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Nada neste país se conquistou de graça. Jesus chorou, mas também lutou

Marco Zero Conteúdo / 11/10/2022

Crédito: Facebook Racionais MC

“Cadê meu sorriso? Onde tá?
Quem roubou?
Humanidade é má e até Jesus
chorou
Lágrimas, lágrimas
Jesus chorou” – Racionais MC

Por Myrella Santana

Dentro da favela a gente conhece duas versões de Jesus. A primeira, é apresentada na igreja (católica conservadora e evangélica, principalmente, pentecostal). Que é branco, de olhos claros, barbudo, o salvador benevolente que morreu por nós e por isso devemos nossa vida a ele. Aquele que sabe o que faz e devemos deixar tudo no controle dele. Apanhando do marido? Peça a Deus para que toque o coração dele. Foi estuprada? Peça a Deus que te ensine a perdoar. Um modelo de família, um sonho de vida, uma possibilidade de dignidade. Todo jovem preto já sonhou em ser um homem trabalhador e de Deus, aquele que vai ser honrado.

A segunda versão, na verdade, foi a primeira que eu conheci, quando escutei Jesus Chorou, Vida Loka parte 1 e Negro Drama de Racionais MC. Um jovem preto, olhos escuros, distantes e atentos, que já nasceu sabendo o que é pecado, mas raramente sabendo o que é paternidade. O Jesus esquecido, o Cristo que foi crucificado. O que não defende tortura ou violência. O que foi chamado de bandido e foi morto. Que vem da periferia, filho de Maria’s, Vera’s e Ana’s. O Jesus que não é neutro, e como diz o próprio Racionais: “Vigia os ricos, mas ama os que vem do gueto”.

Todo jovem preto favelado conhece essas duas versões. A primeira, através de uma idealização e expectativa de ter uma vida minimamente digna. Eles vendem a ideia de que o problema desse jovem é não ter aceitado Jesus, mas não dizem que aceitar Jesus não vai mudar o racismo, a falta de políticas públicas e a garantia de direitos básicos. Ao longo de toda a história eles utilizaram a religião para controlar e manipular, hoje não é diferente. Dizem que Deus não é político, mas política sempre é sobre Deus. A outra versão é a realidade. É o Brasil real que não dá pra esconder quando a pregação acaba, é a realidade favelada.

Nesses últimos 10 anos, pudemos observar um avanço gradativo do fundamentalismo e do conservadorismo em todo o país. Não há uma favela que você entre e não encontre uma igreja. E eu me pergunto, será que de fato as favelas estão cada vez mais se tornando conservadoras ou elas veem nesses espaços uma esperança de vida digna, como coloquei acima? Desde 2018, a esquerda tem feito um movimento para tentar cada vez mais responder a seguinte pergunta: como chegar nos evangélicos e evangélicas dentro das periferias?

Essas são perguntas que não me arrisco a responder, mas me questiono se o resultado do primeiro turno dessas eleições no estado de Pernambuco não poderiam ter sido diferentes se soubéssemos essas respostas. Os dois mais votados para deputados federais e estaduais são aqueles que hoje carregam a marca do fundamentalismo na sua faceta mais violenta e perversa. André Ferreira (PL), Clarissa Tércio (PP), Junior de Tércio (PP) e Coronel Alberto Feitosa (PL), os dois primeiros para federais e os dois últimos para estaduais, respectivamente.

Falam em nome de Deus, mas defendem tudo o que ele não é. A moral e os bons costumes que sempre silenciou mulheres e passou a mão sobre a cabeça de agressores. A família tradicional, que é construída a partir das mais plurais formas de violência, a mesma que tira foto com arma na mão e a bíblia debaixo do braço. A hipocrisia materializada em nome de um Jesus que nunca existiu. O Jesus real sabe que a família tradicional brasileira foi descrita por Racionais, quando ele falou que:

“Daria um filme
Uma negra e uma criança nos braços
Solitária na floresta de concreto e aço
Veja, olha outra vez o rosto na multidão
A multidão é um monstro sem rosto e coração
Hei, São Paulo, terra de arranha-céu
A garoa rasga a carne, é a Torre de Babel
Família brasileira, dois contra o mundo
Mãe solteira de um promissor vagabundo”

