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Crédito: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
por Adriana Amâncio*
Operado pelo Governo Federal e pelos parlamentares do chamado “centrão”, o orçamento secreto demonstrou seu peso nestas eleições. A ferramenta, criada durante o governo Bolsonaro, permite aos parlamentares fazer o requerimento de verba da União sem detalhar identidade do autor do pedido ou mesmo destino dos recursos, é fertilizante do clientelismo, arraigado historicamente na política brasileira.
O orçamento secreto ganhou os contornos atuais, em 2020. Inicialmente, o projeto apresentado para dá vida à prática foi vetado por Bolsonaro, que, em seguida, diante da possibilidade do Senado derrubar o veto e pensando em fortalecer a sua base política frente a um possível impeachment, fechou um acordo com os parlamentares, garantindo, por meio de três Projetos de Lei, R$ 30 bilhões para as emendas de relator-geral. Esses recursos deixaram de ser investidos via ministérios e passaram a ser controlados pelo Parlamento.
Em 2021, foram executados via emendas de relator R$ 16,5 bilhões e, para 2023,já estão previstos R$ 19,4 bilhões. O cientista político e doutor pela Universidade de São Paulo (USP), Sérgio Ferraz, avalia que o uso da máquina do Estado tem tido um peso forte nestas eleições e alerta para o risco da operacionalização do orçamento sob a lógica de investir em redutos eleitorais se manter como prática de gestão.
“O orçamento secreto não deveria ter existido nem por 24 horas! Ele tem pelo menos dois enormes problemas. Agride o princípio da transparência. Dinheiro público tem que ter uma clara definição de onde vem e para onde vai. Dinheiro público não pode ser gasto sob sombras”, pondera.
As emendas parlamentares individuais sempre existiram. Previstas na Constituição Federal, elas permitem aos deputados e senadores alocar recursos do orçamento público. O que compromete a transparência é a forma como os recursos passaram a ser destinados para as emendas do relator-geral do orçamento, ou seja, em volumes maiores, de forma especial, e com liberação para serem aplicadas em áreas como infraestrutura, saúde e educação.
De acordo com a organização não-governamental Transparência Internacional, essas mudanças imprimiram opacidade ao repasse dos recursos. Com o relator-geral tornando-se responsável por centralizar as demandas dos parlamentares e apresentá-las na forma de emendas, a identificação dos responsáveis pela indicação dos recursos e a fiscalização dos gastos ficam impedidas.
“É o maior processo de institucionalização da corrupção que se tem registro na história brasileira. Ele é responsável por imensos retrocessos e violações do devido processo orçamentário, desviando bilhões de reais de recursos de ministérios e políticas públicas formuladas em bases técnicas para seremutilizadas, sem os mínimos parâmetros de transparência e controle, segundo interesses de parlamentares aliados, seja para fins eleitoreiros, seja para enriquecimento ilícito”, afirma a organização em comunicado enviado à nossa reportagem.
A menção da Transparência Internacional aos critérios de investimento dos recursos serve de mote para o segundo grande problema destacado por Sérgio Ferraz em relação ao orçamento secreto. O cientista considera que a prática subverte a lógica da aplicação do dinheiro público, com base na racionalidade, em critérios técnicos.
Deve-se levar em conta a vulnerabilidade da população a ser beneficiada, o interesse público, prossegue o cientista. Ele acredita ainda que a prática orientada pelos interesses eleitorais pode levar recursos a uma comunidade com menos necessidade, mas que se torna importante por ser reduto eleitoral de um determinado candidato.
“Se a gente entra nessa lógica dos deputados, senadores e seus interesses eleitorais decidirem a locação do recurso vai contra todo o interesse público, que é enfrentar os problemas reais, colocar dinheiro onde há mais pobreza, onde o estado deve atuar como indutor de desenvolvimento. Na verdade, o orçamento secreto não serve para induzir o desenvolvimento, serve para induzir reeleições. E foi isso que a gente viu no resultado das eleições do Congresso”, avalia.
Segundo Ferraz, o orçamento brasileiro já é quase todo carimbado , ou seja, quase 90% já está amarrado e “condicionar o que resta nas mãos dos interesses eleitoreiros, de extrema direita, do clientelismo, é terrível”, afirma. Ele destaca a importância de pautar este assunto no debate, porém, alerta que é difícil tratar do assunto.
“O problema é que nos temos uma parcela da população vivendo em uma realidade paralela. Isso não é só no Brasil, é no mundo todo. Quando uma pessoa diz que está fazendo sol e a outra diz que está nevando, o debate nem começa. Para haver debate, as pessoas precisam partir de uma mesma realidade”, analisa.
