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Marcha da insensatez: em meio à pandemia do coronavírus, bolsonaristas vão às ruas

Maria Carolina Santos / 15/03/2020

Manifestação em Boa Viagem, foto postada por Bolsonaro

No banco dianteiro do carro, a deputada estadual Clarissa Tércio (PSC)) levanta o celular e pergunta para a filha, no banco de trás: qual o vírus que mais mata nesse país? Com a camisa preta que marcou a campanha de Jair Bolsonaro (sem partido) à Presidência, a menina responde candidamente: “A corrupção!”. Clarissa vira para a câmera e, com um largo sorriso, diz o slogan bolsonorista (“Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”). As duas estavam a caminho da manifestação em apoio ao presidente, que levou uma aglomeração de apoiadores de Bolsonaro para a Avenida Boa Viagem, na zona sul do Recife, na tarde deste domingo. Teve até trio elétrico.

A manifestação aconteceu mesmo com o decreto no sábado do governador Paulo Câmara (PSB) proibindo eventos com mais de 500 pessoas no estado. Ocorreu mesmo com a tensão em torno de como o Brasil vai lidar com a pandemia do coronavírus, que já levou à beira do colapso os sistemas de saúde da Itália e da China.

Ocorreu no mesmo dia em que o prefeito do Recife, Geraldo Júlio (PSB), anunciou que as escolas públicas e privadas do Recife vão antecipar as férias a partir de quarta-feira (18). Os pais vão poder retirar um kit merenda para os filhos uma vez por semana nas escolas públicas municipais. Não há planos alternativos para quem não conseguir ficar com as crianças em casa.

Também foi anunciado que o Recife não vai mais receber voos internacionais a partir do dia 20, próxima sexta-feira. Navios de cruzeiro foram proibidos de atracar no porto do Recife pelo decreto do governador: lá, ainda está o navio proveniente das Bahamas e com pelo menos dois casos já confirmados da Covid-19, a pneumonia viral causada pelo coronavírus.

Universidades e institutos federais em Pernambuco anteciparam a reunião que aconteceria amanhã e decidiram hoje suspender as aulas a partir de amanhã. A decisão vale até o final do mês.

As medidas não são extremas: o coronavírus tem altíssimo grau de transmissão e, como é um vírus novo, a população não tem imunidade contra ele. Já são 169.211 casos no mundo, com 6.492 mortes. Apesar da mortalidade ser relativamente baixa, abaixo de 3%, a taxa de hospitalização chega a até 20%, o que sobrecarrega o sistema de saúde. E em um país com o sistema já deficitário, os prognósticos são preocupantes.

Em todos os países em que o vírus foi registrado, ele apenas foi contido após a adoção de medidas rígidas de distanciamento social. A Itália está de quarentena, medida que já foi adotada também em regiões da Espanha. A China só conseguiu baixar a curva de propagação após isolar o estado de Wuhan. Sete países europeus estão com suas fronteiras fechadas, como Noruega e Polônia. Os Estados Unidos vetou voos da Europa.

Até o Estado Islâmico emitiu comunicado avisando para seus terroristas evitarem a Europa, por conta do risco da pandemia.

Enquanto isso no Brasil…

Bolsonaro parece usar o momento para reafirmar sua inépcia para o cargo. Em um ato de desprezo pela ameaça do coronavírus, ele deixou hoje o relativo isolamento em que estava após viagem aos EUA, em que pelo menos quatro pessoas da comitiva foram diagnosticadas com a Covid-19. Na sexta-feira, ele afirmou nas redes sociais – com uma foto dando banana – que os testes nele deram negativo. Mesmo assim, deve repeti-los no começo desta semana.

Seria normal que, em meio a uma pandemia, inclusive com casos confirmados no Congresso e no Palácio do Planalto, o presidente estivesse preocupado com políticas públicas para conter não só a crise na saúde, mas também a crise econômica que já está ocorrendo e deve se intensificar. Mas Bolsonaro foi mais Bolsonaro do que nunca neste domingo de tensão.

