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Ato do Dia Nacional da Consciência Negra, em 2021, no Centro do Recife. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Por Myrella Santana
Viver o dia 30 de outubro de 2022 foi emocionante. Não tem outra palavra pra descrever o que foi a noite desse dia, o que foi a ansiedade, os fogos, a festa, os gritos, o choro. A cidade do Recife foi tomada de gente festiva do centro a periferia. Todo dia nessa semana que antecedeu o segundo turno das eleições, todas as vezes que eu colocava os pés pra fora de casa, ainda cedinho, meus vizinhos perguntavam: domingo a gente ganha né? E ganhamos!
Eu vi a favela festejar como há muito tempo não via. Eu vi esperança nos olhos da minha mãe e a única coisa que importava naquele momento, era essa felicidade que inundava todo mundo. Lula presidente! Quatro anos de muitos pesadelos acabaram, mas ainda não significa que o sonho começou. Antes de falar desse sonho de Brasil, queria falar de Pernambuco. Raquel Lyra foi eleita a primeira mulher governadora de Pernambuco.
Um mandato que será abertamente de direita e que teve a campanha no segundo turno apoiada por ninguém mais e ninguém menos que os Collins e Tércios. O Brasil tem um presidencialismo de coalizão, o que não nos permite ter a ilusão ingênua que, escolher subir no palanque com Raquel ao invés de escolher a “neutralidade” foi apenas pela necessidade política de se posicionar.
Me questiono sobre quais lugares estão sendo pensados para essas duas famílias em seu governo. A escolha dessas secretarias me preocupa muito mais do que os ministérios na conjuntura nacional. As famílias que defendem a família, mas vão pra frente do Cisam chamar uma criança de assassina depois de ter sido abusada.
Até as pessoas mais conservadoras que conheço, e que são contra a descriminalização do aborto, entendem que é desumano não assegurar esse direito nos casos isolados já garantidos em lei, como no de estupro. Vi vários veículos de comunicação falarem novamente sobre isso nesse último mês, e de fato, não podemos deixar esquecer.
Uma segunda coisa que me incomoda é essa neutralidade sem medida da futura governadora. No seu discurso, no domingo, disse que traria Lula pra junto com a intenção de fazer uma gestão integrada com o governo federal, mas durante a sua campanha não tomou lado uma única vez, o que avalio ter relação direta com a minha primeira pontuação: o palanque bolsonarista que, além das duas famílias, reúne também a família Coelho.
Não assume compromisso com o piso salarial e não sabe o que pensa sobre câmera na farda dos polícias, Raquel sabe de pouquíssimas coisas quando já deveria saber de tudo. Muito semelhante ao governo PSB que ela tanto critica. Quero saber o que Raquel acha do pacto pela vida e do atual modelo de escola em tempo integral. De uma coisa eu tenho certeza, toda essa neutralidade vai impactar diretamente a periferia, como sempre. O problema é que não sabemos ainda até que ponto ou em que medida.
Vale reafirmar que, para nós, mulheres feministas, termos Raquel Lyra governadora de Pernambuco não significa efetivamente nenhum avanço para nós mulheres, pois ela não tem compromisso com nenhuma das nossas pautas. Essa neutralidade materializa ainda mais isso. Além disso, Pernambuco é um dos 10 estados com a maior população negra do Brasil e não tem absolutamente nada em seu plano de governo sobre isso. No observatório da segurança pública de Pernambuco, ela não pretende levar o quesito raça/cor em consideração? Os desafios para os movimentos sociais e organizações aqui em Pernambuco triplicaram.
Desde o meu primeiro texto aqui na Marco Zero Conteúdo coloco abertamente a minha insatisfação com relação à solução, melhoria e avanços nesse país sempre estar no colo da branquitude. A mesma que nunca resolveu nada. A favela ficou feliz como nunca, a gente celebrou tudo o que podia celebrar, a gente merecia descansar e chorar, depois de quatro anos com medo até de falar. Entretanto, sabemos que a eleição de Lula não significa 1% a menos de luta para nós, mulheres negras. E a luta agora é fazer com que o dia 2 de janeiro não seja como o 14 de maio de 1888.
Essa vitória tem que vir acompanhada de melhorias efetivas para o maior grupo demográfico residente neste país: as mulheres negras. Paridade de raça tem que ser considerada nos ministérios, o compromisso com a erradicação do racismo tem que ser prioridade na construção de toda e qualquer política pública. A eleição de Lula significou a preservação do sistema democrático, mas esse foi um sistema que nós nunca experienciamos.
Em 2023, um dos maiores compromissos que Lula deve assumir é que a população negra possa conhecer e desfrutar dessa democracia que tanto foi defendida ao longo da campanha. A fome, a miséria, a bala, a morte, não chegou na favela em 2018 e ele sabe disso. E como falei anteriormente: a esquerda branca precisa se responsabilizar pelas pedras que colocaram no nosso caminho. Não queremos estar sub-representadas, queremos estar no governo Lula. Queremos condições concretas para, em 2026, termos a primeira mulher negra eleita presidenta da República. Os partidos de esquerda precisam ter esse compromisso. Esse é o sonho do Brasil que queremos.
Na tarde desta terça-feira (1), Jair Bolsonaro fez seu primeiro posicionamento público depois da derrota amarga do domingo. Um discurso que pode dizer tudo e que também pode dizer nada, como sempre. Questionou a legitimidade do processo eleitoral, fez o agradecimento mais vazio que já vi e pronto. Isso nos pede uma atenção redobrada para os próximos dois meses, o neoliberalismo se alimenta do pavor e caos gerados. É isso que Bolsonaro vem tentando fazer com seu silêncio.
Essa eleição, pra mim, foi a oportunidade de construir outras possibilidades. O futuro precisa ser agora. Eu quero ver a favela celebrando por ter um dos nossos lá. Eu quero que a igreja não seja a única a oferecer esperança de outros futuros possíveis e reais. Emicida traz, em um trecho de Ismália, que pra mim fala muito sobre tudo isso:
“Olhei no espelho, Ícaro me encarou:
“Cuidado, não voa tão perto do sol
Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei”
O abutre quer te ver drogado pra dizer:
“Ó, num falei?!””
Que a eleição de Lula seja uma oportunidade de caminho, mas jamais o fim. Que possamos rever as estratégias, visualizar novos horizontes e entender que a mudança não se faz no processo eleitoral, mas o processo eleitoral depende da mudança que fazemos no dia a dia. E que o Brasil se prepare para o que está por vir: uma mulher negra travesti fazendo seu discurso presidencial de reintegração de posse. Quando me perguntam o que quero, eu digo que quero tudo. Principalmente, meu nome escrito no jornal e não é por notícia policial.
Ver a favela celebrando a vitória de Lula reafirmou que a política de verdade se faz lá, nós levamos esse país nas costas. Que esses próximos quatro anos sejam de esperança, avanços e muita luta. Para além de todos os desafios colocados até aqui e dos milhões de outros que vão suceder, só conhece o peso dessa vitória quem sabe as dores e delícias de uma construção coletiva.
*Myrella Santana é graduanda em Ciência Política na Universidade Federal de Pernambuco. Integra a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e a Articulação Negra de Pernambuco. É Diretora Operacional e pesquisadora na Rede Internacional de Jovens LBTQIA+.
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