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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Foi na praia do Janga, no município de Paulista, ao som dos sucessos do Grupo Revelação, que Erica Malunguinho encontrou a equipe da Marco Zero para compartilhar os momentos marcantes de sua trajetória pessoal e política. O local, escolhido pela entrevistada, ficava a poucos metros da casa de sua mãe, e era nítido o valor afetivo que existia ali. Vestida com uma camiseta do Grêmio Recreativo Escola de Samba Preto Velho, de Olinda, e saboreando um caldinho à beira mar, a primeira deputada estadual trans do Brasil se despiu da formalidade do cargo eletivo e expôs a pernambucanidade que lhe forma e sustenta sua luta.
Durante a conversa, entretanto, Malunguinho surpreendeu e não confirmou se disputará as eleições este ano para renovar seu mandato ou buscar um assento na Câmara Federal, apesar da convenção do PSOL paulista ter realizado sua convenção no sábado, dia 30 de julho, e aprovado seu nome como candidata a deputada federal, enquanto ela estava no Recife. Outra surpresa: ela quer se reaproximar de Pernambuco.
“Sou deputada em São Paulo, mas faço questão de afirmar a todo momento que sou de Pernambuco porque tenho absoluta certeza que tudo que eu sou diz respeito à formação afetiva e intelectual que tive neste lugar”. A afirmação veio seguida por diversas histórias marcantes de sua vida e de sua família, que tem origem na cidade de Tracunhaém, na Zona da Mata Norte, conhecida como “cidade do barro”.
“O início da minha família é em Tracunhaém, depois tanto minha mãe quanto meu pai migram para o bairro de Água Fria, em Recife. Mas depois que minha avó faleceu minha mãe se mudou para Paulista, onde passamos praticamente a vida toda”, contou a deputada.
Apesar de frequentar bastante o bairro de Água Fria, devido a sua ligação com o Terreiro Sítio do Pai Adão, foi no bairro de Arthur Lundgren, no Paulista, que Erica Malunguinho passoua infância e adolescência. “Eu tinha uma reserva de Mata Atlântica na esquina da minha casa, então eu vivia brincando na mata. Eu tenho essa experiência de uma infância muito poderosa, de viver sempre na mata, nos rios, conversando com os mais velhos”.
Ao relembrar da infância, Erica reforçou a importância de suas vivências culturais no estado como base de uma formação política: “o que move meu pensamento é a relação com as pessoas, com a sociedade e com a cultura. E Pernambuco é um território fértil e riquíssimo nesses três aspectos. Meu saber é sensível por conta da percepção desse território. As imagens que formam a minha cabeça são dos caboclos de lança, das cirandas. A primeira vez que eu vi uma travesti foi em um maracatu”.
Educadora e artista plástica, Erica Malunguinho foi eleita deputada estadual em São Paulo em 2018 pelo PSOL e se tornou a primeira mulher trans a ocupar o cargo de deputada no Brasil. Nomeado como “Mandata Quilombo”, o mandato gestão de Erica caminha para se tornar o primeiro gabinete político do país a ser completamente composto por pessoas pretas. Os votos e o cargo, contudo, não lhe trouxeram soberba.
Erica acredita que o diálogo humanizado com as ditas minorias no Brasil – negros, mulheres, indígenas, LGBTQIAP+ – continua sendo o melhor caminho para construir uma revolução política e social. “Eu acredito na revolução porque não há ser humano neste mundo que esteja condicionado à opressão e a submissão. Era para a maioria da população negra desse país estar morta agora, mas nós fizemos quilombos porque não nos conformamos com as chicotadas e com a morte”, declarou a deputada.
Sendo o Brasil um país formado por um sistema colonizador e escravocrata, a miscigenação – processo violento e desumano, muitas vezes sendo visto como benéfico de forma errônea e racista – fez com que muitos negros e negras demorassem a se reconhecer como tal. Isso aconteceu com a repórter que vos escreve, que só aos 15 anos começou a se reconhecer e identificar como mulher negra. Para Erica Malunguinho, porém, esse momento de descoberta nunca existiu.
“Eu tive muitos professores e professoras negras, no meu bairro tinha muita gente preta e minha família também é completamente negra, então, a experiência do racismo passou de outro jeito por mim, eu nunca me descobri negra porque não tinha o que descobrir, era todo mundo preto”, afirmou a deputada.
Apesar de viver em um bairro periférico, a vulnerabilidade e pobreza extrema não fizeram parte da vida de Erica, mas isso não impediu que ela notasse as desigualdades: “eu tive uma vida muito simples, mas organizada, onde todo mundo trabalhava, não tinha uma situação de extrema vulnerabilidade ali, porém era uma vida limitada, obviamente”.