O twitter do presidente passou o dia todo publicando imagens das manifestações pelo Brasil afora – que ele, de forma reticente, pediu para serem “repensadas” na quinta-feira, aproveitando seu tempo em cadeia nacional para falar somente aos seus apoiadores.

À tarde, o presidente deixou o Palácio e cumprimentou, com apertos de mão, um grupo que lá estava. Pegou celulares de seus apoiadores e tirou fotos. Correu com uma bandeira do Brasil.

No Recife, desperdício de máscaras e “Paulo Câmara comunista”

Nas redes sociais, grupos de direita tentaram oficialmente lavar as mãos pela manifestação de hoje na Avenida Boa Viagem. O Endireita Pernambuco publicou vídeo do pré-candidato a vereador Nelson Monteiro criticando o governador Paulo Câmara (PSB) pelo decreto que proíbe aglomerações acima de 500 pessoas. A atitude foi vista como um artefato para única e exclusivamente proibir o ato. Na página, o governador é chamado de “comunista”.

A deputada estadual Clarissa Tércio (PSC) foi das mais engajadas. Antes do ato, publicou no instagram uma foto com o marido e as filhas em verde e amarelo: “Dia maravilhoso para passar na orla de Boa Viagem em família. Nordestinos pelo Brasil”. Foi criticada por alguns, mas seus apoiadores já trataram de responder: “Pode ficar em casa, em sua comodidade, nós iremos e continuaremos lutando pelo Brasil”, respondeu uma de suas seguidoras a uma crítica.

No sábado à noite, Clarissa participou de um evento da rádio evangélica da família Tércio, o Cruzadas Novas de Paz, que reuniu bem mais de 500 pessoas, sob chuva, em Carpina. “Um mundo assustado precisa de uma igreja corajosa”, postou hoje Clarissa. É a mesma tática de negação que o bispo Edir Macedo está usando: em vídeo, ele afirmou que o coronavírus não mata e que Satanás e a imprensa querem promover o medo.

Nos stories da deputada durante o ato, várias pessoas apareciam desperdiçando máscaras cirúrgicas – itens que já faltam nas farmácias e lojas, e que devem ser usados principalmente por pessoas doentes e profissionais da saúde. Na manifestação, os vídeos mostram as pessoas com as máscaras arriadas e pintadas.

O grupo Endireita Pernambuco postou uma foto em que um casal usa máscaras com a frase “O vírus que mais mata no Brasil é a corrupção”. Faixas e cartazes contra o Congresso e o STF são facilmente vistas.

Ao final dos atos pelo Brasil, os principais sites de notícias mostravam notícias aterradoras da Itália: 368 mortes em 24 horas, com 3.590 novos casos. Por lá, já são 24.747 infectados (testados) e 1.809 mortes. No Brasil, Bolsonaro segue postando imagens verde e amarelo de aglomerações no Twitter. É, mais claro do que nunca, a política do caos.

Prisão por descumprir o decreto

Um dos organizadores da manifestação foi detido pela Polícia Civil de Pernambuco por descumprir o decreto que proíbe a realização de eventos públicos com mais de 500 pessoas no estado. Outro homem, de 57 anos, também foi detido, por desacato à autoridade policial.

De acordo com nota da Secretaria de Defesa Social, o Ministério Público de Pernambuco, por meio da Promotoria de Justiça Plantonista da Capital, recomendou à Secretaria de Defesa Social a “adoção de medidas para evitar a realização de eventos de qualquer natureza com público superior a 500 pessoas”.

A nota da SDS, enviada na noite deste domingo para a Marco Zero, afirma que “neste momento, o rapaz de 21 anos (está) sendo ouvido na Delegacia de Boa Viagem. Além dele, um homem, de 57 anos, também foi autuado e está prestando depoimento. Nesse último caso, por desacato à autoridade policial por ter invadido a delegacia e desrespeitado a equipe de servidores de plantão neste domingo. Nos dois casos, foram lavrados Termos Circunstanciados de Ocorrência (TCO).”

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com