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O último chá mate das ruas do Recife

Inácio França / 22/12/2024
A foto mostra três homens em frente a um estabelecimento chamado Chá-Mate Brasília. O letreiro verde e branco com o nome do lugar aparece em destaque acima da entrada. O prédio é antigo, com paredes desgastadas e um portão de metal ao lado da porta aberta. Os três homens estão de braços cruzados, olhando diretamente para a câmera com expressões confiantes e amigáveis. Eles parecem ser trabalhadores do local. Dois deles, provavelmente funcionários, são idosos e vestem uniformes brancos simples, incluindo toucas na cabeça, como as usadas em lanchonetes ou cozinhas. O terceiro homem, que está ao centro, é alto e magro e veste uma camisa azul escura e calça jeans e pode ser o proprietário ou gerente do lugar. O fundo da foto mostra o interior simples da lanchonete, que parece limpa e organizada.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Mesmo nos dias mais ensolarados do verão recifense, a rua Alarico Bezerra permanece, na maior parte do tempo, à sombra da muralha de edifícios mal conservados entre a avenida Guararapes e a rua Siqueira Campos. Quando José Pinheiro desce do ônibus e, às 5h da madrugada, chega para iniciar seu longo expediente de 14 horas de trabalho, o beco estreito vizinho à praça do Sebo ainda está escuro, úmido e vazio.

O ambiente sombrio não assusta o homem alto e magro, que não hesita ao tirar do bolso o molho de chaves e abrir as grades da lanchonete, quebrando o silêncio. Todos os porteiros e vigias dos prédios do entorno sabem que ele é o dono do Chá Mate Brasília, o último estabelecimento do gênero no centro do Recife.

“Nunca fomos assaltados. Todo mundo fala da violência do centro, mas aqui a gente nem sabe o que é isso.” Essa é a explicação para a tranquilidade de Zé – é assim que seus funcionários, clientes e vizinhos o chamam desde que ele era adolescente, por trás do balcão das lanchonetes do pai.

O Mate Brasília foi inaugurado em 1984. Foi – e ainda é – o empreendimento mais duradouro e bem-sucedido do falecido Manoel Pinheiro da Silva, o pai de Zé. Antes, entre 1973 e o início da década de 1980, ele teve duas lanchonetes na rua Siqueira Campos: a Columbia Lanches e a Lanchonete Popular, estabelecimentos convencionais que serviam sanduíches, sucos, refrigerantes e salgados.

Zé começou a trabalhar na Popular com 14 anos, quando pediu ao pai uma máquina fotográfica, uma câmera Yashica MF-1, para ser bem exato. “Se quiser a máquina, você mesmo pode trabalhar na lanchonete e comprar com seu dinheiro”, teria dito seu Manoel, de acordo com a memória do filho. Depois, ele ficou de olho em um aparelho de som Polyvox 3 em 1. Assim, continuou a servir lanches e presenciou o nascimento da casa de mate.

A foto mostra o interior simples de uma lanchonete tradicional. À esquerda, um painel destaca o cardápio com letras amarelas. No centro, um homem alto, magro, de meia idade, José Pinheiro, de camisa azul, está atrás do balcão servindo um cliente, despejando bebida em um copo, possivelmente o famoso chá-mate. O cliente, de camiseta azul, está apoiado no balcão, a espera de ser servido. O balcão de aço inoxidável é organizado, com vitrines exibindo produtos. O ambiente tem paredes com azulejos antigos, uma geladeira com adesivos e um ventilador antigo na parede, reforçando a simplicidade e o clima nostálgico de uma lanchonete acolhedora e tradicional.

Zé Pinheiro chega de madrugada para cozinhas as folhas de erva-mate

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

A dica veio do Dunga Mate

Foi então que surgiu a ideia de fazer algo diferente. Depois que um ex-funcionário do Dunga Mate, estabelecimento que existia na rua Matias de Albuquerque e fechou as portas no início dos anos 2000, ensinou Manoel a fazer o chá a partir das folhas secas e tostadas da erva-mate, ele alugou mais uma loja no térreo do edifício Brasília e decidiu experimentar o novo produto. Para tocar o empreendimento, Manoel contou com a ajuda de Gilvan Trajano da Silva, funcionário que o acompanhava desde que tinha uma carrocinha de cachorro-quente, entre 1969 e 1970.

O sucesso foi tanto que a lanchonete acabou sendo fechada, afinal, o movimento do mate exigia tempo e atenção.

Os rostos da equipe que fica atrás do balcão são conhecidos da clientela. Gilvan, aquele que ajudou na criação do Mate Brasília, ainda trabalha com Zé aos 68 anos. Reginaldo e Marcos também fazem parte do time há mais de 30 anos. Essa seria uma das razões para manter a fidelidade de um público que, mesmo com o esvaziamento do centro do Recife, muda o caminho para poder tomar um mate com leite, com limão, maçã ou maracujá, os sabores mais pedidos.

