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Quem são, o que pensam e o que pretendem os policiais antifascistas

Débora Britto / 26/06/2019

Reestruturação e desmilitarização das polícias, carreira única, ciclo completo, fim do inquérito policial, municipalização. Alguns desses termos e expressões são conhecidos de parte da população, outros fazem parte de um debate ainda restrito ao universo de quem integra as polícias brasileiras e que vão muito além da questão salarial e das reivindicações por melhores condições de trabalho.

Quem levanta a bandeira da desmilitarização das polícias, além dos movimentos sociais, movimento negro e outros, é o jovem Movimento de Policiais Antifascismo. Eminentemente político, o manifesto do movimento reconhece, como ponto de partida, a falência da guerra às drogas, a criminalização da pobreza e a matança de negros como resultado do sistema de segurança pública também falido.

O movimento começou a tomar forma a partir das discussões de policiais no Rio de Janeiro, depois na Bahia. Em 2017, após um encontro no Rio, a articulação se espalhou por outros estados. Em 2018 aconteceu o segundo encontro no Fórum Social Mundial, na Bahia, de onde saiu a ideia de realizar um congresso nacional para ampliar o debate nas corporações e com a sociedade. 

Naquele momento, um ano antes das eleições que colocariam Jair Bolsonaro (PSL) na presidência da República, os policiais antifascistas vislumbravam um cenário complexo, mas com possibilidade de avanço do debate da reforma do sistema de segurança pública. Agora, o movimento reconhece as dificuldade da mudança do contexto, mas avalia que não dá para retroceder.

O 1° Congresso Nacional aconteceu no Recife, no final de maio, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Partindo das realidades individuais de cada um dentro de suas forças de segurança nos mais variados estados do país, nós detectamos que esse modelo está falido. Não é no combate às drogas, não é na questão da falta de elucidação de homicídios. Como um todo, o sistema de segurança pública está falido e desemboca nesse sistema carcerário com um dos maiores contingentes de presos do mundo”, diz o investigador Rafael Cavalcante, dirigente do Sindicato dos Policiais Civis de Pernambuco (Sinpol-PE).

principaisPautasPoliciaisAntifascismoDurante o Congresso, questionado sobre o contexto desfavorável com a chegada de Bolsonaro ao poder, Rafael disse que os policiais têm visto o momento como oportunidade de pautar o debate público com mais urgência.

O grupo de policiais com pensamento progressista ou pensamento de esquerda sempre foi minoritário dentro das instituições de segurança pública. Para o dirigente, que foi ao Rio de Janeiro em 2017 conhecer o que discutiam e propunham os policiais antifascistas, um dos pontos centrais do debate é fazer o policial se entender como trabalhador. Para dentro da corporação, depois de superar as questões trabalhistas e da classe, o policial precisa se ver como cidadão. É a partir daí, segundo ele, que existe uma mudança possível no modo como a polícia atua nas ruas.

Orlando Zaconne, delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, é uma referência no debate sobre desmilitarização e defensor do fim da guerra as drogas, e também enxerga um campo fértil para o crescimento do debate que o movimento propõe.

“Hoje em dia, o que acontece é que o policial é construídos como subcidadão”, afirma. Para ele, as pautas antes entendidas como apenas da categoria precisam estar associadas ao debate político do que representa o sistema de segurança pública para a vida de policiais e da sociedade que mais sofre com esta política.

“O policial da base nunca vai conseguir ascender às chefias das instituições, a não ser que entre por outra porta, fazendo outro concurso. Isso se refere à luta histórica de que os policiais da base tem por uma carreira única, que é algo que existe no mundo inteiro. A retirada de direitos desses trabalhadores vem por conta de uma estrutura arcaica que as polícias têm. No movimento surge a perspectiva de construir o policial como trabalhador e fazer mudanças estururais”, explica Zaconne.

Para Ricardo Balestreri, pesquisador, ex-secretário de Segurança Pública e Administração Penitenciária de Goiás e também secretário nacional de Segurança Pública, as forças policiais foram importantes catalisares do que chama de pensamento “protofascista” difundido atualmente no Brasil.

Ao mesmo tempo, ele analisa que a polícia – entendida de maneira ampla – pode exercer um papel central nas transformações da sociedade. “Tenho uma tese de que a policia tem potência de guiar transformações importantes. Essa tese foi confirmada no último fenômeno eleitoral brasileiro”, comenta.

É nesse cenário que Balestreri classifica o movimento de policiais antifascistas como um “nicho de resistência intelectual e reserva também de reserva moral” nas forças policiais.

A aposta, para ele, é que existe espaço para disputar as ideologias dentro das corporações, ampliando o diálogo e o modo de abordagem de policiais e servidores que não estão no meio da polarização. “Talvez pensar no alargamento do discurso. É preciso lembrar das policiais, dos bombeiros, dos guardas. A sedução corporativista envolve a maioria dos policiais. Tenho convicção de que o segmento profissional dos policiais esteve à frente da introdução desse pensamento protofascista, mas se estiveram à frente, também podem mudar”, afirma.

Relação com as esquerdas

“Nem bandido nem herói, policial é trabalhador”, afirma Zaconne. Com essa frase, ele sintetiza o debate feito sobre duas narrativas construídas sobre a polícia consideradas erradas pelo movimento. “Existe uma ideia à esquerda de que policial é bandido por natureza. Do outra lado, a direita construiu discurso muito mais sedutor, que é a do policial herói. Então muitas pessoas correram para esse lado, apesar de ser trágico porque diz que o policial tem que dar a vida muitas vezes por algo que não sabe o que é”, argumenta o delegado.

