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“Hoje em dia eu me encontro doente, com meu psicológico doente, porque eu não consigo esquecer o que passei ali”. É assim que Givanilda Lopes relembra a ação de despejo que a obrigou a deixar a casa em que viveu por 33 anos.
Ex-moradora da Vila Esperança, no bairro do Monteiro, dona Gil – como era conhecida na comunidade – lutou até o último dia por uma indenização justa, mas não recebeu o que esperava. A casa em que morava na Zeis Vila Esperança foi construída por ela para abrigar sua família: a irmã, seu ex-marido e seus dois filhos. Ela ergueu e reformou o imóvel com as próprias mão. Literalmente.
Agora, um ano após ter sido despejada para dar lugar às vias de acesso à ponte Engenheiro Jaime Gusmão, dona Gil possui uma nova moradia, mas ainda convive com a insegurança.“Eu comprei uma casinha no Alto do Mandú, com a ajuda de uma pessoa, por que a indenização que eu recebi da prefeitura foi muito baixa, e não deu pra eu comprar em outro lugar. Então, eu ainda não consegui comprar uma casa com documento, comprei uma casa com termo de compra e venda só. Agora eu estou sofrendo pra fazer a documentação, pra ver se eu ganho o título de posse da casa”, conta a dona de casa.
A mudança de ambiente também tem trazido transtornos para quem estava acostumada a conviver com uma vizinhança tranquila: “eu já me aperriei muito aqui, com zoada de vizinho, com jogo de bola na minha porta. Um ano que eu tô morando aqui e já me aperriei muito”. E além dos transtornos psicológicos enfrentados desde a desapropriação e demolição de sua casa, o caminho para sua nova residência é cheio de ladeiras, o que agrava as dores causadas pela hérnia de disco.
O que se passou com os moradores da extinta Vila Esperança definem o que o relatório Sem moradia digna, não há futuro da Habitat para a Humanidade Brasil define como um “despejo invisibilizado”, marcado por remoções forçadas, sem planejamento e ausência de alternativas dignas e seguras de moradia. Sem a garantia da posse e submetidas a obras públicas que ignoram a escuta comunitária, mulheres negras seguem sendo as maiores vítimas do déficit habitacional no Brasil.
De acordo com os dados da pesquisa que tem o objetivo de expor as desigualdades de raça, gênero e classe no acesso à moradia, mesmo com emprego estável e vivendo nas condições mais favoráveis possíveis, uma mulher negra levaria 184 anos para comprar uma casa própria em uma favela no Brasil.
O estudo analisa dois aspectos fundamentais do direito à moradia a partir da perspectiva das mulheres: a segurança da posse (proteção contra despejos e remoções forçadas) e o direito à água, saneamento e higiene. As informações foram reunidas ao longo de cinco anos em 106 comunidades populares, favelas e ocupações urbanas em capitais e regiões metropolitanas. Confira o relatório completo no link.
Segundo o relatório Sem moradia digna, não há futuro da Habitat para a Humanidade Brasil, 62,6% das famílias em situação de déficit habitacional são chefiadas por mulheres. São mães solo, cuidadoras, trabalhadoras informais que, com salários baixos, enfrentam o dilema cotidiano entre comer ou pagar o aluguel. Essa realidade, denominada de “feminização do déficit habitacional”, reflete o peso do trabalho não remunerado, a falta de renda formal e a sobrecarga do cuidado, fatores que atingem desproporcionalmente as mulheres, sobretudo as mulheres negras.
“A conta não fecha”, afirma o estudo ao mostrar que, mesmo uma mulher negra com renda média de R$2.745,76 e despesas básicas reduzidas ao mínimo, só conseguiria economizar R$31,62 por mês. Nesse ritmo, levaria quase dois séculos para que essa mulher conseguisse comprar um imóvel avaliado em R$69.828,57, valor médio das casas nas maiores favelas brasileiras.
Dados da pesquisa Sem moradia digna, não há futuro
Crédito: Divulgação/Habitat BrasilAlém da exclusão econômica, as mulheres também são as principais vítimas de remoções forçadas, muitas vezes associadas a processos judiciais, obras públicas ou ações de milícias e do crime organizado. Desde 2020, quase um milhão de mulheres e meninas foram despejadas ou vivem sob ameaça de despejo, de acordo com dados da Campanha Despejo Zero, iniciativa que colabora com o relatório.
A violência doméstica também é uma face cruel dessa realidade: muitas mulheres são forçadas a abandonar seus lares para escapar de relacionamentos abusivos, entrando diretamente para as estatísticas do déficit habitacional.
A situação é agravada por projetos de lei que criminalizam a luta por moradia. A Campanha Despejo Zero já identificou pelo menos 30 Projetos de Lei (PLs) em tramitação que propõem medidas como aumento de penas por ocupações, criação de cadastro de “invasores” e até a exclusão de pessoas sem moradia de concursos públicos ou programas sociais como o Bolsa Família.
Apesar das adversidades, são também as mulheres que lideram os movimentos por moradia em todo o país. Em ocupações urbanas e rurais, estão à frente da gestão coletiva, das lutas jurídicas e das ações de resistência cotidiana. “Elas constroem, dia após dia, um país possível”, afirma Raquel Ludermir, gerente de Incidência Política da Habitat Brasil.
“Sem moradia digna, as mulheres têm pagado um preço alto – que custa seu tempo de vida, sua saúde física e mental, a possibilidade de estudar, trabalhar, descansar e sonhar com um futuro melhor, um futuro mulher”, conclui Raquel.
O relatório também alerta para a ineficácia das políticas públicas atuais. De acordo com a pesquisa, a média de tempo de espera no cadastro habitacional é de 7,7 anos, muito além dos 12 a 24 meses previstos oficialmente. Diante de tantas adversidades, para milhares de famílias, a moradia digna continua sendo apenas uma promessa distante.
Dados levantados pela Campanha Despejo Zero
Crédito: Reprodução/Campanha Despejo ZeroJornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.