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Fotos: Inês Campelo / Marco Zero Conteúdo
Diante de plateias formadas por cientistas estrangeiros,
ambientalistas famosos ou gestores de outras cidades, o prefeito do
Recife, Geraldo Julio (PSB) costuma ser apresentado como dirigente da
rede internacional Governos Locais pela Sustentabilidade e faz discursos
sobre os problemas que “as mudanças climáticas vão causar na cidade nos
próximos anos”. Foi assim, por exemplo, durante a Conferência
Brasileira do Clima, realizada no início de novembro, na capital
pernambucana.
No entanto, pelo menos um projeto elaborado pela secretaria municipal
de Meio Ambiente e aprovado no Conselho Municipal de Meio Ambiente
(Comam), com votos favoráveis de todos os representantes da prefeitura,
parece contradizer a postura pública do prefeito: a liberação de
construções de edifícios de 24 metros em plena Mata da Várzea, uma das
poucas áreas com o que sobrou de mata atlântica preservada.
O plano de manejo da Mata da Várzea, aprovado na 175ª reunião do Comam, em 18 de setembro, estabelece, entre as páginas 76 e 81, os parâmetros para as construções nos 796 hectares dessa Unidade de Conservação da Natureza (UCN).
Na área de equilíbrio ambiental, com um grau intermediário de
proteção, será possível construir prédios de até oito andares, ou 24
metros de altura, sendo possível manter 50% do solo natural. Como esse
setor tem 153 hectares, será possível desmatar até 76,5 hectares de uma
mata bem preservada ou em avançado estado de regeneração às margens do
rio Capibaribe e ao longo da estrada de terra que leva à oficina de
Francisco Brennand.
Até mesmo na área destinada ao nível de proteção mais rigoroso, o de
Conservação 01, será possível construir prédios de até 15 metros de
altura (cinco andares), preservando 95% do solo natural. Acontece que
essa área possui pouco mais de 569 hectares, portanto as futuras
construções poderão ocupar até 28,45 hectares. Para efeitos de
comparação, o Cais José Estelita, cenário de tantos conflitos, tem 10
hectares.
A Mata da Várzea, também conhecida como Mata dos Brennand, por ser propriedade dessa bilionária família, é uma das 25 Unidades de Conservação da Natureza (UCN) do Recife criadas entre a segunda metade dos anos 1990 e 2008.
Os decretos que criaram as UCNs definem que cabe ao poder público
elaborar os planos de manejo de todas as 25 unidades de conservação, o
que nunca havia sido feito. Somente a partir de meados de 2018 os planos começaram a ser produzidos por
uma equipe de 15 pessoas, contratadas pela Secretaria Municipal de Meio
Ambiente e Sustentabilidade exclusivamente para essa finalidade. Depois
de prontos, os planos precisam ser aprovados pelo Comam, para, a partir
disso e depois de definida a estrutura do comitê gestor de cada
unidade, entrarem em vigor por meio de decreto do prefeito.
Apesar das unidades de conservação corresponderem a 38% do território recifense, as regras para ocupá-las e usá-las não passa pelos debates do Plano Diretor.
Perguntas para a prefeitura
No dia 13 de novembro, enviamos por e-mail para a assessoria de comunicação da secretaria municipal de Meio Ambiente uma mensagem com o conteúdo reproduzido abaixo. Até o momento de fechamento dessa reportagem, nenhuma resposta foi enviada. No momento em que a Prefeitura do Recife se posicionar, atualizaremos o texto com a posição oficial da gestão municipal.
O plano aprovado pelo Comam prevê gabarito de 24 metros na área de proteção ambiental em plena mata da Várzea, além de construções de gabarito de 15 metros na área de proteção mais rigorosa.
Gostaríamos de questionar:
1) se a aprovação de prédios desse porte em plena área de conservação não contradiz fortemente o discurso oficial do prefeito Geraldo Julio sobre emergência climática?
2) quais os critérios adotados para estabelecer esses gabaritos, além da taxa de preservação de solo natural, que ficou em 50% nas zonas onde o gabarito é de 24 metros?
3) Há algum empreendimento imobiliário projetado ou previsto pelos integrantes da família Brennand para a UCN? Vale lembrar que, nos últimos anos, Cornélio e Ricardo Brennand se notabilizaram pelos empreendimentos na Reserva do Paiva.
4) A família Brennand, proprietária daquelas terras, exerceu pressão direta ou indireta sobre a prefeitura para assegurar a aprovação de tais parâmetros urbanísticos?
5) Foram assegurados debates e discussões a respeito dos detalhes do plano no Comam?
A elaboração dos planos de manejo acontece sem alarde ou espaço nos
informativos da prefeitura. A fase de diagnóstico do contexto de cada
unidade conta com oficinas de participação popular com a presença de
moradores, empresários e representantes de entidades dos bairros do
entorno. A comunidade, no entanto, não tem acesso ao plano antes de ser
apresentado e aprovado pelo Comam.
