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Linn da Quebrada no BBB amplia debate sobre linguagem, corpo e violência de gênero

Giovanna Carneiro / 27/01/2022

Crédito: Divulgação BBB/TV Globo

Lina Pereira, conhecida pelo nome artístico de Linn da Quebrada, é a segunda trans a participar do Big Brother Brasil. Diferente de Ariadna Arantes, mulher transexual que participou da 11ª edição do reality, em 2011, Linn não foi eliminada na primeira semana do programa e segue na disputa pelo prêmio de R$ 1,5 milhão.

Sua presença tem gerado debates por causa dos atos de transfobia praticados por outros participantes da casa, que afirmam ter dificuldade em saber como referenciar e se portar diante de uma travesti , usando a alegada falta de conhecimento para justificar violências de gênero.

Agitadora cultural, como gosta de se apresentar, Linn tem um vasto currículo e trabalha como atriz, apresentadora, diretora, cantora e compositora. Por essa razão, integra o time camarote – composto apenas por famosos -, apesar de não ter sido reconhecida por uma parte dos integrantes da casa. A participação da multiartista no reality foi vista por muitos como uma oportunidade de dar visibilidade para as pessoas travestis e não-binária, contribuindo também para o enfretamento de estigmas construídos no imaginário da população.

“É muito importante ter uma figura como Linn da Quebrada, uma travesti negra, sendo exibida no horário nobre na TV, sobretudo porque ela promove discussões políticas importantes nas suas obras. O BBB tem uma audiência enorme e eu acredito que é interessante promover um debate de gênero e fazer com que muitas pessoas que, antes não tinham acesso a esse tipo de discussão, agora possam ter”, afirmou Jarda Araújo, assistente social e secretária executiva de Juventude na prefeitura do Recife. Assim como Linn, Jarda se identifica como travesti e faz questão de ser tratada por pronomes femininos.

A prova de que Linn está ciente da importância política e social da sua passagem pelo reality estava estampada na camisa que a artista usou para entrar na casa. A peça de roupa trazia a imagem de Anastácia – mulher negra escravizada – esboçando um sorriso, e a frase “Anastácia Livre”. Anastácia costuma ter sua imagem veiculada com uma mordaça na boca e a peça de arte em que ela aparece liberta foi desenvolvida pelo artista visual Yhuri Cruz.

Linn estreia no BBB com a camisa "Anastácia Livre". Crédito: Gabriel Renné

“Nem homem, nem mulher, eu sou travesti”

Em seu primeiro discurso de apresentação na casa, Linn afirmou: “não sou home nem mulher, sou travesti”. O discurso confundiu algumas pessoas e levantou um debate sobre a diferença entre se identificar como uma mulher transexual, como se identificava a participante Ariadna Arantes, ou como uma travesti, como Linn.

De acordo com a pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança em Pernambuco e estudante de psicologia, Dália Celeste, a diferenciação do termo é estabelecida de uma forma política e social. “Quando a gente fala do termo trans a gente percebe um processo de higienização porque é muito mais bonito dizer ‘eu sou uma mulher trans’ do que dizer ‘eu sou travesti’, porque a identidade travesti é uma identidade histórica que carrega todo um processo de marginalização, por isso, quando se fala em travesti já remete à prostituição, à marginalização, à violência. É como se a palavra transexual viesse para trazer mais suavidade, é a mesma coisa de dizer ‘eu moro em uma periferia’ ou ‘eu moro na favela’”, afirmou.Dália também prefere ser identificada como travesti e afirma que a escolha é “algo totalmente político”.

Mesmo tendo explicado desde o primeiro dia do programa que se identifica como travesti e tendo o pronome “ela” tatuado na testa, Linn precisa reafirmar o tempo inteiro que quer ser referenciada pelos pronomes femininos e precisa corrigir os outros participantes que insistem em tratá-la no masculino. Atitudes transfóbicas que, muitas vezes, são justificadas por um “respeito” à língua portuguesa. Não é bem assim, explica Iran Melo, doutor em linguística pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Observatório Brasileiro da Linguagem Inclusiva de Gênero: “A questão é menos linguística e mais um debate político de caráter lógico sobre o gênero, porque todas as vezes que a gente precisa dar conta da realidade e dar existência às coisas, a gente usa a linguagem. O que acontece é que a gente tem uma convenção cultural, colonial e ocidental, de gênero, corporeidade, subjetividade e sexualidade, que está marcada em uma binaridade masculino e feminino”, declarou.

“Quando a gente não sabe qual é o gênero identificado das pessoas, ao invés de usarmos formas que não vão enquadrá-las nas maneiras que revelem a binaridade, a gente vai elegendo as formas masculinas como generalizantes e isso é consequência de vivermos em uma sociedade masculinista. A gente faz uma relação de correspondência entre a linguagem e o que a gente tem na nossa cultura, mas a gente já possui várias formas na língua que dão conta da fuga da binaridade, a exemplo disso está a própria palavra pessoa”, completou o pesquisador.