Dentro da comunidade em que Erica foi criada, questões de raça e classe eram problemas conhecidos e comuns, por isso não traziam para ela uma sensação constante de insegurança. No entanto, gênero e sexualidade ainda eram questões que a colocavam em um lugar de opressão. “Óbvio que eu passei por muitas situações de violência por conta da minha identidade de gênero, fui violentada por crianças, por pessoas mais velhas, já me bateram, me deixaram pelada na rua, me trancaram no banheiro da escola para que eu não fizesse uma prova, muita coisa aconteceu, mas eu sempre tive um lugar de proteção que era a minha família, minha mãe”, relatou a deputada.
Protetora, melhor amiga, referência política, pilar de sustentação, se Pernambuco foi um território fundamental para a formação intelectual e afetiva de Erica Malunguinho, a sua mãe foi – e ainda é – a guardiã de sua trajetória.
“Minha mãe é uma mulher preta e, como as estatísticas de abandono parental mostram, ela sempre criou os filhos e grande parte da família sozinha. E mesmo quando ela voltava cansada do trabalho como enfermeira, ao invés de descansar, ela ia atender o bairro, e eu sempre ia junto com ela. Eu cresci vendo essa sensibilidade e solidariedade que ela tinha com as pessoas”, contou Erica sobre sua mãe, que ela preferiu não nomear por temer que ela sofra perseguições e represálias.
Na adolescência, Erica Malunguinho começou a usar a moda como uma ferramenta artística para questionar gênero e sexualidade. “Eu iniciei um processo de criação artística, fazendo intervenções através da linguagem da moda. Com o vestuário eu fui transgredindo os estereótipos de gênero. Eu usava roupas pensadas para chocar”, afirmou a deputada.
De 1996 até 1998, Erica criava e modelava com suas próprias criações pelas ruas do Recife. A deputada contou que adorava desfilar pelas ruas do Recife Antigo: “imagina a classe dominante de Recife vendo eu muito fina”.
A paixão pela arte impulsionou o desejo em explorar sua corporalidade e, em 2001, Erica Malunguinho decide ir morar em São Paulo. “Eu sabia que precisava ter uma vida independente principalmente porque tinham algumas questões de gênero e sexualidade que eu precisava viver e isso seria muito difícil se eu tivesse ficado aqui, porque tinha toda uma relação familiar que não dava conta. Então, eu fui para São Paulo pensando em explorar a minha existência. […] As pessoas de São Paulo sempre esperam que eu tenha um discurso de uma vida muito difícil e sofrida em Pernambuco e esse seria o motivo que me fez migrar, mas não foi isso, eu fui por uma escolha pessoal”, declarou a deputada.
Em São Paulo, Erica Malunguinho começou a trabalhar e iniciou sua graduação em Pedagogia. Em seguida, a educadora passou a realizar formações focadas em gênero, raça e sexualidade e ingressou no mestrado em Artes Plásticas. Não foi um percurso fácil: “eu sempre estive produzindo arte, fazendo performance, desenho, fotografia, literatura e tudo isso tendo que enfrentar muita coisa, racismo, xenofobia, transfobia. Eu conheci o racismo em São Paulo. Havia uma violência constante durante todo esse processo na educação onde eu fui muito interditada, por isso eu me agarrei na intelectualidade para provar com o meu conhecimento que aquele lugar que eles queriam me colocar não era certo”.
Em 2016, Erica Malunguinho percebeu a urgência em radicalizar as discussões sobre raça, gênero, sexualidade e classes sociais e começou a idealizar a melhor maneira de unir arte e política. Através do desejo em construir um espaço para acolher, ensinar e impulsionar políticas pensadas pelo o povo negro e para o povo negro, nasceu a Aparelha Luzia.
Centro cultural, casa de shows, centro de formação, organização não governamental ou espaço político? Tudo isso e nada disso. Erica prefere denominar a Aparelha como quilombo urbano e explica porquê: “é um lugar essencialmente político, do lugar mais genuíno de onde eu entendo a política, que não é apenas dentro de uma casa legislativa. Política é agir na sociabilidade, na pólis, isso é fazer política, e a Aparelha está sempre fazendo isso, uma política baseada em afeto, em reciprocidade, em conflitos a serem resolvidos entre nós, pessoas pretas, e com isso ela dialoga também com a política institucional”.
“É um bioma das inteligências negras, um espaço de sociabilidade e discussões diversas e com isso responde uma pergunta muito interessante: ‘o que as pessoas pretas podem fazer quando não precisam pensar em racismo?’”, especula Erica Malunguinho.