(O uso das palavras “apresentado e aprovado” no lugar de “discutido”
não foi por acaso: é literalmente isso que ocorre no Conselho, como se
verá alguns parágrafos adiante)
Talvez, por isso, o autor desta reportagem teve de enviar para todos
os entrevistas o arquivo com o plano de manejo da Mata da Várzea. Nem
ativistas de coletivos do bairro da Várzea ou mesmo especialistas no
tema sabiam que havia um plano pronto. Muito menos que ele já estava até
aprovado.
Apresentada ao plano, a doutora em Ciências Florestais Isabelle
Jacqueline Meunier, professora da Universidade Federal Rural de
Pernambuco (UFRPE) e especialista em Manejo Florestal, mostrou-se
espantada com os parâmetros definidos pela prefeitura do Recife. Sua
reação foi enérgica:
“Quer sinceridade? O estudo foi feito para permitir a ocupação e não
para dotar a unidade de um instrumento de gestão. Não só o gabarito de
24 metros é um disparate em uma área de ‘equilíbrio ambiental’ como,
pior, o gabarito de 15 metros, ou cinco andares, na Zona de Conservação 1
que corresponderia á área com maior restrição . Por ser, segundo eles,
uma área de ‘floresta densa’ – embora não apresente parâmetros
dendrométricos dessa floresta – não deveria permitir edificações”,
afirma a pesquisadora. Dendrometria, aliás, é o estudo do volume das
árvores e das partes que a compõem.
Para Meunier, “incentivar a ocupação humana fora da área de Ocupação
Humana parece um contrassenso. A zona de Equilíbrio Ambiental deveria
ser de restauração. Por que não é? Provavelmente por que têm dono que
quer lotear e construir”, raciocina.
De acordo com a professora, a prefeitura não pode afirmar que está
elaborando um instrumento de gestão, pois “não há unidade de conservação
no seu sentido estrito, mas sim a definição de zona urbana com
parâmetros diferenciais de ocupação e uso”, similar o que se faz para
definir um novo bairro.
Professor de Filosofia da UFRPE e ativista do grupo Direitos Urbanos,
Leonardo Cisneiros era outro que não conhecia as intenções da
prefeitura para a Mata da Várzea. Após pedir alguns dias para analisar o
documento, fez críticas severas à proposta.
“Numa das muitas falácias do plano, se usa o argumento jurídico de
que, como a legislação federal impõe que uma área de proteção integral e
todo seu entorno têm de ser considerada zona rural, então não seria
possível classificar a mata como área de proteção integral, pois o
território do Recife é 100% zona urbana. Ora, quem assinou esse parecer
jurídico inverteu a lógica: bastaria a classificação como área de
proteção integral para que fosse considerada como zona rural”, apontou
Cisneiros.
Antes de receber a avaliação de Cisneiros, a reportagem havia
conversado com dois servidores públicos da secretaria municipal de Meio
Ambiente que se revelaram especialmente incomodados com esse aspecto
jurídico.
Leonardo Cisneiros também chama a atenção para o fato do plano
liberar edifícios e supressão de vegetação de Mata Atlântica, bioma
protegido pela lei federal 11.428. O plano não estaria respeitando essa
legislação, nem a legislação que protege os mananciais, pois o documento
identifica a existência de cursos d’água na zona de equilíbrio
ambiental. “Acredito ser possível questionar judicialmente este plano de
manejo”.
Já o arquiteto urbanista Werther Ferraz, morador da Várzea e
integrante de um coletivo que acompanhou os debates do Plano Diretor,
não ficou assim tão chocado. “Menos mal. Creio que os 24 metros não são
assim tão horríveis, porém identifiquei uma contradição clara no plano:
por que se define 24 metros para uma área de Equilíbrio Ambiental, com a
mata em recuperação, e 15 metros para a área que já possui ocupação
humana?”
Ferraz indicou o que, em sua opinião, é outra falha da proposta da prefeitura. “A Várzea é um bairro onde a interação social entre pessoas de classes sociais diferentes acontece na praça, nas calçadas. Numa mesma rua, há casas de classe média alta e residências populares, típicas da periferia. É um bairro sem guetos, ao passo que a intenção da prefeitura parece ser a criação de um gueto de abastados junto à mata”, comentou.
A posição dos Brennand
A gerente de Urbanismo da Iron House, empresa do Grupo Cornélio Brennand, Paula Peixoto, enviou nota com o posicionamento dos proprietários da Mata da Várzea, que publicamos abaixo na íntegra:
“Como é do conhecimento de todos, a Prefeitura da Cidade do Recife vem conduzindo o processo público de discussão dos Planos de Manejo das Unidades de Conservação da Natureza, dentre as quais a UCN Mata da Várzea, onde se encontra o imóvel denominado Engenho Santos Cosme e Damião, de propriedade do Grupo Cornélio Brennand.