O pernambucano Rafael Cavalcante complementa o raciocínio do carioca Zaconne: “Talvez a grande reflexão é que a esquerda, desde a redemocratização, não pensou um projeto de segurança pública que incluísse os profissionais de segurança pública. Talvez esse seja um dos motivos de a gente ter essa classe tão conservadora”.

Esse afastamento de que Rafael fala tem raízes nos resquícios e na memória da ditadura civil militar de 1964, cujo aparelho policial reprimiu fortemente os movimentos sociais. A tentativa de aproximação dos policiais antifascistas tem seus avanços e recuos. Mas, agora, eles aparentam ter mais clareza a ponto desejam chegar. “A grande missão desse congresso é fortalecer essa luta, estruturá-la para que a gente possa dialogar mais, para que a gente possa mostrar que o fascismo é uma bandeira que tem que ser combatida, independentemente de qual função você exerce como trabalhador, da sua função dentro da sociedade”, explica Rafael, que advogava constantemente pela necessidade de serenidade nos diálogos.

“Nossas categorias nos cobram pelo nosso posicionamento e acabam por não aceitar o fato de ter um policial discutindo direitos humanos, de ter um policial discutindo um novo modelo de segurança pública, uma reformulação na lei de combate às drogas. Estamos aqui no fio da navalha porque acabamos sendo rejeitados por uma grande parte da nossa categoria e por parte da sociedade – e parte da vertente de esquerda do país – porque não aceitam que essas pautas sejam colocadas por policiais. Mas ainda assim a gente preza pelo diálogo, pela construção de um debate amplo”, relata Rafael Cavalcante.

Símbolo do movimento incorpora a bandeira antifascista no centro do brasão das forças policiais

Símbolo do movimento incorpora a bandeira antifascista no centro do brasão das forças policiais

Como a polícia chega na sociedade 

Isolados na corporação e pouco compreendidos no campo progressista, os policiais antifascistas têm no diálogo com a sociedade o seu maior desafio. Para parte da população a única relação com a polícia acontece pela força e repressão. Para isso apostam na mudança a partir da base das corporações – cujos integrantes são muitas vezes oriundos do mesmo meio social da população vítima da violência, população negra, pobre e periférica.

O movimento defende que ao discutir a hierarquização das forças policiais é possível aproximar a base da categoria do resto da população. Para os policiais antifascistas, a hierarquia “cria um sistema de castas que permite privilégios àqueles que estão nas cúpulas, em detrimento do trabalho árduo e sem proteção daqueles que estão em contato no dia a dia com a população”, como pontuado no manifesto do movimento.

Para os policiais antifascistas, o caminho para mudar esse círculo vicioso seria a completa reestruturação não apenas da Polícia Militar (com a desmilitarização), mas de todas as polícias. “É inadmissível que um praça que chegue a um quartel com o coturno sujo possa ser preso administrativamente. Por isso a gente fala em desmilitarização. Isso vai refletir na rua. Se a gente não muda a ordem de formação e de continuidade do fascismo dentro das corporações a gente não muda o serviço prestado”, diz Rafael.

Desconstruindo o discurso de guerra

Outro aspecto de destaque é a negação do discurso da guerra, explica o pesquisador Ricardo Balestreri. “Nós não estamos em guerra. Nós temos índices de guerra. Essa teoria da guerra é pra poder ferrar com a vida dos pobres”, reforça.

Em 2017, um policial civil ou militar foi morto no Brasil, no total foram 367 mortes. Já as vítimas fatais em intervenções policiais foram 5.519, cerca de 14 mortos por dia. Os dados são do 12° Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2018). Apesar de o número de policiais morrendo diminuir, o discurso de guerra, que sugere que todo dia um policial tem que ir às ruas para matar ou morrer, continua. O que seria o outro lado da moeda aumentou, em vez de diminuir. O crescimento de 21% de pessoas mortas em ações policiais reflete a política de segurança que aposta na guerra às drogas como principal foco.

Para o delegado Orlando Zaconne, é preciso compreender o fenômeno começando por negar a ideia de que existe uma guerra em que a polícia está matando e morrendo. “Essa violência é produzida por uma decisão política. Policiais estão morrendo e matando em contextos distintos. Se diz que temos a polícia que mais mata e a que mais morre. Se passa a ideia de que os policiais estão morrendo em confronto, mas isso não é a realidade dos números. Muitas vezes os números mostram que a morte de policiais são ações de execução fora de serviço, circulando no ambiente social com armas”, explica.

Já o contexto em que a polícia mata, que não pode ser ignorado, é definido pelo delegado como massacres. “Massacres são ações pré definidas pelas forças policiais, de ocupação de determinadas áreas com produção de mortes, muitas das vezes sem que haja confronto”, diz. 

O fator Bolsonaro

Os policiais antifascistas não posam de isentos no debate político institucional. Contra o projeto do governo Bolsonaro de facilitação da posse de armas para a população, o grupo também quer discutir com a categoria questões como a Reforma da Previdência e outras políticas públicas. “O policial tem família e ela vai continuar à mercê da desassistência dos serviços públicos, dos cortes de verbas na educação, vai ficar à mercê da liberação das armas, de uma reforma da previdência que não leva em consideração a condição extremamente singular que ele tem como profissional de segurança pública”, argumenta Rafael. 

Para chegar na base das polícias, ele aposta na formação da consciência de uma classe trabalhadora. “Em termos de desgaste é a segunda profissão mais estressante do mundo e sem perspectiva de se aposentar. Tudo isso a gente tem que mostrar que não é um debate personalizado contra o Bolsonaro, é um combate contra uma política pública que não nos serve. E como trabalhadores não nos serve enquanto cidadãos e não serve ao nosso povo, a quem a gente deve servir”, afirma.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.