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Liberação de posse de armas é mais um obstáculo à redução de feminicídios em Pernambuco

Raíssa Ebrahim / 17/01/2019

Foto: Fernando Frazão/Fotos Públicas

Pernambuco fechou 2018 com uma queda recorde no número de homicídios (23,4%), uma vitória, apesar do resultado ainda bastante alarmante. Foram 4.166 vítimas (em média, 11,41 por dia), quantidade acima do melhor resultado do programa Pacto Pela Vida, em 2013 (3.100).  O mesmo movimento, no entanto, não foi observado para os casos de feminicídio. Em 2017, 76 mulheres foram assassinadas pelo fato de serem mulheres. Em 2018, foram 75. A diferença foi de um caso, ou 1,3%. Os números devem ser bem maiores, uma vez que esse tipo de crime ainda é muito subnotificado.

O decreto que facilita a posse de armas no Brasil, assinado por Jair Bolsonaro (PSL) na terça (15), aumenta ainda mais o desafio de proteger a vida das mulheres num estado de frágeis proteção e assistência a elas e com uma política pública de segurança ainda baseada na repressão e no encarceramento.

Nos 15 primeiros dias do ano em Pernambuco, pelo menos seis mulheres foram vítimas de feminicídio, levando em consideração somente os fatos divulgados na imprensa. O levantamento tem sido feito pelo pesquisador e doutor em Direito Internacional pela USP Jefferson Nascimento num documento aberto. O resultado da quinzena já ultrapassa o total de quatro feminicídios registrados em dezembro de 2018 pela Secretaria Estadual de Defesa Social (SDS).

“Um homem com uma arma, em vez de bater, mata”, crava Carmen Silva, do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia. Ela avalia que, apesar da grande vitória do registro de crimes como feminicídios em Pernambuco e do decreto assinado em 2017 pelo governador Paulo Câmara e que conta hoje com um protocolo envolvendo múltiplos atores, as políticas ainda são quase inexistentes no sentido de coibir mortes anunciadas.

São assassinatos que não costumam acontecer de uma hora para outra, são fruto de uma escalada da violência nas relações entre homens e mulheres. Um estudo inédito do Ministério da Saúde obtido pelo Estadão mostra que, no Brasil, três em cada dez mulheres que morreram por causas ligadas à violência já eram agredidas frequentemente. O resultado do estudo foi obtido cruzando-se registros de óbitos e atendimentos na rede pública de saúde entre 2011 e 2016. Ou seja, são mulheres que já tinham procurado algum tipo de ajuda e não foram bem assistidas nem conseguiram proteção adequada.

Um levantamento feito pelo Instituto Sou da Paz com base no DataSUS aponta que em, 2016, 51,2% dos assassinatos de mulheres em Pernambuco envolvia armas de fogo e 36% das mortes envolviam armas nos domicílios.

“Imagine isso numa conjuntura da campanha e do governo eleito que reforça o estereótipo de gênero, libera posse de arma e se baseia na truculência até no discurso”, aponta Carmen. Na avaliação dela, o país vive uma “mudança de cultura de grave escalada do ódio, da irracionalidade, da crítica ao pensamento livre e elaborado, do fundamentalismo com ideias religiosas dominando o estado e as legislações”.

Isso tende a gerar um aumento da violência em geral e também da violência contra a mulher, sobretudo se ela não está dentro dos padrões moralmente aceitos, que tolhem a liberdade individual em prol do conceito tradicional de família, agora sob o guarda-chuva do novo Ministério da Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos. Esta semana muitas brasileiras têm compartilhado nas redes sociais depoimentos de agressões com a hashtag #SeEleEstivesseArmado com o objetivo de chamar atenção para a questão.

Excluindo áreas de conflitos, a América Latina é o lugar mais perigoso do mundo para as mulheres, sendo que o Brasil concentra 40% dos casos na região, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Em 2017, dos 2.795 feminicídios ocorridos na América Latina e Caribe, 1.133 foram no Brasil.

7 mulheres estupradas por dia

Somente em 2018, as delegacias do estado registraram 39.945 ocorrências de violência contra a mulher. Foram, em média, 109,4 casos por dia. Esse dado é 19,26% maior do que em 2017, quando 33.493 ocorrências foram registradas. Isso indica que mais mulheres procuraram as delegacias para prestar queixa contra seus agressores.

