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Especialistas defendem novas restrições, mas dizem que só isso não basta para conter a covid-19

Raíssa Ebrahim / 02/03/2021

Crédito: Andrea Rego Barros/PCR/Arquivo

O governo de Pernambuco, assim como os de outros estados, ampliou as restrições de circulação para tentar conter o espalhamento do novo coronavírus nesta que é considerada a pior fase da pandemia até agora. Apesar de necessárias, as medidas são consideradas insuficientes e tímidas por especialistas da saúde diante da gravidade do cenário e da lentidão da vacinação.

O anúncio foi feito pelo governador Paulo Câmara (PSB) na segunda-feira (1º), quando os dados estaduais ultrapassaram a marca de 300 mil casos confirmados e 11 mil mortes, com a taxa de ocupação de UTIs em 93%. A Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE) informou, em prévia do boletim da terça-feira, 2 de março, que foram registrados mais 1.330 casos nas últimas 24 horas e 23 óbitos.

Estão proibidas, em todo o território, atividades não essenciais das 20h às 5h de segunda a sexta e, aos sábados e domingos, somente serviços essenciais poderão funcionar. Nas praias, será permitida apenas a prática de atividades esportivas individuais, a exemplo de caminhada e corrida. As medidas entram em vigor na quarta, dia 3, e valem até o dia 17.

Confira ao final da matéria a lista completa das atividades consideradas essenciais por decreto.

Governador anuncia das novas medidas restritivas (Crédito: Aluisio Moreira /SEI)

O momento pede mais, dizem médicos da linha de frente e especialistas. Diferente do que o país viveu no pico da pandemia em 2020, agora todos os estados da federação estão colapsando ao mesmo tempo e tendo que enfrentar uma variante do vírus que é, calculam pesquisadores, mais transmissível e pode driblar a imunidade adquirida.

Mas o preço econômico e político de um novo lockdown tem pesado para os governadores. Sem auxílio emergencial, sem apoio do Governo Federal e com um presidente negacionista que boicota a vacina e critica até mesmo o uso de máscaras, os estados não têm colocado para frente um fechamento total.

Logo depois de Pernambuco anunciar as restrições, o presidente Jair Bolsonaro publicou uma série de vetos à Medida Provisória nº 1.003/20, conhecida como MP da Proteção à Vida, aprovada pela Câmara dos Deputados, em dezembro, e pelo Senado, em fevereiro. Na prática, Bolsonaro dificulta o acesso do Brasil a vacinas e as ações de governadores e prefeitos.

Situação gravíssima

Na avaliação da médica e doutora em saúde pública Tereza Lyra, “a situação coletiva do ponto de vista dos estados é gravíssima, o Brasil caminha para ser o país que perpetua no mundo a epidemia”. Enquanto o mundo registra quedas dos indicadores há seis semanas, no Brasil elas só crescem.

Mesmo reconhecendo que os governadores estão, em certa medida, “de mãos atadas”, o ideal e urgente seria, segundo Tereza, decretar um lockdown de pelo menos 15 dias.

Os colapsos criam o que ela chama de “dimensão estratosférica” porque não é mais possível contar com a solidariedade e disponibilidade dos vizinhos. Pesquisadora da Fiocruz Pernambuco e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco (UPE), ela defende que é urgente implementar restrições de circulação intermunicipal e interestadual.

Para Tereza, é necessário apostar numa conjunção de fatores. “Em nenhum momento, se encarou a questão do transporte público, uma concessão pública”, enfatiza, relembrando a fala do secretário estadual de Justiça e Direitos Humanos, Pedro Eurico, que afirmou, em 15 de janeiro, não haver contaminação nos ônibus. “O estado era para estar ‘coalhado’ de campanhas, com outbus, bicicletas, outdoor, orientando o uso de máscara, na TV, no rádio”, observa.

“Lógico que tem que haver a ampliação de leitos de UTI. Mas o Brasil, a todo tempo, investiu no ponto final, com a criação de mais leitos, porém, para desobstruir UTIs, tem que haver controle de casos. Temos que baixar a densidade de circulação do vírus e da cepa mais infectante”, afirma a professora.

