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Crédito; Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Tabocas, Exu – Pela estrada que está em melhores condições, são quase 30 quilômetros entre o centro do município do Exu e o distrito de Tabocas. De cima, do alto da Chapada do Araripe, se vê o vilarejo quase aos pés da serra, cercado por muito verde. Ainda é inverno no sertão e a estrada, de terra batida, tem buracos e poças. Quando chove muito, ninguém passa.
Essa comunidade quase isolada, com pouco mais de 2 mil moradores, é toda enfeitada: era final de julho, mas ainda havia bandeirinhas de São João nas ruas. Há flores nos canteiros, sítios com muros de pedras e casarios do século passado. A chapada do Araripe se ergue bela e grandiosa, abraçando a vila. “Aqui é um pedacinho do céu”, resume a octogenária Irene Pereira, com um sorriso no rosto.
Tabocas também é um dos poucos lugares do Brasil onde a epidemia da peste não foi esquecida. Em poucas horas na cidade é possível se juntar um carrossel de histórias sobre a devastação que a doença provocou. “Todo mundo aqui perdeu um avô, uma bisavó, um tio para a doença”, diz o produtor cultural Bibi Saraiva, uma espécie de historiador da comunidade.
Na calçada, conversando com amigos, o aposentado Chico Romeiro lembra que o pai contava que perdeu um irmão para a peste. “Quando meu tio morreu, criança ainda, meu avô e outros parentes se revezavam na cova dele, armados, para que ninguém exumasse o corpo para tirar o fígado”, diz. Na verdade, na época, se tirava um dedo dos mortos para confirmar se havia sido de peste mesmo, explica a pesquisadora da Fiocruz-PE Alzira Almeida.
Há registros de casos de peste na Chapada do Araripe desde 1919. “Mas a de 1935 foi registrada como a pior. Talvez tenha tido só uma outra epidemia tão violenta como essa só, que foi a de 1927/28 em Triunfo. E que é uma história também com pouca documentação”, afirma a jornalista e historiadora Cláudia Parente, que escreveu uma dissertação de mestrado em História sobre a peste em Tabocas.
Nascido em 1935, Paulo Manoel é hoje um dos moradores mais antigos de Tabocas. Ele lembra que os pais falavam que os ratos proliferavam nos paióis onde ficavam as colheitas do milho. “No sítio onde eu nasci, morreu muita gente, e morria rápido. Começaram a tocar fogo nos paióis de milho, para não empestear demais no povo. Era o que meus pais falavam”, lembra.
Tabocas era tão isolada na época que apenas quatro mortes por peste foram registradas no cartório mais perto, a 17 quilômetros dali. “Todas as quatro mortes eram de mulheres, e teve uma que foi registrada quase um ano após morrer”, conta Cláudia, que fez a busca nos cartórios da cidade para a dissertação. Foi em uma tese de doutorado de 1942, do cearense Marcelo da Silva Júnior, que a jornalista e historiadora encontrou o número de 195 mortes pela peste de 1935 em Tabocas, mas essa é a única fonte.”Se hoje não se tem certeza de quantas pessoas morreram na covid-19, imagine naquela época”, diz.
O mais provável é que nunca se saiba ao certo quantas pessoas morreram na epidemia de Tabocas. Os moradores de Tabocas relatam que quando os doentes morriam eram enterrados às pressas, nos próprios sítios onde moravam. “Em vários sítios e fazendas ainda hoje achamos cruzes, marcando o local onde as pessoas foram enterradas”, conta a professora Veralúcia Sampaio.
Durante vários anos, Veralúcia, que também é escritora, documentou com os alunos da escola do distrito a história de Tabocas. As epidemias de peste estavam sempre presentes na fala dos moradores mais velhos. Os relatos pareciam com as da idade média: casas com as portas batendo ao vento, porque todos os moradores dentro estavam mortos.
Quando a peste chegou ao Brasil, na terceira pandemia, já se sabia que era causada por uma bactéria e que era a pulga do rato que transmitia para o ser humano. Alexandre Yersin, o cientista que primeiro isolou a Yersinia pestis, também criou um soro antipestoso. Aqui no Brasil, a Fundação Oswaldo Cruz foi criada para combater a peste e o próprio Oswaldo Cruz também fez um soro antipestoso. Mas a eficiência desses soros nunca foi comprovada.
Na chamada fase portuária – quando a peste atingiu as capitais – os soros foram usados, com resultados não muito animadores. Mas havia o controle dos ratos e das pulgas. “Em Tabocas, não tinha tratamento para os doentes, não tinha o veneno rodenticida, contra roedores, nem inseticida contra pulgas. A sulfadiazina, que é muito eficaz, só foi descoberta na década de 1940 e, logo depois, a estreptomicina. Esses medicamentos é que foram heroicos no controle da peste. Tratando o doente, já se quebra a corrente de passar de pessoa para pessoa”, explica a pesquisadora Alzira Almeida.