A outra razão é a própria bebida, de fabricação própria e feita no dia em que é consumida. “Compro as folhas secas e cozinho de madrugada, assim que chego”, explica Zé. Os doces e salgados também são produzidos diariamente por outros dois funcionários, Sandra e Cristian. Os croquetes, empadas, pastéis de forno e o bolo pudim estão sempre frescos. “No início, a gente comprava de fornecedor, mas logo deu problema, caiu a qualidade. Aí meu pai decidiu fazer tudo aqui”, conta o proprietário.

Curiosamente, o apego do comerciante ao empreendimento que herdou do pai é um sentimento recente. Formado em administração de empresas pela UFPE, ele alimentava outros projetos. “Eu só cuidava da qualidade do produto, mas, quando entendi que os fregueses amavam essa casa que meu pai tinha criado, passei a amar também.”

Em breve, nas melhores salas de cinema

Em meados deste ano, Zé e o balconista Reginaldo viveram uma experiência diferentes quando os poucos metros quadrados da lanchonete foram usados como set de filmagem do filme Agente Secreto, de Kléber Mendonça Filho. O espaço foi alugado por dois dias e, depois de completamente descaracterizado, abrigou a gravação de uma cena do vilão da trama. O comerciante e seu funcionários faturaram diárias como figurantes, mas não houve oportunidade para contracenar a estrela do filme, pois o roteiro não previa a participação do ator Wagner Moura.

No dia seguinte, Zé introduziu um novo sabor com o título do filme, incluindo canela no mate leite.

De pai para filho, de filho para neta

A entrevista com Zé foi entrecortada pelos pedidos dos clientes, dezenas deles. Um deles era Laércio, um idoso que frequenta o centro desde que era menino. “Comecei a tomar mate no Dunga. Meu pai me levou lá quando eu tinha uns 11 anos, aí eu peguei gosto e hoje sempre trago minha neta de 17 anos. Ela também adora mate”, explica.

Laércio é um saudosista. Ele diz se sentir órfão de restaurantes, confeitarias, lanchonetes e lojas que existiam nos bairros de Santo Antônio, São José e Boa Vista e que foram fechando as portas ao longo das últimas décadas. “Tinha o pudim de laranja da sorveteria Gemba [na praça Joaquim Nabuco, ao lado do Restaurante Leite, fechada em 1972], tinha a cartola e o mousse de coco da Confeitaria Confiança, vizinha à Pernambucanas da rua da Imperatriz. Esse mate e a padaria Imperatriz são as poucas coisas boas que sobreviveram”, lamenta.

A imagem mostra um cartaz colado em uma parede de azulejos antigos, anunciando um novo sabor de chá-mate chamado Agente Secreto – O Filme, com o preço de R$ 6,00. O cartaz tem um design simples, com fundo branco e letras em marrom. Ao redor, outros anúncios visíveis mostram preços de produtos semelhantes. À direita, a porta aberta revela um ambiente externo, onde duas pessoas estão sentadas em cadeiras plásticas vermelhas

Gravações do filme inspiraram criação de novo sabor

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Contudo, faltou pouco para o Mate Brasília fechar as portas. Foi durante a pandemia.

Zé Pinheiro conta que, no dia em que começou o lockdown, o fornecedor tinha acabado de entregar três sacas de farinha de trigo. “Havia uma saca aberta. Fechei tudo e deixamos as mercadorias aí”, recorda o comerciante, sem esconder a angústia. Quando o comércio reabriu, a farinha estava toda estragada e ele não tinha um centavo no bolso para repor.

“Só pude pagar a última semana de trabalho dos funcionários porque a dona do self-service da frente me emprestou R$ 1 mil e nem fez questão de juros na hora de receber. Fui para casa com R$ 100 no bolso. Eu e minha esposa só não passamos fome porque minha sogra é funcionária pública e fazia a nossa feira”, conta.

Esperança no Recentro

Preso à rotina do comércio, Zé não tem tempo para participar das reuniões do Recentro, o programa da prefeitura do Recife que pretende revitalizar o centro da cidade. É seu irmão quem está participando dos encontros com os técnicos encarregados de elaborar os projetos para o entorno da avenida Guararapes.

“Até agora não vi nada de concreto, mas a prefeitura fez uma postagem no Instagram que ajudou um pouco, trouxe freguesia. O importante mesmo seria ter acesso a crédito, pois, desde a pandemia, estamos sem capital de giro”, sonha José Pinheiro.

Tentamos saber da equipe do Recentro quais são as perspectivas para a rua Alarico Bezerra e a praça do Sebo, mas não obtivemos resposta.

A imagem mostra José Trajano, homem idoso, de óculos, atrás de um balcão, segurando um copo de suco ou vitamina e estendendo-o para a câmera. O homem está vestido com um uniforme branco e um chapéu de cozinheiro. O fundo da imagem revela um ambiente de lanchonete ou bar de sucos, com várias placas e cardápios pendurados na parede. As placas listam diferentes tipos de sucos e vitaminas, como ABACATE, BANANA, MAMÃO e MISTA. Há também um ventilador de teto, um relógio de parede e prateleiras com utensílios e ingredientes. A imagem captura um momento cotidiano em um estabelecimento de alimentação, destacando a interação entre o atendente e o cliente.

Gilvan Trajano trabalha no Mate desde o primeiro dia de funcionamento

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.