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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Hoje, 14 de setembro, é o dia internacional da capivara. O animalzinho de semblante tranquilo e simpático era tão popular por aqui que deu nome ao mais importante rio do Recife, o Capibaribe, que, como todo recifense aprende na escola, significa rio das capivaras, em tupi. Mas nos últimos anos, esses roedores gigantes e herbívoros têm sido avistados em locais pouco apropriados para eles. E para nós.
Se olharmos para notícias dos últimos dez anos, há registros de famílias de capivaras andando na calçada da avenida Rui Barbosa, na praia de Casa Caiada em Olinda e cruzando a Via Mangue. Na semana passada, uma capivara foi achada morta após ter sido vista por vários dias na praia de Boa Viagem.
O que está, então, acontecendo com esses animais?
Há um punhado de fatores. O mais importante é que o habitat natural deles está sendo devastado. “É um efeito da fragmentação do habitat, seja por desmatamento, expansão imobiliária, queimadas, derrubada das matas ciliares. As capivaras são animais generalistas: quando o ambiente em que vivem está danificado, elas migram para outras áreas. Para capivara, todo ambiente com um curso de rio e áreas gramadas é propício”, explica o biólogo Marcos Vinícius Rodrigues, doutor em manejo e conservação de fauna silvestre, especializado em manejo reprodutivo de capivaras em áreas urbanas.
No Recife, as capivaras vivem principalmente nos manguezais e matas próximas aos rios. Ambientes cada vez mais degradados.
Para viver nas cidades, as capivaras tiveram que mudar de hábitos. Na natureza, elas se alimentam durante o dia e descansam à noite. Nas cidades, a rotina é inversa. “Por conta dos fluxos de carros e pessoas, dos barulhos, as capivaras descansam de dia e por volta das 17h30 saem para forragear. Elas dormem em locais onde se sentem seguras, que pode ser nos mangues, nas matas ciliares ou até debaixo das pontes, mas sempre perto dos cursos de água. É do instinto do animal se esconder dentro da água quando se sentem ameaçados”, explica Marcos Vinícius, que também é professor do Centro Universitário Católica do Leste de Minas Gerais (Unileste).
Isso não significa, porém, que são animais adaptados à vida urbana. A professora aposentada da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Adélia Oliveira, que milita pelo meio-ambiente na Associação Pernambucana em Defesa da Natureza (Aspan), diz que as capivaras, assim como saguis e timbus, “suportam” viver nas cidades.
Durante décadas, era difícil avistar capivaras no Recife e a impressão que dava era que elas já não mais habitavam a região. “O rio passou por muitas transformações, foi retificado, os afluentes viraram canais artificiais. Com a destruição do manguezal no centro do Recife, as capivaras se afastaram, foram mais para dentro do Capibaribe ou se estabeleceram em pequenos veios de água”, explica Adélia Oliveira. “O Recife todo é um estuário. E assim como as capivaras, o mangue é muito resiliente e voltou para as margens do rio, onde as capivaras gostam de ficar. São animais dependentes de água”.
A bióloga enumera como as capivaras são anatomicamente adaptadas à água. Há membranas entre os três dedos das patas, para ajudá-las a nadar melhor. As orelhas e olhos ficam no topo da cabeça, permitindo que o corpo todo fique dentro da água e só uma pequena parte para fora, as esquivando de predadores.
O animal encontrado morto na praia de Boa Viagem na semana passada provavelmente era um macho desgarrado do bando ou um animal doente. Capivaras podem aguentar a forte influência das marés na salinidade do Capibaribe, mas padecem em poucos dias quando só bebem água do mar. “Ficam desidratadas porque precisam urinar muito para eliminar o sal. E a água do mar também tem minerais que aumentam a motilidade gastrointestinal e provocam diarreias e vômitos. Assim como os seres humanos, elas não resistem”, lamenta a professora.
Outro perigo da vida urbana para as capivaras são os atropelamentos. Como são animais que podem passar de um metro de altura e mais de 60kg, o impacto é perigoso também para os seres humanos. Em algumas cidades, há muros para que as capivaras não passem para as ruas e avenidas.
Vale ressaltar que a capivara é um animal protegido por lei federal, que proíbe a caça e quaisquer maus-tratos.
O parque das Graças se tornou quase um ponto de encontro dos recifenses com as capivaras. É muito comum avistar os animais no início da noite ou no comecinho da manhã, no gramado mais próximo da ponte da Torre. Nos fins de semana, com mais público, fica tudo meio misturado: adultos, crianças, cachorros e capivaras, ainda que haja guardas municipais moderando as aproximações.
A construção do parque retirou uma longa faixa de mangue e 99 árvores da margem do rio. Isso desestabilizou as capivaras que ali habitavam. Além disso, há um convite para essa aproximação: a grama plantada ali tem exatamente o objetivo de atraí-las, sendo de um tipo que elas gostam de comer.
Para os biólogos, isso é um grande erro.
Adélia Oliveira participou do projeto do Parque Capibaribe e lembra que a solução indicada para as capivaras da altura do parque das Graças era a de um espaço exclusivo para elas, na outra margem do rio. “Na pesquisa, avistamos por três vezes capivaras parindo em bueiros de esgoto, onde os filhotes também ficavam por um tempo. A nossa ideia era fazer um espaço com gramíneas para elas comerem e também onde pudessem parir de forma segura. Mas era distante do parque, as pessoas poderiam observá-las somente da outra margem do rio”, lembra.Essa parte do projeto não saiu do papel.