Em 15 de janeiro, a Marco Zero Conteúdo publicou uma matéria com análises de alguns especialistas, incluindo Tereza e os demais entrevistados que aqui falam, sobre as restrições que haviam sido divulgadas pelo governo de Pernambuco, proibindo som em praias, bares, restaurantes e boates. Na época, as fontes foram unânimes em dizer a mesma coisa: as medidas não eram suficientes.

“Filme” que se repete é ainda pior

Naquele momento, o país vivia as consequências das festas de fim de ano. Hoje vive o somatório das aglomerações de Carnaval, com festas clandestinas, e a alta circulação nas férias e do veraneio. Para Tereza, a sensação é que profissionais da saúde, especialistas e pesquisadores estão há um ano repetindo os mesmos apelos e orientações.

Ela, que também faz parte da Rede Solidária em Defesa da Vida, um grupo interdisciplinar de profissionais e especialistas criado no início da pandemia, lembra o quão atual segue o primeiro documento colaborativo com sugestões de enfrentamento, publicado em 30 de março de 2020.

Apesar de não haver ainda estudos genômicos detalhados – outra grande lacuna brasileira, que não permite saber que cepas estão circulando -, são fortes os indicativos que apontam a variante P1 como uma das grandes responsáveis pelo aumento de casos no país.

Pacientes de Manaus foram transferidos para vários estados

“Quando houve a crise em Manaus, que foi pessimamente conduzida, era o momento em que a vacinação estava sendo iniciada. Era para ter sido vacinado o máximo de pessoas lá e ter criado uma situação de guerra. Mas o que vimos não foi isso, tivemos até hospitais militares ociosos. No espírito de solidariedade e desespero, estados se ofereceram para receber pessoas e isso ajudou a espalhar a nova cepa”, avalia Tereza.

“Daqui a pouco, a vacina vai ser inútil porque estamos permitindo a circulação de cepas. Novas cepas fazem parte do vírus, ele tem essa capacidade inerente”, alerta. Ela acredita que, daqui um tempo, a covid-19 será como o vírus h1n1, endêmico. Vai acometer algumas pessoas e haverá surtos. E para lidar com isso, será preciso monitoramento e vigilância, além de assimilar novos hábitos.

“Lembro da época da cólera, quando incorporamos o hábito de lavar frutas e verduras. No futuro, se você estiver gripado, precisará andar de máscara até saber que vírus você está portando”, explica.

O paradoxo das medidas

A médica sanitarista e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Bernadete Perez, acredita que as medidas anunciadas por Paulo Câmara (PSB) são melhores do que nada, mas chegam tardiamente e pela metade. “São um avanço tímido”. Apesar de importantes, elas se tornam paradoxais, na visão da especialista, porque não protegem o elo mais fraco da cadeia, o trabalhador.

“Os trabalhadores continuam circulando em ônibus lotados e não tem proteção na maior parte dos serviços porque não há fiscalização suficiente, os ambientes muitas vezes são pequenos, sem ventilação, sem controle de aglomeração e com o uso de máscaras frágeis”, argumenta, lembrando a falta de uma vigilância mais rigorosa também no comércio e em feiras livres.

“Mais uma vez, o setor econômico é quem define as regras. Vemos um grau de subserviência ao setores da economia”, critica.

Bernadete chama a atenção também para a contradição das escolas permanecerem abertas, mesmo com relatos de surtos em turmas pequenas. “Se coloca em circulação, numa situação que é a pior desde o início da pandemia, milhares de pessoas nas comunidades, no transporte público e nas sala de aula. Suspender as atividades presenciais é proteger famílias, crianças, professores e toda a comunidade escolar”, avalia.

Os sindicatos dos profissionais da educação vêm fazendo um apelo para que o estado volte atrás na decisão de retomar as aulas em ensino híbrido. Pedem que as aulas sejam exclusivamente remotas até que haja vacinação da categoria.

Bernadete acredita que ainda é possível reverter o quadro: “Isso não virá do Governo Federal. Mas, se a gente tiver medida de coordenação nacional a partir de governadores e prefeitos, com intermediação das instituições democráticas, podemos colocar em prática um plano nacional de enfrentamento em suas várias dimensões, incluindo a dimensão da comunicação”.

