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Por que curso de Medicina para assentados e quilombolas virou alvo de ataques e fake news

Raíssa Ebrahim / 29/09/2025
Em um laboratório, várias pessoas usam jalecos brancos e observam amostras em microscópios. Em primeiro plano, uma mulher de cabelos presos olha atentamente através de um microscópio iluminado, enquanto segura uma lâmina na mesa. À sua frente há uma caixa aberta com instrumentos de laboratório e um frasco de álcool em gel. Ao fundo, outras pessoas, também de jaleco, repetem a mesma atividade, cada uma em sua estação de trabalho. O ambiente é de estudo e pesquisa científica.

Crédito: acervo Incra

Política pública consolidada, com quase três décadas de existência, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) virou o mais recente alvo de desinformação e ataques da extrema direita. A criação da primeira turma de medicina do país pelo Pronera, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Centro Acadêmico do Agreste, em Caruaru, desencadeou uma onda de críticas que misturam notícias falsas e revolta de conselhos e associações médicas. O caso foi parar na Justiça.

Em vídeos viralizados, políticos como o vereador do Recife Thiago Medina (PL-PE) distorceram os fatos: “Quer fazer medicina na UFPE? Agora ficou muito fácil. Mas só se você for do MST (…). Eles cansaram de roubar a terra e querem roubar a vaga na universidade agora”.

A narrativa falsa de um curso “exclusivo para o MST” e sem processo seletivo ignora que a iniciativa é voltada a diversas populações do campo, como assentados, quilombolas e acampados, e que a seleção, conduzida pela universidade, inclui prova e análise de histórico escolar.

Medina denunciou a UFPE numa ação popular na 9ª Vara da Justiça Federal para tentar derrubar a medida. O curso de medicina pelo Pronera não é o primeiro a sofrer ataques. Formações como Engenharia, Direito e Medicina Veterinária também já foram alvo em outras universidades.

A reação não se limitou às redes sociais nem a parlamentares. Entidades como o Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) e o Sindicato dos Médicos de Pernambuco (Simepe) também se manifestaram publicamente, alegando que a seleção específica “afronta os princípios da isonomia e do acesso universal”.

Os ataques expõem não apenas o histórico brasileiro de resistência a ações afirmativas, mas também a dificuldade de parte da sociedade aceitar a democratização de um curso historicamente elitizado.

Política de Estado sob ataque

Criado em 1998, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o Pronera é uma política de Estado, não dos governos petistas. Realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em parceria com instituições de ensino, governos estaduais e municipais, movimentos sociais e sindicais, a iniciativa surgiu com a proposta de democratizar o acesso à educação pública de qualidade.

É fruto da mobilização por educação no campo e consequência direta das ações de violência, como os massacres de Corumbiara e de Eldorado dos Carajás.

Em quase três décadas, o programa já formou quase 200 mil estudantes em 545 cursos em todos os estados brasileiros, da alfabetização à pós-graduação. O curso de Medicina na UFPE terá 80 vagas exclusivas, sendo 40 de ampla concorrência e outras 40 destinadas a quem pode ser atendido por modalidades de ações afirmativas (cotas).

A foto mostra a fachada de um prédio com uma grande placa branca e faixa vermelha, onde se lê em letras maiúsculas: “CURSO DE MEDICINA”. Acima, aparece o logotipo da Universidade Federal de Pernambuco e a identificação “Campus do Agreste”. Abaixo da faixa, há uma parede pintada em verde e amarelo-claro, com portas de enrolar azuis fechadas. Na frente do prédio, vê-se uma pequena palmeira decorativa.

Campus da UFPE em Caruaru receberá curso do Pronera

Crédito: Divulgação UFPE

Estão aptos a se candidatar assentados da reforma agrária e integrantes de famílias beneficiárias do crédito fundiário; educandos egressos de cursos de especialização promovidos pelo Incra; educadores que exerçam atividades voltadas às famílias beneficiárias; acampados cadastrados pelo instituto; e quilombolas.

Apesar das ameaças, a universidade manteve seu posicionamento. O reitor da UFPE, Alfredo Gomes, destacou a legitimidade da ação e seu compromisso social. “Uma iniciativa amparada pela lei, legítima, justa e transparente (…). A Universidade Federal de Pernambuco é gigante. Não vai se intimidar nem desviar da sua missão de levar formação de qualidade a todos”.

Ele lembra que a dificuldade de atendimento médico no interior é um problema conhecido e que o curso visa formar profissionais voltados para a realidade do Agreste e do Sertão.

Segundo a coordenadora-geral de Educação, Arte e Cultura do Campo do Incra, Clarice dos Santos, o curso inédito é resultado da parceria articulada pelo Pronera, envolvendo o Incra, movimentos e organizações populares do campo e a UFPE, assim como ministérios, especialmente o da Saúde.

“Celebramos a abertura desta turma pelo compromisso revelado por todas essas instituições na formação de médicos e médicas camponeses, em uma iniciativa que ajuda a fortalecer o SUS no atendimento à saúde nas áreas rurais, ainda um grande desafio no nosso país”, considera a gestora.

O Incra defende que “a Educação do Campo é um direito e se realiza por diferentes territórios e práticas sociais que incorporam a diversidade do meio rural. Garante a ampliação das possibilidades de criação e recriação de condições de existência da agricultura familiar.”

O que incomoda tanto?

Para a deputada estadual Rosa Amorim (PT-PE), do MST, a reação tem um alvo evidente: a origem social dos futuros médicos. “O fato dos camponeses e povos camponeses, tradicionais, poderem fazer medicina (…) tem incomodado tanto. Um curso que tradicionalmente sempre foi para os filhos da elite, agora vai dar a oportunidade para que a mão que sempre segurou a enxada possa cuidar do povo”, afirma.

Para ela, a iniciativa “remexeu as estruturas e mostrou complacismo de quem não quer que pobre tenha um diploma na mão”.

A perspectiva é compartilhada por especialistas em saúde pública. Para Cláudia Travassos, diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e pesquisadora da Fiocruz, a iniciativa é uma conquista que vai além do acesso à universidade.

“O curso de Medicina para assentados e quilombolas é uma conquista histórica. Ele reconhece que a formação de profissionais de saúde precisa dialogar com as realidades sociais e territoriais do país, não apenas com os grandes centros urbanos”, avalia. O objetivo, segundo o Cebes, é formar médicos com vínculo comunitário, mais comprometidos com o SUS e com a redução das desigualdades.

A principal crítica das entidades médicas é a suposta quebra de isonomia por um vestibular próprio, sem o Enem. No entanto, processos seletivos específicos para públicos determinados não são novidade. A própria UFPE, assim como a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), já realizam vestibulares diferenciados para indígenas e quilombolas. A UFPE, por exemplo, oferece o curso de licenciatura intercultural indígena exclusivo.

As associações que agora se preocupam com a isonomia, aponta o Cebes, silenciam sobre a barreira econômica do curso de Medicina, com mensalidades que ultrapassam R$ 10 mil nas faculdades privadas.

Fontes ouvidas pela Marco Zero acreditam que, embora possa ocorrer judicializações, a jurisprudência favorável a outras turmas do Pronera garantirá a continuidade do curso. O que talvez possa ocorrer é um possível atraso no início do processo seletivo e das aulas. A publicação do resultado final está prevista para até o dia 16 de outubro e o início das aulas, no dia 20 do mesmo mês.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornais de bairro do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com