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“Ninguém solta a mão da educação”. Como foi o ato contra os cortes de verbas das universidades no Recife

Mariama Correia / 16/05/2019

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

O ponto de partida do ato contra o bloqueio de verbas da educação pública, no Recife, não poderia ter um nome mais adequado: Rua da Aurora. No endereço que remete à esperança de novos começos, algo realmente diferente aconteceu nesta quinta-feira (15). A onda de gente começou a ser formar em frente ao Ginásio Pernambucano, uma das instituições mais tradicionais do ensino público do estado. Por volta das 16h30, ela se alastrou pelo centro do Recife. A multidão percorreu as avenidas Cruz Cabugá e Conde da Boa Vista, entre as principais da cidade,  gritando “não” aos cortes de exatos 24,84% do orçamento discricionário (gastos não obrigatórios, que incluem despesas de custeio) das universidades e institutos federais, anunciado pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL). Ao todo são 1,7 bilhão a serem cortados.

A defesa da educação pública conseguiu, em tempos de polarização política, mobilizar estudantes, professores, sindicatos, movimentos sociais e trabalhadores de vários segmentos e vertentes em torno de um objetivo em comum. Manifestações semelhantes foram registradas em pelo menos 200 cidades de todos os estados do País. Foi o primeiro grande protesto da população nas ruas desde que Bolsonaro foi eleito. Os organizadores, entre eles a União Nacional dos Estudantes (UNE) falaram em 50 mil pessoas presentes na manifestação recifense. A polícia não deu estimativas de público.  No Facebook, a UNE informou que “mais de 1,5 milhão de pessoas em todo o Brasil” foram às ruas defender a educação.

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Outros municípios pernambucanos, como em Caruaru e no Cabo de Santo Agostinho, também organizaram protestos no último dia 15. Na data, marcada por uma greve geral da educação em diversas cidades brasileiras, pelo menos 112 escolas municipais recifenses suspenderam atividades, além de algun colégios particulares e as universidades federais e da Universidade de Pernambuco (UPE).

Embora movimentos sociais e sindicatos, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) ou o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) estivessem presentes – aproximadamente 40 entidades marcaram presença no ato no Recife – muitos rostos diferentes dos que costumamos encontrar nas coberturas de protestos pela cidade emergiram na multidão. A maioria era de estudantes, de várias séries e idades, muitos deles estreantes em manifestações de rua. Eles estavam ali de forma espontânea, sem necessariamente vincular sua presença com movimentos e/ou partidos.

Ismael Renan, estudante de História em universidade particular com bolsa do Prouni (Programa Universidade para Todos) tem 18 anos. Ele é de uma geração que começou a vida adulta já precisando enfrentar as fortes turbulências políticas que tomaram conta do país desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016.  “Os cortes anunciados são apenas o começo. Toda a educação está ameaçada, inclusive o Prouni, sem o qual não conseguiria fazer faculdade. Por isso decidi participar do protesto”, disse o estudante.

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Cartazes dos manifestantes trouxeram provocações e respostas ao governo de Jair Bolsonaro (Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo)

A juventude que chegou às ruas do Recife para lutar pelo direito à educação pública  não teve medo de fazer provocações ao Governo Federal e responder, com inteligência e ironia, às declarações de Bolsonaro, que chamou os manifestantes de “idiotas úteis e massa de manobra”, e do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que acusou universidades federais de promoverem balbúrdia. “Balbúrdia é governar pelo Twitter”, dizia o cartaz de uma estudante recifense.“Quem é a idiota?”, inquiria a bióloga, mestre, doutora, com dois pós-doutorados, dez artigos e um livro publicado que listou seus feitos em um cartaz e o empunhou na rua da Aurora.

Em um pedaço de cartolina branca outra estudante escreveu: “O conhecimento destrói mitos”, em referência ao apelido do presidente entre seus eleitores. “A luta será árdua, pois direitos não se negociam”, escreveram em uma faixa as estudantes universitárias Raiane Albuquerque, 18 anos e Crislane Araújo 20 anos.

Crislane estuda Ciências Biológicas na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O reitor da instituição, Anísio Teixeira, já disse que se o governo não recuar da decisão, a universidade estaria fadada a fechar as portas. Em Pernambuco, os contingenciamentos significam menos R$ 117,9 milhões para universidades e institutos federais. O maior montante, R$ 55,8 milhões, seria destinado ao pagamento de despesas de manutenção e investimentos na UFPE. “É nossa formação que está em jogo”, comentou Crislane. Tanto a UFPE, quanto a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) aderiram à greve geral, assim como os servidores e professores da Universidade de Pernambuco (UPE).

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Protesto seguiu pelas ruas do centro do Recife até o Pátio do Carmo Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

“Ninguém solta a mão da educação”, conclamou o professor Jessé Soares, que ensina Matemática na escola estadual de Ensino Médio Dom Sebastião Leme, outro tradicional colégio público da capital. Ele classificou o governo de Bolsonaro como inimigo da educação. “Ele persegue professores, chamando os profissionais de doutrinadores e agora está cortando repasses para a educação pública, o que prejudica todo o sistema educacional. São ações típicos de governos autoritários, que não têm interesse que a população seja esclarecida”, argumentou.

Erika Suragy, presidente da Associação dos Docentes da Universidade Federal Rural de Pernambuco,  concorda que “ o ataque à educação no governo de Jair Bolsonaro é uma estratégia para perpetuar o autoritarismo”. “As universidades públicas brasileiras são reduto de resistência, de democracia, de ideias”, ela disse. “Nós produzimos 90% das pesquisas em educação no país. Como o ministro abre a boca para dizer que nós fazemos balbúrdia?”, questionou. De cima do trio elétrico onde políticos, líderes de movimentos sociais e sindicalistas fizeram falas durante o protesto, Erika soltou o mote que foi repetido pelos manifestantes em uníssono “Balbúrdia é esse governo!”

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Professores da educação básica da rede pública, que também é prejudicada pelos contingenciamento federal, participaram do evento. “A princípio atinge diretamente as universidades, mas rebate no setor de forma geral, como um efeito cascata. Inclusive, no futuro, a redução de verbas reduziria a quantidade de profissionais de educação formados e qualificados”, considerou Eliane Gonçalves, professora do Ensino Fundamental no Recife. Com um livro de Paulo Freire na mão, o professor de educação física de uma escola da rede privada, Caio Freitas, se uniu à passeata. “É o futuro da educação que está em jogo. Tenho muitos alunos que estão tentando vagas em universidades federais”, disse.

O pernambucano Paulo Freire, cujo legado vem sendo atacado pelo governo Bolsonaro e pelos seguidores do teórico Olavo de Carvalho, foi constantemente lembrado e reverenciado durante o protesto no Recife, princialmente nas falas dos que discursaram ao microfone ou nos cartazes dos manifestantes. No fim do percurso, no pátio do Carmo, o nome dele foi projetado na fachada da Igreja do Carmo. Freire é considerado o patrono da educação brasileira e reconhecido em todo o mundo por seu método de alfabetização que leva em conta a realidade do estudante e, desse modo, estimula o pensamento crítico. Entre tantos ensinamentos do mais importante educador brasileiro, em Pedagogia da Indignação, ele escreveu: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Um novo protesto em defesa da educação deve acontecer no próximo dia 30, segundo a UNE. No dia 14 de junho, entidades e movimentos sindicais estão chamando uma greve geral contra a reforma da Previdência, uma das pautas prioritárias do governo Bolsonaro, que também prejudica os professores. 

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AUTOR
Foto Mariama Correia
Mariama Correia

Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).