de alimentos foram atacadas, e a polícia agora fica de guarda na porta de muitos deles”. A inflação, naquele momento, era de 150% ao ano.
“Não há seguro-desemprego no Brasil e por isso as grandes cidades agora estão cheias de gente passando fome”, escreveu a jornalista.
Suas notícias eram sobre destruição da floresta amazônica por estradas, hidrelétricas e fazendas de gado, tortura e assassinato de opositores, protestos de estudantes, inflação, fome, saques, revolta de cientistas, invasão de terras indígenas por garimpeiros, escândalos envolvendo os militares e dissidências dentro do próprio regime.
Na reta final da ditadura, ela acompanhou os movimentos de Anistia, a volta dos opositores do exílio, a campanha das “Diretas Já”, e um país com a economia devastada. No penúltimo ano da ditadura, a inflação foi a mais alta da história: 223%. A dívida externa estava em U$$ 100 bilhões.
Toda essa produção jornalística, guardada em pastas após o final da ditadura, veio à tona com o livro Nossa correspondente informa – Notícias da ditadura brasileira: 1973-1985, lançado pela editora Alameda. São 466 páginas escritas pela jornalista que venceu a máquina de censura do regime. A ditadura brasileira é desnudada, com fatos, notícias e fontes as mais diversas, usando muitas vezes uma ironia fina, que alcança os mais diversos tipos de leitores, com a marca da oralidade e da observação.
“Tive a ideia de publicar quando ouvi o presidente descrevendo aquele período dos anos de chumbo como um ‘movimento democrático’, negando as torturas e elogiando um torturador”, diz Rocha, referindo-se ao presidente Jair Bolsonaro. “Neste momento de tentativas de negar a história, ou reescrevê-la, creio que as minhas matérias podem ser úteis para mostrar a realidade daquela época, escritas por alguém que estava lá”.
Após a redemocratização do país, ela continua morando na mesma casa, em Perdizes. Dedicou o livro aos filhos Camilo, Ali e Bruna, que “tiveram que dividir a sua mãe com a BBC”, e que ajudaram a fazer o livro, lendo e selecionando textos datilografados e manuscritos.
As pautas do governo militar de 1964 têm profunda conexão com a realidade atual, de um governo declaradamente “de direita”. Em julho de 1974, os cientistas brasileiros estavam alarmados com a decisão do BNDES de cancelar o financiamento de pesquisas puras nas universidades, transformando os mundialmente conhecidos institutos Butantã e Alfredo Lutz em companhias estatais com fins lucrativos.
O discurso anticomunista, presente durante toda a Ditadura, e agora mais vivo que nunca, teve cenas pitorescas. Em junho de 1976, o general João Bina Machado, ao falar em um fórum de segurança nacional , advertiu que oa jovens com inteligência “acima da média” poderiam “ser perigosos”.
A questão indígena recebia o mesmo tipo de tratamento. Rangel Reis, ministro do Interior, avaliava, em dezembro de 1976, que os índios viviam em um “sistema ultrapassado”. Não por acaso, em janeiro de 1977, uma reunião de 140 líderes indígenas em Surumu, Roraima, foi suspensa pela FUNAI, com o apoio da polícia. Eles iriam discutir as constantes invasões de suas terras por pecuaristas.
Em janeiro de 1977, a manchete da BBC resumia tudo:
“A gasolina mais cara do mundo” estava sendo vendida no Brasil.
Em 14 de outubro de 1983, Jan Rocha escreveu sobre um tema que se repete, em maio de 2022:
“Inflação alta traz desemprego e fome”.
Jan Rocha chegou ao Brasil em 1969, como voluntária em projetos sociais da United Nations Association (UNA). Morou no Rio de Janeiro, onde se embrenhou em trabalhos sociais nas favelas, leu a tradução de Quarto de despejo, de Carolina de Jesus, e depois foi conhecer a Amazônia. De alguma forma, tinha um sentimento de que viveria no Brasil.
Estava com 33 anos, em 1973, tinha dois filhos com o gaúcho Plauto Rocha, quando recebeu o convite da BBC para assumir o cargo de correspondente da emissora, em São Paulo. Foi a Londres para uma entrevista, explicou que não poderia assumir o cargo porque não era jornalista, mas recebeu como resposta um desafio: “Você só precisa checar tudo duas vezes. Boa sorte”.
“Voltei para São Paulo meio perdida. No Brasil, eram poucos os correspondentes internacionais e havia muita censura nos jornais brasileiros”, conta Jan, que buscou ajuda dos padres e bispos progressistas, como Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, para fazer os primeiros informes. Foi recebida de braços abertos. Dom Paulo, em 1973, era um dos principais representantes da Igreja Católica no enfrentamento à ditadura.
