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Reunião do “gabinete das sombras” foi solicitada por médicos pernambucanos

Maria Carolina Santos / 07/06/2021

Crédito: Marcos Côrrea/ PR

Uma das perguntas da Comissão de Inquérito Parlamentar (CPI) sobre a pandemia da covid-19 no Brasil é se houve ou ainda há uma espécie de Ministério da Saúde paralelo atuando no governo Bolsonaro. Na sexta-feira passada, o site Metrópoles resgatou trecho de um vídeo em que Bolsonaro se reunia com vários médicos, liderados pelo ex-ministro Osmar Terra. Em certo momento, o virologista Paolo Zannoto sugere que o presidente crie um “shadow cabinet”, um gabinete das sombras. “Esses indivíduos não precisam ser expostos, digamos assim, à popularidade”, disse Zanotto, na reunião, que foi exibida em uma live no facebook em setembro de 2020.

Três médicos pernambucanos participaram daquela reunião e, ao final, posaram para fotos com Osmar Terra, a médica Nise Yamaguchi, já ouvida pela CPI da Covid, e o próprio Bolsonaro. São o oftalmologista Antônio Jordão, o pneumologista Blancard Torres e a pediatra Tilma Belford.

Eles não eram meros espectadores: a reunião foi um pedido do grupo Médicos pela Vida, um dos principais propagadores do “tratamento precoce” no Brasil, liderado pelo pernambucano Antônio Jordão. Blancard Torres também faz parte da coordenação do grupo, que reúne sete médicos, dos quais cinco são de Pernambuco. Jordão ficou coordenando a reunião, com Bolsonaro ao lado e Osmar Terra na outra ponta de mesa. Jordão também entregou um documento com apoio e reivindicações para o presidente.

Já Blancard, que ficou conhecido por ser o médico de Frei Damião, foi ao microfone para se queixar que levou uma advertência do Hospital Português, onde diz trabalhar há 42 anos. “Porque eu falei (em um vídeo) que os genocidas eram os governadores, como Paulo Câmara, e os prefeitos, (como) Geraldo Júlio. Eles negam essas medicações”, reclamou, afirmando que desde março de 2020 fazia vídeos defendendo a hidroxicloroquina.

Blancard também reclamou que o Conselho Regional de Medicina do Estado de Pernambuco (Cremepe) é contra o tratamento precoce e pediu que o presidente proteja os médicos que o apoiam. “Como eu posso fazer vídeo instruindo o povo se eu não tenho o presidente dizendo que não pode me atacar? porque se me atacar, ataca o senhor. Eu sou o seu soldado, você é meu capitão. O senhor tem que estar ao meu lado”, suplicou.

Bolsonaro respondeu que os conselhos de medicina deveriam pedir uma ação preventiva para que os médicos pudessem receitar o tratamento sem ser incomodados. “Vamos acertar com a Saúde pra ver o que a gente pode fazer”, completou o presidente. Nos vídeos ainda disponíveis na página de Bolsonaro, não há falas de Tilma Belford.

Seguindo a linha da extrema-direita de sempre se manter na ofensiva, o grupo não recuou com a CPI da Covid. Pelo contrário. Em um abaixo-assinado que começou a circular dias antes do começo da Comissão, defendem uma sequência de medidas que mostram o porquê do Brasil ser o segundo colocado no mundo em mortes por covid-19. Vai da negação às vacinas e medidas de prevenção – chegam a chamar o uso de máscaras de “desumano” – à solicitação de que a hidroxicloroquina por inalação seja uma “alternativa” à intubação.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) não só não se cala sobre o grupo como mantém com ele relação estreita. Representantes do CFM e de conselhos regionais participaram de eventos do Médicos pela vida, como mostrou reportagem do The Intercept. Na terça-feira passada, quando a médica bolsonarista Nise Yamaguchi foi questionada na CPI, o Médicos pela Vida emitiu uma nota de repúdio contra “posturas inaceitáveis de políticos”. No dia seguinte, o CFM também emitiu uma nota “para manifestar sua insatisfação com a postura de membros da CPI”.

Quando o tema é tratamento precoce e o uso de medicamentos já comprovadamente ineficazes ou até prejudiciais, o CFM tem recorrentemente usado o argumento da autonomia médica.

A Marco Zero perguntou ao Cremepe se há alguma investigação sobre a conduta do Médicos pela vida. Perguntou também sobre como ficou a investigação sobre o grupo Médicos da verdade, que teve início há mais de um ano e era patrocinado pela deputada estadual Clarissa Tércio. A resposta do Conselho foi de que “todas as denúncias que chegam a este Conselho são averiguadas e correm em sigilo processual para não comprometer a investigação”.

Antônio Jordão foi procurado pela Marco Zero Conteúdo. Ele respondeu ao contato e marcou horário para a entrevista, mas não atendeu às ligações.

Autonomia médica é outra coisa

Em contraponto à postura dos conselhos de medicina, a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares e a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD) costuraram um documento pedindo que a CPI da Covid apure as responsabilidade da atual diretoria do CFM. O documento, que foi entregue na semana passada ao senador Humberto Costa (PT-PE), critica a negligência e a afinidade do CFM com “a política genocida do Governo Federal de estímulo ao uso do chamado ‘tratamento precoce’ para a covid-19”.

Representante da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, a médica Camila Boff desconstrói o argumento do CFM em prol da autonomia da prática médica. “Estão fazendo uma interpretação errada da autonomia médica, que não significa que pode ser passado qualquer remédio, para qualquer doença. Existe para cada doença algumas alternativas de tratamento que são eficazes e, dentro dessas alternativas, posso selecionar o que vai funcionar melhor. Isso é que é a autonomia médica. E não selecionar algo que possa fazer mal ou que não tem efeito bom para o paciente. Isso é mais próximo do erro médico do que qualquer outra coisa”, diz.

Ela vê como um retrocesso a falta de posicionamento do CFM. “O grupo dos Médicos Pela Vida foi o grande responsável por difundir a prescrição do tratamento precoce entre os médicos. O conselho, enquanto entidade federal, apoia esse grupo, já que representantes dos conselhos participam dos eventos. É algo que choca. Porque há muitos anos se usa a medicina baseada em evidências, com uma uniformidade de entendimento mundial que não tínhamos há 50, 100 anos atrás. E aqui temos um governo que colocou o ‘eu acho’ acima de tudo que estava se estudando e um Conselho Federal de Medicina que assinou embaixo”, critica.

Ela lembra que as sociedades médicas, como a de infectologia e a de pneumologia, fizeram, de certa forma, o papel dos conselhos, ao se posicionar contra o chamado tratamento precoce. Mas que seria papel do CFM ter se posicionado antes e com força. “O preocupante disso tudo é que há um grupo grande de médicos que defendem esses tratamentos e fica extremamente confuso para a população saber a quem deve ouvir. A medicina não é matemática, não há consenso em tudo. Mas o que está acontecendo no Brasil é surreal. Grupos médicos organizados fazendo a defesa de tratamentos ineficientes e o CFM sem fiscalizar”.

A CPI da Covid ainda não anunciou se o presidente do CFM, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, ou algum membro da diretoria será chamado para depor. Após a divulgação do vídeo na sexta-feira, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) apresentou requerimentos de convocação para que o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) e o médico Paolo Zanotto prestem depoimento à comissão.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org