A maioria dos lares deste país são chefiados por mulheres. São mães, avós, tias, vizinhas. Essa é a configuração real da maioria das famílias. Que, inclusive, nunca foi representada na política brasileira tradicional. Essas mulheres que sempre estiveram na luta e no front, sendo ponta de lança para qualquer construção ou mudança efetiva em todo o país. Na luta para manter seus filhos vivos, na luta pela dignidade, na luta pela garantia de direito. As mesmas mulheres que vão fazer oposição a essas bancadas fundamentalistas que, apesar de terem se fortalecido, a gente também se fortaleceu. Os mais de 80 mil votos em Robeyoncé Lima é a prova materializada que Pernambuco é muito mais. Dani Portela, Rosa Amorim e Tereza Leitão eleitas deputadas e senadoras também.

O trabalho não começou agora e não tá nem perto de acabar. O primeiro turno das eleições mostrou para a esquerda que rever as estratégias é fundamental, junto ao que de fato estamos priorizando na hora de materializar esse projeto de sociedade que tanto defendemos. Já para o segundo turno, os desafios triplicaram. Eleger Lula presidente e, aqui em Pernambuco, quem tem minimamente coragem de se opor ao atual Governo Federal e subir no mesmo palanque do nosso futuro presidente Lula. Na última semana, movimentos sociais, partidos e figuras políticas importantes têm declarado voto e apoio crítico à candidatura de Marília Arraes. A única candidata disputando o segundo turno que fez e faz campanha para Lula.

A cada pesquisa uma nova esperança na possibilidade do Brasil sair desse buraco sem fundo que ele entrou. Na rua, a luta não é apenas para tentar virar voto para Lula e Marília, mas convencer as pessoas que Jesus é muito mais do que a primeira versão apresentada nesse texto e que Bolsonaro não é messias. O Brasil é um país constitucionalmente laico. Entretanto, o assunto principal dessas eleições tem sido o debate religioso. Nesse último final de semana fui chamada pelos meus irmãos para conversar com um colega deles de 14 anos que era bolsonarista. No primeiro minuto de conversa, ele falou que Lula disse que ia fechar as igrejas, que o Brasil é um país cristão e que Bolsonaro nunca proibiu ninguém de ter outra religião, mas que os brasileiros cristãos deveriam ter privilégios em detrimento dos outros.

Eu, mulher de axé, tenho falado de Jesus e do cristianismo nos últimos 10 dias mais do que os próprios cristãos. Não acredito que o Brasil esteja se tornando majoritariamente conservador, acredito que as pessoas estejam sedentas por alguém que possa salvá-las do Brasil real descrito por Racionais e de todos os males que acreditam ter nos levado para esse buraco. Procuram um herói na mesma medida que procuram alguém para culpar. É o fantasma do comunismo, o PT, Lula, a esquerda, as feministas, o MST. O avanço dos projetos neoliberais é fruto do medo, não de quem se opõe a ele, mas principalmente de quem o defende.

Nada neste país se conquistou de graça. Jesus chorou, mas também lutou. As igrejas lotadas dentro das periferias não são compostas majoritariamente por quem tem dinheiro, mas por quem precisa de uma esperança para se manter vivo. Uma esperança de seus filhos vivos e não encarcerados. Uma esperança de vida digna e não da miséria. Um Brasil nunca visto é um Jesus só conhecido nas periferias. Bolsonaro vai sair e o nosso desafio para além de derrotar a barbárie, é apresentar outras possibilidades de esperança para este país. Olhar a favela e a juventude como principais instrumentos de mudança na configuração atual, entendendo que não se deve voltar para a base pra fazer política, porque toda política já é feita nela.

*Myrella Santana é graduanda em Ciência Política na Universidade Federal de Pernambuco. Integra a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco e a Articulação Negra de Pernambuco. É Diretora Operacional e pesquisadora na Rede Internacional de Jovens LBTQIA+.

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