Aos poucos, foi descobrindo os caminhos das fontes. Passou a frequentar redações dos principais jornais brasileiros, onde recebia informações de matérias que tinham sido censuradas e aproveitava para mandar para Londres.
“Na medida em que fiquei mais conhecida, as pessoas me telefonavam de vários pontos do Brasil, para denunciar coisas que estavam acontecendo”. Jan Rocha foi ampliando os contatos, e passou a ter fontes confiáveis até na sala de imprensa do Congresso Nacional.
Quando recebia algum telefonema informando de julgamentos de presos políticos, na Auditoria Militar, Jan imediatamente seguia para o local. Em março de 1975 acompanhou o julgamento de vários acusados de participarem da guerrilha do Araguaia.
No intervalo para o almoço, juízes e advogados saíram, e os presos ficaram na sala, com guardas armados nas portas. Um dos presos, alto, magro, barbudo, fez um sinal para ela.
“Quando me aproximei, ele, sem falar nada, levantou a barra da calça para me mostrar marcas de tortura em sua perna”. O preso político era José Genoíno Neto, que viria a presidir o PT e seis vezes eleito deputado federal.
Apenas uma vez, Jan foi alcançada pelos militares. Numa de suas muitas matérias sobre fome e saques, em 1983, ela foi informada pelo jornalista Ricardo Carvalho que havia homens do serviço secreto do Exército infiltrados entre os líderes do movimento. Como a fonte era confiável, ela colocou no informe.
Dias depois, foi intimada a ir à sede da Polícia Federal, para dar informações. “Queriam saber a fonte da informação, mas eu neguei. Eles queriam mais era me intimidar”.
Jan foi liberada, voltou pra casa e seguiu com seu trabalho.
Como a realidade política do país era outra, o fato foi noticiado pelos jornais Correio Braziliense, O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo. Em outro momento da ditadura, as coisas poderiam ter sido muito diferentes.
Em 1975, um jornalista muito conhecido, chamado Vladimir Herzog, não teve a mesma sorte. Também fora do Serviço Brasileiro da BBC, e viveu em Londres, onde teve seus dois filhos. Em 24 de outubro, recebeu em casa uma intimação para prestar depoimento na sede do DOI-CODI, órgão de inteligência e repressão do Exército.
Herzog se apresentou voluntariamente. No dia seguinte, estava morto, após sessões de tortura. A versão oficial era de que teria cometido suicídio.
No livro, Jan Rocha lembra de Vlado, como era chamado pelos colegas. Ambos se conheceram em 1968, em Londres.
“Duas semanas antes de sua morte eu almocei com ele e outros colegas da revista Visão, onde ele trabalhava. Fomos a um restaurante romeno do outro lado da Praça da República. Vlado estava alegre e irônico, como sempre. Não lembro sobre o que falamos, mas nunca imaginei que aquela seria a última vez que o veria vivo”.
***
Marco Zero: Por que publicar estes informes agora, passados 37 anos da redemocratização do Brasil?
Jan Rocha: Tem pessoas que gostam de dizer que era um “movimento”, que não houve tortura, presos políticos, que ninguém morreu dentro das prisões. Mas, além disso, houve também hiperinflação, fome, corrupção. O objetivo de selecionar as matérias e publicar, é mostrar as muitas semelhanças com o que está acontecendo agora. Fica claro a questão indígena, e a luta contra o garimpo. Houve também muita fome, que era mais localizada no Nordeste, por causa das secas. Agora, ela está em todo o país, por causa do desemprego, da pobreza, da inflação. A fome voltou para milhões de brasileiros. É uma coisa que remete ao passado. Não chegamos a ter hiperinflação, como naquela época, mas já temos inflação de dois dígitos. Houve também muita corrupção, só que ficou escondido, por causa da censura. São muitas semelhanças acontecendo
Qual o impacto dos informes da BBC em um país controlado pela censura?
O serviço brasileiro da BBC era muito importante, e já funcionava desde o fim da década de 1940 no Brasil. Era em ondas curtas, e chegava através de transmissores na ilha de Assunción [Ascensão], no Oceano Atlântico. As notícias eram transmitidas em português, e a BBC era muito ouvida, especialmente na Amazônia e no Nordeste, nas redações dos jornais, num período de muita censura.
Como era a rotina de visitar as redações, em busca de notícias censuradas?
JR: Uma vez fui à redação da TV Globo, no Rio de Janeiro, e li um enorme fax que estava afixado no mural, com todos os assuntos proibidos, não só políticos, mas econômicos, de saúde, de cultura. A lista era enorme, e os censores, muito rigorosos. O jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, tinha que submeter todas as suas matérias para serem censuradas. Tinham que mandar para Brasília. Cortavam coisas absurdas, como um número do jornal Movimento: uma vez, censuraram um artigo sobre sobre Leonardo da Vinci, porque acreditavam que estavam tirando um sarro com um censor, que se chamava Leonardo.
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Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.