Ferraz conclui, afirmando que o eleitor indeciso ainda está aberto a um diálogo e o orçamento secreto deve ser um assunto em pauta. “Eu acho que a campanha da oposição deveria pautar o orçamento secreto. Eu vejo o Lula, por exemplo, no último debate da Band, ainda muito preso nas divulgações dos feitos dos seus mandatos. Acho mais persuasivo falar do orçamento secreto, falar da importância da volta da democracia brasileira”, conclui.
“Aqui teve gente que tinha uma cisterna de placa e ganhou outra. Eu, meu tio e o meu pai não recebemos porque não declaramos voto a eles, o Miguel Coelho e o candidato a vereador dele [ele se refere à eleição municipal de 2020]. Hoje, a gente divide a água de uma cisterna de 16 mil litros com mais duas famílias. Por isso, a água da chuva acaba logo e, a cada dez dias, a gente abastece ela com água pagando R$ 90”. Esse Lucivaldo Elizeu Barbosa, de 41 anos, agricultor e presidente da Associação de Produtores de Caprino e Ovinos da comunidade rural de Icó de Né Gomes, área rural de Petrolina, no Sertão do São Francisco.
Em abril de 2021, sua comunidade recebeu nove cisternas de polietileno do Programa Cisternas de Petrolina, viabilizado com recursos pleiteados pelo Senador Fernando Bezerra Coelho (MDB), líder de Bolsonaro no Senado,e do deputado federal Fernando Filho (União Brasil). Ainda segundo Lucivaldo, famílias que já dispunham de segurança hídrica, por declarar apoio aos candidatos apoiados pelo prefeito, o Senador e o deputado Federal, receberam a cisterna de plástico e “mal fazem uso”, reclama o agricultor.
Enquanto isso, Lucivaldo mostra a água do barreiro que armazena em uma cisterna de 16 mil litros para consumir junto com a esposa, mais quatro filhos, além das famílias do seu tio e pai. Em um vídeo publicado em abril de 2021, em sua conta oficial no Facebook, o prefeito de Petrolina, Miguel Coelho, anunciou o lançamento do Programa destinando a entrega de mais de mil tecnologias de polietileno. A gravação foi feita diretamente do depósito da Superintendência da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Coodevasf).
Mais tarde, em dezembro daquele mesmo ano, uma matéria da Folha de São Paulo relacionou a origem dos recursos ao orçamento secreto, que segundo documentos encontrados pelo veículo apontavam relação entre Fernando Bezerra Filho e aproximadamente R$ 125 milhões em emendas de relator.
Por outro lado, o Programa Cisternas, principal política pública de acesso à água para populações difusas do Semiárido, implementou, em 2021, apenas 4.305 cisternas construídas com placas de concreto com um orçamento de pouco mais de R$ 32 milhões. Criado em 2003, o Programa, lotado no Ministério da Cidadania, implementou cerca de 1,2 milhão cisternas de polietileno, que beneficiaram especialmente mulheres chefes de famílias e que possuem crianças, pessoas com deficiência e idosos nos lares.
“Eu tenho duas cisternas. Eu moro numa área de assentamento de reforma agrária. Uma das cisternas de 16 mil litros foi com recurso do Banco do Nordeste. A segunda foi através do Programa Semiárido, a qual eu tive direito por ser assentada da reforma agrária. Qual a importância dessas políticas de convivência? É a dignidade da população e das mulheres que deixaram de carregar água na cabeça”, declara a agricultora e uma das coordenadoras do Pólo Sindical da Borborema no Semiárido paraibano, Roselita Victor.
O Centrão, grupo que operacionaliza o orçamento secreto ao lado do governo federal, elegeu 257 deputados, ligados a partidos como PL, Republicanos, PTB, União Brasil, PSC, PP e Patriota. Juntos, esses parlamentares abocanharam R$ 6, 2 bilhões de emendas de relator, segundo reportagem publicada na revista Piauí. A nova composição do Senado também será predominantemente de direita e extrema-direita, com os partidos como PL, Republicanos, Cidadania, PP, Podemos, MDB e PSD, somando 62 dos 81 senadores.
Neste cenário, acabar com o orçamento secreto vai ser uma tarefa indigesta a para o próximo presidente. Sérgio Ferraz avalia que os parlamentares que se beneficiaram desta manobra vão trabalhar de forma “ferrenha” para mantê-la ativa e o judiciário estará fragilizado para barrar tal processo.
“O Senado que vamos ter em 2023 terá uma composição de direita ideológica, bastante aliada a Bolsonaro. Mesmo com uma vitória do candidato de oposição, a posição do judiciário será muito mais frágil. Infelizmente o campo governista instrumentalizou a máquina numa proporção que desequilibrou a eleição e ainda assim pode perder. Mas do ponto de vista da composição do Congresso, o orçamento secreto produziu os frutos”, avalia Ferraz.
*Jornalista, mora em Recife, tem 12 anos de atuação na cobertura de pautas nas áreas de direitos humanos, meio ambiente e gênero.
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