Na epidemia de peste de Tabocas foi o rato doméstico o principal responsável por espalhar a doença. “A eliminação dos ratos e das pulgas controlou a epidemia. Depois do silêncio da peste na década de 1950, quando se pensou até que havia sido erradicada de Exu, a doença voltou nos anos 1960, mas não teve tantos casos em Tabocas, porque havia métodos eficazes de controle”, diz Alzira.
O revolucionário que morreu de peste
Na seca dos anos 1930, a Chapada do Araripe, do lado do Crato, foi a terra da comunidade messiânica Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, liderada pelo beato José Lourenço, com proteção de Padre Cícero. Lá, camponeses pobres cultivavam a terra e dividiam a colheita. Era um lugar também que tinha água, o que atraiu muitos retirantes. Quando o protetor da comunidade faleceu, a comunidade passou a ser perseguida por ser “comunista”.
Em maio de 1937, no governo de Getúlio Vargas, Caldeirão foi palco do primeiro ataque da Força Aérea brasileira dentro do Brasil. Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram, mas a comunidade se dispersou. O beato José Lourenço fugiu para Exu e morreu de peste bubônica em uma epidemia em 1946.
Apesar de ter causado tanto impacto no sertão de Pernambuco, a epidemia da peste foi esquecida. “É uma história fascinante, de como uma doença consegue promover um impacto tão grande nas pessoas. Mas no próprio município de Exu os moradores não conhecem essa história. Como memória não é algo fácil de se preservar, se você não tiver registro, se perde”, explica Cláudia Parente.
Natural de Exu, a jornalista conhecia a história da epidemia porque o pai trabalhou no Instituto Aggeu Magalhães e era amigo dos pesquisadores Alzira e Célio Almeida. Era uma história que ela sempre quis contar e decidiu que seria um bom tema para o mestrado. Um dos principais trunfos dela foi ter conseguido entrevistas com os últimos remanescentes da época, como Zé de Libana, que tinha 106 anos em 2016, quando foi entrevistado por Cláudia. “Dava uma febre de repente que o ‘cabra’ ficava da qualidade de fogo e se apagava logo. Eu nunca vi uma doença daquela na minha vida. Só vi aquela”, contou sobre a peste.
Outra entrevista muito interessante na dissertação é a de Maria Batista Filha, que, mesmo tantos anos depois, não pronunciava o nome “peste”, por medo de invocar a doença. Ao citar a doença na entrevista, ela se benzia três vezes e falava “armaria’, ‘armaria’, ‘armaria’, a bubônica!”. “Existem duas epidemias: a da doença e a da representação dela. Tem como ela é, biologicamente, e como ela é no imaginário do povo. Toda doença tem uma carga de culpa, de pecado”, explica Parente.
As entrevistas foram essenciais para entender o que ocorreu em Tabocas, já que não foram encontrados registros do Governo do Estado e havia poucos dados do Governo Federal. “E por que não se tem registro? porque não é interessante para nenhum governo registar algo que representa um fracasso. Em 1935, o Brasil produzia o soro antipestoso. Não era tão eficaz, mas foi usado no Rio de Janeiro. E se sabia que havia tido uma epidemia anos antes em Triunfo, com mais de 2 mil mortes, um absurdo em uma cidade tão pequena, por que não existia um serviço de vigilância em Exu? Houve falha do governo. No caso de Tabocas, quando o socorro chegou, o povo já havia morrido. Sem os testemunhos da população, teria sido muito difícil fazer esse trabalho”, diz.
A pesquisa de Cláudia mostra que o Jornal do Commercio publicou apenas duas notas sobre a peste de 1935 em Exu. Nos outros dois grandes jornais da época, Diário da Manhã e Diario de Pernambuco, a epidemia serviu para troca de farpas políticas. “Os jornais têm o registro que o fato aconteceu, mas houve o uso político da epidemia, como aconteceu com a covid-19, usando a doença para disputar a narrativa política. O Diário da Manhã era do governador da época, CarlosdeLimaCavalcanti, então era teatro. E o Diario de Pernambuco fazia oposição ao governador”, comenta Parente.
Abandonadas pelo poder público, a população de Tabocas encontrou conforto na religião: a chegada de uma imagem de São Sebastião, que virou padroeiro do distrito, é vista até hoje como o fim da epidemia. A imagem segue na igreja de Tabocas. A memória da peste também, ainda que poucas pessoas fora de lá tenham tido interesse em saber disso. “Às vezes as pessoas querem esquecer. Quando você estuda memória, você também estuda esquecimento. Mas não entendi que houve esse esquecimento provocado por um trauma nas pessoas de Tabocas. Elas se dispuseram a falar. Não haviam falado antes porque ninguém nunca quis ouvir. Nunca ninguém havia ido lá para saber, para ouvi-los”, diz Cláudia.
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org