Essa área, que sempre foi objeto de rigorosa preservação e extremo cuidado pelos proprietários ao longo de todos estes anos, passou a ter, com o Plano de Manejo aprovado recentemente pela Prefeitura, ainda maiores restrições urbanísticas e ambientais do que as que vigoravam anteriormente.
Nesse processo participativo, a APA Mata da Várzea foi reclassificada para ARIE – Área de Relevante Interesse Ecológico, categoria que assegura um grau de proteção mais rigorosa ao imóvel, o que vem de encontro ao desejo e propósito de seus proprietários.
Por fim, o Grupo Cornélio Brennand esclarece que não possui qualquer projeto de desenvolvimento imobiliário em discussão com nenhuma incorporadora ou construtora nessa área e reitera a preocupação de assegurar a preservação das matas e a sua sustentabilidade, tal como vem fazendo há mais de 100 anos à custa de investimentos próprios elevados em conservação ambiental e segurança.”
Em relação ao conteúdo da nota, é preciso esclarecer que o “processo participativo” se limita às oficinas de diagnóstico, não ao zoneamento, classificação e à definição de parâmetros urbanísticos. A Iron Horse acerta parcialmente quando afirma que o plano recém-aprovado estabelece parâmetros mais restritivos do que aqueles em vigor.
Não é bem assim: o decreto assinado pelo ex-prefeito João Paulo em setembro de 2004 realmente era generoso ao prever apenas 25% de taxa de solo natural na área Setor de Intervenção Planejada, chamada agora de Equilíbrio Ambiental, porém o gabarito máximo para os prédios era de 15 metros, sem possibilidade de construir edifícios no Setor de Conservação Ambiental. Além disso, o decreto de 2004 não autorizava construção alguma, exigindo ainda a elaboração do, até então, inexistente plano de manejo
Para entender como acontecem os debates sobre um tema que, como
reconhece publicamente o prefeito Geraldo Julio é tão importante para o
futuro da cidade, a Marco Zero decidiu acompanhar na quarta-feira, 27 de
novembro, uma reunião do Conselho Municipal de Meio Ambiente.
Os pontos iniciais de pauta foram vencidos com rapidez e discussões
protocolares. Primeiro, foi apresentada a proposta de criação dos planos
de gestão para os jardins históricos projetados pelo paisagista Burle
Marx para o Recife. Depois de uma tediosa discussão sobre a necessidade
ou não de votar, o plano foi aprovado.
O próximo ponto de pauta deveria ter sido a posse da Associação das
Empresas do Mercado Imobiliário de Pernambuco (Ademi-PE) para substituir
o Sesc, cujo representante faltou mais de três reuniões, o que provocou
o afastamento da entidade. Deveria ter sido, mas não foi: o
representante da Ademi também levou falta bem no dia da posse.
Depois de mais um item de interesse interno, começam as apresentações
dos planos de manejo de seis unidades de conservação. Isso mesmo, meia
dúzia: Ilha do Zeca, Joana Bezerra, Rio Jordão, São Miguel, Sítio Grande
e Tamandaré.
Os técnicos da prefeitura se revezam num cansativo jogral. E repetem
itens da metodologia que já foram apresentados outras oito vezes.
Algumas representantes de secretarias municipais foram embora antes do
fim, mas registraram voto a favor antes de sair. Pode.
Os slides do power point falam das oficinas de participação, dos
tipos de plantas, das aves, das ocupações irregulares, do zoneamento. E
pronto. Os seis planos foram aprovados sem que se falasse da altura
máxima de construção de prédios e da taxa de preservação de solo
natural. Na Ilha do Zeca, por exemplo, ali por trás do hospital
Português e do Sport Clube do Recife, poderão ser erguidos prédios de 24
metros. A reunião já seguia com três horas de duração. Nem os três
únicos representantes da sociedade civil lembraram de perguntar.
A aprovação não contou com o voto de Eliedson Machado da Silva,
representante da OG Fase, que se absteve, que tem muitas críticas à
dinâmica do Comam: “os planos de Manejo vêm sendo aprovados quase que
por maioria absoluta dos representantes da prefeitura, não há diálogo
profundo. A qualidade da participação da sociedade nesse espaço de
‘prestígio’ e ‘deliberação’ é deficitária”.
Com um debate de tão má qualidade, os conselheiros deixam passar itens absurdos. Não é de espantar, portanto, que, em dois dos planos aprovados até agora existem parâmetros que, ao menos em tese, permitem a construção de prédios de até 15 metros no espelho d’água da Lagoa do Araçá e do Açude de Apipucos, ou seja, dentro da lagoa e do açude.
Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.