O convívio próximo oferece riscos para humanos e capivaras. O principal é a febre maculosa, uma doença infecciosa aguda causada pela bactéria Rickettsia rickettsii. A capivara é uma hospedeira desta bactéria, que pode ser transmitida para seres humanos e animais domésticos pela mordida do carrapato estrela.
É um carrapato que nas fases larva e ninfa pode ser tão, mas tão pequeno, que quase não dá para enxergá-lo a olho nu. Muitas vezes a pessoa só percebe que foi mordida quando vê as reações na pele.
A bactéria é encontrada em estados do Sudeste e Centro-Oeste e não há registro de casos de febre maculosa em Pernambuco. Mas é preciso se precaver. “Não teve casos, mas esse carrapato estrela existe na região. Uma hora pode ser que a bactéria apareça no Nordeste também, não tem como garantir”, afirma Adélia
A febre maculosa tem tratamento – feito com antibióticos – , mas muitas vezes é inicialmente confundida com uma arbovirose, o que acaba complicando o caso. Nos últimos dez anos, foram registrados 753 óbitos por febre maculosa no Brasil.
Além da febre maculosa, outro risco para os humanos são seus dentes afiados e sua mandíbula forte. A capivara é um animal muito pacífico, mas em situações de estresse, como quando se sente acuada ou para proteger as crias, pode atacar. “Ela morde e não solta. Fecha a mandíbula. Qual a reação da pessoa? puxar, e aí sai rasgando tudo. A mordida da capivara deixa vários buracos. Também há registros de ataques a cachorros”, diz o biólogo, enfatizando que os ataques são raros.
Capivaras são animais que vivem em uma estrita hierarquia social. Os bandos possuem de cinco até 15 ou 20 indivíduos: um macho dominante – o macho alfa -, várias fêmeas e os filhotes. Há também os machos beta – filhotes que cresceram e são expulsos ao atingir a maturidade sexual – que ficam rodeando esse grupo e são responsáveis por cerca de 40% das crias, se aproveitando de “distrações” do macho alfa.
Quando um alfa é desbancado por outro mais jovem e forte, ele passa a pertencer a um terceiro grupo que rodeia o bando principal. “São um grupo de machos celibatários, os ‘aposentados’”, diz Marcos Vinícius. Essa hierarquia é importante quando algum predador ataca o bando, já que se aproxima primeiro do grupo dos machos mais velhos.
Uma curiosidade na hierarquia das capivaras é que há também as fêmeas alfas e as fêmeas beta. As alfas, cruzam e reproduzem. Já as betas não procriam, mas têm lactação, ajudando na alimentação e criação dos filhotes das alfas.
Outro fator para vermos muito mais capivaras no Recife do que em décadas passadas é porque os predadores desses animais estão em extinção. São jacarés e felinos grandes, que sofrem ainda mais pelas ações humanas. Sem predadores e com maior conscientização da população contra a caça, as capivaras voltam também a ter populações maiores.
O ciclo reprodutivo das capivaras ajuda nesse povoamento. As fêmeas entram no cio a cada sete dias. As gestações duram cinco meses e elas podem parir de um a quatro filhotes, sendo registrado até oito filhotes por gestação.
As capivaras são os maiores roedores do mundo e são encontradas da Flórida (Estados Unidos) até a Argentina. Sem predadores naturais, casos de superpopulação são cada vez mais comuns, o que pode comprometer safras agrícolas e o equilíbrio ecológico. Nas cidades, o desafio é fazer com que a convivência não seja tão próxima, o que pode levar a atropelamentos e disseminação de doenças.
Grades em áreas verdes e parques não impedem que elas acessem as ruas. “Se tiver comida do outro lado, ela vai passar por baixo. Vai se arranhar toda, mas faz de tudo para passar. As capivaras têm um cicatrização muito rápida”, conta Marcos Vinícius, um dos mais respeitados pesquisadores brasileiros dessa espécie de animal. “O indicado são muros ou grades com bases murada”, indica.
A pesquisa para o doutorado dele foi sobre como fazer esse controle de população, sem prejudicar a dinâmica dos animais. A solução encontrada foi não fazer a castração dos animais – como ocorre com gatos e cachorros -, mas sim vasectomia, que não impede a produção hormonal, necessária para a posição hierárquica no bando. “Todos os machos têm uma glândula na base do nariz, de cor preta. Nos machos alfa, essa glândula tem cerca de 14 centímetros e nos betas, metade disso. Mas quando se castra o alfa, impedindo a produção de testoterona, o beta assume o lugar do alfa e passa a produzir mais testosterona, aumentando também a glândula. Ou seja, a castração é ineficaz no controle populacional, porque o alfa é rapidamente substituído”, diz.
Nas fêmeas, foi feito a ligação uterina. “O controle populacional é importante para evitar zoonoses e acidentes. Os municípios que têm capivaras na zona urbana precisam fazer um plano de manejo desses animais”, diz o biólogo.
No Recife, a pesquisa populacional que se tem conhecimento é de 2017, na época da criação do projeto do Parque Capibaribe. Da foz do rio até o limite com o município de Camaragibe os pesquisadores avistaram 37 indivíduos e estimaram a população em três vezes mais. “Mas com a pandemia, em que houve menos ação humana, esse número deve ter aumentado bastante”, acredita Adélia Oliveira.
Para o manejo desses animais em zonas urbanas, o indicado pelos biólogos é preservar a vegetação nativa de margens de rios e cursos de água, deixar as gramas de praças e parques sempre baixas, para que não virem um atrativo para as capivaras, e a construção de muretas em áreas em que elas correm perigo. Marcos Vinícius também defende a colocação de placas, alertando a população sobre a presença das capivaras. “É preciso informar a população para não incomodar ou se aproximar delas”, diz.
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org