A Aparelha Luzia recebe diversas ações políticas e culturais de diferentes iniciativas do movimento negro, e está localizada no bairro de Campos Elíseos, em São Paulo.
A própria escolha do nome “Aparelha” é um ato político e faz referência aos espaços de resistência, abrigo ou esconderijo utilizados pelos militantes de esquerda durante a ditadura, que eram chamados de “aparelho”. “Aparelha é aparelha porque a revolução é feminina e a palavra ‘mandata’ vem do mesmo lugar, para fazer uma torção e uma provocação necessária sobre essa masculinidade compulsória que também está presente na língua e no ethos”, explicou Erica.
Até 2018, Erica Malunguinho não era filiada a nenhum partido político. Foi a ascensão do bolsonarismo e do discurso fascista que despertou na educadora a urgência em lançar uma candidatura que pudesse abrir espaços na política institucional.“Eu sabia que nós precisávamos colocar alguém com um discurso e com uma prática radical, então eu olhei pro lado, olhei pro outro, não vi ninguém, e pensei ‘eu vou’”, disse a deputada.
Erica contou que apesar da demora em ingressar de forma mais direta na política, a sua história familiar já era marcada por atuações no campo progressista: “minha avó apoiou Miguel Arraes, quando ele foi preso ela foi protestar na porta da delegacia. Minha mãe era ligada a Francisco Julião, um dos maiores líderes das Ligas Camponesas. Então, não tinha como eu não estar envolvida com esse campo progressista da política, eu só fui lapidando isso, porque antes eu achava que era uma luta de classes, mas atualmente eu entendo que antes de tudo é um conflito racial que gera um conflito de classes no Brasil”.
Após ser eleita, Erica Malunguinho resolveu levar ao seu mandato, que ela chama de “Mandata Quilombo”, todas as suas lutas pessoais e políticas e formou um gabinete composto 100% por pessoas negras e com maioria de mulheres e pessoas LGBTQIAP+.
“A gente vai entregar para São Paulo e para o Brasil o primeiro e único gabinete 100% negro do país e isso já é uma revolução, porque a gente sabe como o racismo institucional opera de modo a interditar que pessoas pretas sejam participantes, ainda mais em uma totalidade como essa. Não é possível que toda pessoa que projeta e constrói ônibus não anda de ônibus, então se eu estou falando de romper violência e desigualdade, é óbvio que tem que ser o meu povo, o povo negro, que precisa estar pensando nisso. Essa mandata é uma experiência que afirma e comprova o que a gente já sabia: que o povo preto sabe fazer política institucional também”, afirmou.
Entre os feitos de sua “mandata”, Erica Malunguinho ressaltou o aumento no número de emendas parlamentares destinados aos povos de terreiros, quilombolas e população negra e LGBTQIAP+. Um dos seus projetos aprovados, estabeleceu que, em São Paulo, as mulheres trans vítimas de violências devem ser atendidas pelas delegacias da mulher.
Apesar de ter lançado sua pré-candidatura a a deputada federal nas eleições de outubro, ela nitidamente desconversou quando a conversa chegou a esse assunto, inevitável, aliás. Questionada sobre qual seriam seus próximos passos na política, sua resposta foi evasiva: “o próximo passo é: nós vamos eleger a maior bancada de pessoas negras, LGBTs, indígenas e mulheres da história desse país. Também vamos eleger Lula presidente, porque ele é o nosso maior estadista e nesse momento é a única pessoa capaz de colocar as coisas no lugar. Eu confio muito nisso e vou usar toda minha energia para que isso se materialize”.
“A gente tem solução e precisamos colocar ela em prática porque nós não vamos mais ser apenas destinos de políticas públicas, vamos ser as pensantes delas. Esse é um compromisso que Lula também deve assumir, porque foi muito importante instituir as políticas afirmativas, como as cotas, mas agora a gente tem uma geração que é fruto desse processo afirmativo e essas pessoas precisam estar nas estatais, nas políticas, pensando toda a formação da sociedade, não há mais desculpa para dizer que essas pessoas não têm capacidade de estar nesses lugares”, concluiu a deputada.
Nesse momento, ela deixou no ar a possibilidade de retornar de vez a Pernambuco sequer sair candidata, pois antes de despedir-se, admitiu que está com saudade de viver em Pernambuco e que essa última visita ao estado mexeu com ela de uma forma diferente. Seria um chamado do lugar que a formou. “Quem sabe? Será que vem aí uma Aparelha Luzia no Recife? Imagina”, respondeu a deputada.
Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.
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Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.