Melo afirmou ainda que a construção de uma linguagem menos masculinista teve início no final do século XX e no início do século XXI com o trabalho das feministas e tem ganhado ainda mais força com a reivindicação das pessoas não-binárias. “Está havendo uma glotopolítica, ou seja, uma política que promove construções na língua. Construções de linguagem em prol da visibilidade, representatividade e inclusão das pessoas não-binárias. Infelizmente, esse movimento ainda enfrenta bastante resistência de fundamentalistas que afirmam que isso é uma ameaça ao nosso idioma, mas essas pessoas se esquecem que a língua é aquilo que a gente faz a todo instante dentro das interações. E o mais importante é que ela seja compreensível”, finalizou.

A transfobia e o entretenimento

Se referir a uma pessoa travesti ou transexual como traveco; chamar Linn de “amigo”; mandar um torpedo para Linn perguntando se ela está “solteiro”; cobrar que Linn seja didática e ensine com paciência sobre transfobia. Essas foram as violências sofridas por Linn em sua primeira semana na casa e que, provavelmente, atingiram todas as pessoas LGBTQIA+ que acompanham o Big Brother Brasil.

“Existe um conjunto de acontecimentos que têm impactado a forma como a sociedade brasileira olha as travestis. O espanto que a participação de Linn causa diz muito mais sobre as expectativas que o público tem sobre o corpo e a postura de uma travesti e sobre como ela tem quebrado essas expectativas. As pessoas não ficam desconfortáveis com a Linn e sim com a decepção de ver toda a desconstrução que ela está promovendo, as pessoas estão convivendo com uma pessoa calma, inteligente, sensível, não é uma pessoa violenta, indo de encontro aos estereótipos”, afirmou Caia Maria Coelho, pesquisadora e vice-coordenadora da Nova Associação de Travestis e Transexuais de Pernambuco.

Caia lamentou a postura do programa em não denominar publicamente o que acontece na casa como transfobia. “No domingo, Tadeu [apresentador do programa] perguntou a Linn porque que ela tinha a palavra “ela” tatuada na testa e Linn se posicionou. Foi um posicionamento importante, mas eu acho entristecedor que a palavra transfobia não tenha sido usada pelo apresentador do programa, porque essa violência precisa ser nomeada e mais ainda, ela precisa ser tratada não apenas como crime, mas também como uma política midiática e de estado ”, disse.

A atitude do apresentador aconteceu após a participante Laís Rodrigues mandar um torpedo anônimo para Linn perguntando se ela estava “solteiro”.

“O crime de transfobia está equiparado ao racismo, então quando a gente fala do racismo é preciso que o ato danoso tenha atingido todo um grupo, por isso que a gente quase nunca vê ninguém sendo condenado por racismo. Por isso que nesse caso de Laís e Linn a gente vê que a transfobia aconteceu, mas juridicamente ela não se equipara, porque não está atingindo um grupo por completo. Poderiam equiparar com uma injúria e não tratar como homofobia ou transfobia”, explicou a pesquisadora Dália Celeste.

A falta de acolhimento

Apesar de contar uma forte torcida do público, Linn da Quebrada tem passado por momentos de solidão dentro do reality. Antes da formação do paredão a artista temeu que fosse votada pelos participantes, o que não aconteceu. O alívio de não ter ido para a eliminação durou pouco, pois já no dia seguinte, na dinâmica conhecida como “jogo da discórdia”, os participantes da casa precisavam escolher quem eles consideravam que seriam os três favoritos para chegar à final da competição. Linn não fez parte de nenhum dos pódios, o que a deixou bastante abalada.

“Ninguém votou na Linn para ir ao paredão, mas também ninguém colocou ela no pódio. Então aí a gente vê o jogo da cisgeneridade, que é pensar o seguinte: ‘não vou votar nela para o Brasil não pensar que eu sou transfóbico ou transfóbica, mas eu também não quero ela no meu grupo’. É a mesma coisa que a gente vive diariamente aqui fora, você pode ocupar aquele lugar, mas em compensação ninguém vai criar vínculos e estabelecer relações com você”, analisou Dália.A estudante de psicologia relembrou de um caso parecido que ocorreu com ela nos primeiros anos da faculdade, quando foi excluída dos trabalhos em grupo sem nenhuma justificativa.

A pesquisadora Dália Celeste sabe do que está falando quando se refere à violência transfóbica: em março de 2018, ela foi espancada por dois homens no campus da UFPE.

Outros dois participantes, além de Linn, também não foram colocados nos pódios dos demais, mas não ficaram tão abalados quanto a artista e Jarda Araújo explica o porquê: “A falta de acesso, a negação de espaços, a dificuldade de ser observada e ser entendida como alguém apto para estar em determinado lugar, são diversos fatores que, pra nós enquanto pessoas negras, pessoas trans e travestis, têm um peso bem maior e rebate nas nossas corporalidades de uma forma bem mais intensa. Atos como esses fazem a gente questionar se de fato aqueles espaços são para nós, mesmo que a gente tenha capacidade de estar ali e aptidão para construir uma caminhada, no caso da Linn, até o pódio”.

Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.

AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.