Profissionais de saúde esgotados

A reportagem ouviu ainda a avaliação do médico infectologista do Hospital Oswaldo Cruz e mestrando em saúde pública pela Fiocruz Bruno Ishigami. Também para ele as medidas anunciadas estão no caminho certo, porque é necessário aumentar as restrições, mas são insuficientes perante o cenário.

“Quanto mais lentos os passos, mais vidas serão perdidas”, se preocupa o médico que também atua no Hospital do Idoso e na Clínica do Homem do Recife, pela AHF Brasil (Aids Healthcare Foundation, ONG americana que promove testagem grátis de HIV e defesa dos direitos humanos para quem vive com o vírus da Aids).

Bruno diz não ver sentido, do ponto de vista científico, em manter bares, restaurantes e shoppings abertos durante a semana e, nos fins de semana, fechar parques e praias. “Não acho que isso vai conter a pandemia, vamos ter algumas semanas mais difíceis que abril, maio e junho do ano passado”, adianta.

O médico chama a atenção para o esgotamento dos profissionais de saúde, a maioria não aguenta mais dar plantões de covid-19. Sem contar com a dificuldade de formação de mais intensivistas.

“Tende a ser um cenário psíquico muito mais pesado, de reviver muitas mortes por dia”, relata, lembrando que o cenário é de crescimento de casos desde outubro e o de mortes desde novembro. “Daqui que consigamos novamente reverter as curvas serão necessários alguns meses”, alerta.

Bruno explica que “hoje” estamos vendo um cenário que aconteceu “ontem”. Isso porque depois que o paciente se interna numa unidade há o tempo de permanência até a alta ou o óbito, e nesse último caso também há o atraso na notificação.

Na opinião dele, mais de 90% de ocupação de UTI já mostra que o sistema pode colapsar e isso acontecendo o estado voltará a ter filas de espera. Em maio de 2020, a fila chegou a ter 275 pacientes em Pernambuco.

Lista completa de atividades consideradas essenciais segundo decreto do governo de Pernambuco:

I – serviços públicos municipais, estaduais e federais, inclusive os outorgados ou delegados, nos âmbitos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, dos Ministérios Públicos e dos Tribunais de Contas;

II – farmácias e estabelecimentos de venda de produtos médico-hospitalares;

III – postos de gasolina;

IV – serviços essenciais à saúde, como médicos, clínicas, hospitais, laboratórios e demais estabelecimentos relacionados à prestação de serviços na área de saúde, observados os termos de portaria ou outras normas regulamentares editadas pelo Secretário Estadual de Saúde;

V – serviços de abastecimento de água, gás e demais combustíveis, saneamento, coleta de lixo, energia, telecomunicações e internet;

VI – clínicas e os hospitais veterinários e assistência a animais;

VII – serviços funerários;

VIII – hotéis e pousadas, incluídos os restaurantes e afins, localizados em suas

dependências, com atendimento restrito aos hóspedes;

IX – serviços de manutenção predial e prevenção de incêndio;

X – serviços de transporte, armazenamento de mercadorias e centrais de distribuição,

para assegurar a regular atividade dos estabelecimentos cujo funcionamento não esteja suspenso;

XI – estabelecimentos industriais e logísticos, bem como os serviços de transporte, armazenamento e distribuição de seus insumos, equipamentos e produtos;

XII – oficinas de manutenção e conserto de máquinas e equipamentos para indústrias e atividades essenciais previstas neste Decreto, veículos leves e pesados e, em relação a estes, a comercialização e serviços associados de peças e pneumáticos;

XIII – restaurantes, lanchonetes e similares, por meio de entrega a domicílio e para atendimento presencial exclusivo a caminhoneiros, sem aglomeração;

XIV – serviços de auxílio, cuidado e atenção a idosos, pessoas com deficiência e/ou dificuldade de locomoção e do grupo de risco, realizados em domicílio ou em instituições destinadas a esse fim;

XV – serviços de segurança, limpeza, vigilância, portaria e zeladoria em estabelecimentos públicos e privados, condomínios, entidades associativas e similares;

XVI – imprensa;

XVII – serviços de assistência social e atendimento à população em estado de vulnerabilidade;

XVIII – transporte coletivo de passageiros, devendo observar normas complementares editadas pela autoridade que regulamenta o setor;

XIX – supermercados, padarias, mercados e demais estabelecimentos voltados ao abastecimento alimentar da população.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com