Os casos de estupro que chegam à polícia tiveram uma alta anual de 6,82%. Foram 2.361 denúncias em 2017 e 2.522 em 2018. Significa que, em média, quase 7 mulheres foram estupradas por dia.

A pedido da Marco Zero Conteúdo, a SDS informou que, de janeiro a dezembro de 2018, o números de homicídios de mulheres caiu 24%, saindo de 314, em 2017, para 239 em 2018. “Ou seja, não está havendo aumento da morte de mulheres, ao contrário. As polícias do estado estão tipificando mais como feminicídio os casos em que as mulheres são assassinadas pela condição de mulher, e punindo com maior rigor os agressores”, defende o governo.

Assistência e proteção

Pernambuco conta hoje com apenas quatro casas-abrigos funcionando em todo o estado. Os endereços são sigilosos, pois os locais acolhem mulheres ameaçadas. Entre 2013 e 2014, eram seis unidades, relembra a cientista política Natália Cordeiro, do Fórum de Mulheres de Pernambuco. “Como são locais sigilosos, a população e os movimentos sociais muitas vezes ficam sem ter como cobrar do poder público e essa situação se torna invisibilizada”, destaca Natália.

De acordo com Carmen, as informações que chegam aos movimento sociais são de que, apesar do aumento das denúncias de violência, o atendimento nas delegacias pernambucanas ainda deixa a desejar, seja pela lentidão ou pelo desdém de muitos profissionais ainda despreparados. Ou mesmo a ausência de delegacias e profissionais especializados em muitas regiões, sobretudo no interior. Vale destacar que a rede de delegacias conta com duas unidades inauguradas, no Cabo de Santo Agostinho e em Afogados da Ingazeira.

Carmen defende que a fragilidade das políticas públicas é a principal responsável pela permanência no número de feminicídios e que agora passa a estar associada e legitimada pelo discurso e pelas medidas do governo Bolsonaro. Ela aprofunda ainda mais a questão: por conta da falta de proteção e da fragilidade da rede de assistência, nem todas as mulheres conseguem sair de casa e se inserir no mercado de trabalho mantendo a saúde física e mental. “E aí ela não tem outra alternativa, a não ser permanecer nesse ciclo de violência.”

Balanço 2018

Pernambuco fechou o ano passado com uma redução de homicídios de 23,2% na comparação com o ano anterior. Foi a maior queda anual desde a implementação do Pacto Pela Vida. Em números absolutos, foram 5.427 assassinatos em 2017, o ano mais violento desde a série histórica, e 4.166 em 2018. Dezembro fechou como o 13º mês seguido de diminuição desse tipo de crime.

“Temos que celebrar, mas não podemos nos alegrar”, pondera Tales Ferreira, do Movimento PE de Paz e do Fórum Popular de Segurança Pública. Ele destaca a importância de se perceber que, quando se reduz o número de homicídios tendo como foco principal a repressão e o encarceramento isso tem um limite.

Sobre a divulgação dos dados, a SDS esclarece que ampliou o banco de estatística para consulta pública em seu site, dando maior transparência à divulgação de dados e informações  sobre a segurança pública. E, todo dia 15 de cada mês, além dos números de homicídios, são publicados motivações, locais das ocorrência e dados sobre as diversas modalidades de crimes contra o patrimônio, violência doméstica e estupro.

Foi por essa iniciativa, destaca a SDS, que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública colocou Pernambuco entre os Estados com maior transparência e confiabilidade na disponibilização de dados sobre segurança.

Tales defende que deveria haver ainda mais transparência nos dados abertos pela SDS. Sabe-se que, no Brasil, e em Pernambuco não é diferente, quem mais morre são jovens, pretos e pobres. Segundo a visão dele, se a segurança pública, que é um assunto multifacetado, não dialoga com educação, saúde e emprego – e não vemos o balanço falar nem cruzar esses índices – essa curva da queda dos homicídios não será sustentável.

O governo tem sinalizado mais fortemente para esse aspecto criando, na reforma administrativa do segundo governo Paulo Câmara (PSB), a Secretaria de Políticas de Prevenção às Drogas. “Mas ainda é só intenção. Continuamos vendo o governo calado diante de programas de prevenção”, Tales chama a atenção. “Pode chegar novamente o momento em que a violência pare de diminuir e volte a crescer.”

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com