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por Norma Lacerda*
Na apresentação do livro Lei dos 12 Bairros: contribuição ao debate sobre a produção do espaço urbano do Recife (Lacerda et al.), Ricardo Leitão assim se pronuncia: “Mais do que um marco no planejamento urbano do Recife, capital de Pernambuco, a Lei dos 12 Bairros (Lei no 16.1719 de 2001) é uma conquista civilizatória dos recifenses” (grifo meu). Resultou de um amplo processo participativo que mobilizou inúmeros atores sociais, o que conferiu a essa legislação uma legitimidade política e social. Não sem razão, os autores do livro os homenageiam, na parte intitulada Um tributo à participação.
Certamente, é um exemplo de legislação urbanística. Passados 24 anos da sua aplicação, afirmo que a Lei foi capaz de conservar os atributos históricos, culturais, sociais e ambientais de um amplo território recifense, formado por 12 bairros, a saber: Derby, Espinheiro, Graças, Aflitos, Jaqueira, parte da Tamarineira, Parnamirim, Santana, Casa Forte, Poço da Panela, Monteiro, Apipucos. Os resultados são inquestionáveis quanto à diferenciada qualidade espacial por ela gerada, importante para a totalidade do Recife, sobretudo no que se refere à oferta de vasta cobertura vegetal – amenizadora do clima tropical recifense – e de significativas áreas de absorção de águas pluviais, imprescindíveis à cidade anfíbia descrita por Josué de Castro.
Ademais, uma cidade não deve ser um amontoado de prédios. O que dá vida à cidade, o que confere “alma à cidade” – expressão acertada de Aldo Rossi – são os seus espaços públicos, cujas formas são tributárias da maneira como são construídas as edificações nos terrenos que a margeiam, ou melhor do tipo de diálogo que mantém com os espaços privados.
Não sem razão, os parâmetros urbanísticos dessa Lei (coeficiente de utilização dos terrenos, taxa de solo natural, altura das edificações e afastamentos em relação às divisas do lotes) foram estabelecidos respeitando (i) os atributos espaciais – características morfotipológicas, ambientais e suporte infraestruturais – e (ii) as larguras das vias. Vias mais largas, parâmetros mais generosos. Vias mais estreitas, mais restritivos. Isso revela a busca de sintonia com a funcionalidade de cada uma delas e da sua qualidade espacial; porque não dizer da sua qualidade arquitetônica.
Tudo isso foi sim uma conquista civilizatória a ser, inclusive, estendida para outras áreas da cidade. Afinal, conferiu aos 12 bairros mais humanidade, maior nível de urbanidade no cotejo a muitos outros espaços recifenses. Gerou um espaço convidativo, pois acolhedor. Preservou um dos mais importantes “pulmões” da cidade. Com certeza contribuiu, com suas áreas permeáveis, para arrefecer eventos climáticos. Muitos deles capazes de parar a cidade, destruir casas, arrastar memórias e, o pior, ceifar vidas humanas e não humanas.
A Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) – aprovada no dia 22 de setembro deste ano – mutila o espírito da Lei dos 12 Bairros. Os parâmetros não foram estabelecidos consoante as larguras das vias. Os afastamentos frontais foram diminuídos, o que revela pouco zelo com a qualidade arquitetônica do espaço público.
Nós, os moradores desses bairros, apenas 25 dias antes da sua aprovação, atinamos para o perigo iminente. Reuniões foram realizadas sob a guarida do Núcleo de Vivências e Lutas Democráticas Casa Forte. Procuramos a Prefeitura do Recife. Esta batia na mesma tecla: a proposta da LPUOS havia sido amplamente discutida com a sociedade civil. É verdade. Mas é verdade também que, nas apresentações a mensagem era que a nova Lei absorveria a dos 12 Bairros. Não foi. Nessas ocasiões, não eram mostradas à sociedade civil, com a devida clareza, as mudanças na legislação que passariam a nortear a produção do espaço nesse vasto território. Diante disso, solicitamos mais tempo para debater, o que não foi concedido.
O espírito da Lei foi estraçalhado pela LPUOS. Apesar disso, os moradores da região, a partir de diálogo com a prefeitura, conseguiram evitar maiores danos. As taxas de solo natural na faixa que margeia o Capibaribe e nos bairros de Casa Forte e Parnamirim permaneceram.
Espinheiro, Aflitos, Jaqueira e partes das Graças e Tamarineira – bairros fortemente saturados quanto às infraestruturas, notadamente viária – perderão sua qualidade ambiental. Passarão a ser um ajuntamento de prédios, com as principais vias ainda mais congestionadas, mais sujeitas a alagamentos. Isso porque as taxas de solo natural diminuíram (menos áreas permeáveis), os coeficientes de utilização aumentaram dramaticamente (mais adensamento construtivo, populacional e veicular), a altura das edificações, em porções importantes desses últimos bairros, não terá limite, aliás o céu será o limite. Acrescente-se ainda que o remembramento passa a ser mais flexível em todos os 12 bairros e, em extensão, um número maior de casarios será destruído.
A Lei dos 12 Bairros não sobreviveu à ganância das empresas do mercado imobiliário, à cobiça acolhida pelos representantes dos poderes executivo e legislativo municipais. Elas, as empresas, estão incessantemente alargando seus territórios de atuação. Não importa se avançando sobre comunidades pobres, as que mais precisam de cuidados urbanísticos. Não importa se destruindo a cidade existente já tão castigada. Surge assim a prova de que o comportamento desejável do mercado imobiliário, com forte impacto social e distributivo, só pode ser assegurado quando o poder municipal nele intervém, sendo a legislação urbanística um dos mecanismos mais poderosos.
Enfim, com a Lei recém sancionada, nós recifenses assistiremos declínios ambientais e paisagísticos. Estes serão os legados para as presentes e futuras gerações, apesar da vedação ao retrocesso ambiental e cultural consolidado na doutrina e na jurisprudência pátria.
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