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“Tudo que o Amazonas está passando agora os outros estados poderão passar amanhã”, diz pesquisador da Fiocruz Amazônia

Maria Carolina Santos / 14/01/2021

Cemitério público de Manaus, Nossa Senhora Aparecida, localizado no bairro Tarumã (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Foi no mês de abril que o Brasil se deparou com as primeiras imagens locais da tragédia da pandemia do coronavírus. As fotos e vídeos das valas sendo abertas em cemitérios de Manaus, capital do Amazonas, rodaram o mundo e foram um aviso: a pandemia estava aqui. Ao longo dos meses, aquela dor se espalharia por todo o Brasil, levando mais de 206 mil vidas até agora.

Por ter sido o primeiro lugar do Brasil a vivenciar um pico da pandemia, Manaus é vista como uma sentinela. Com mais de 2 mil pessoas internadas atualmente por conta da Covid-19 e taxas de internações acima dos 90%, a cidade vive novamente um colapso do sistema de saúde e dos serviços funerários. É o fim da tão falada teoria de imunidade de rebanho na capital amazonense. E o início das dúvidas sobre os efeitos de uma nova linhagem do coronavírus que circula por lá desde dezembro.

Professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e pesquisador da Fundação de Medicina Tropical Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD) e da Fiocruz Amazônia, o médico infectologista Bernardino Albuquerque conversou por telefone com a Marco Zero sobre a situação da pandemia no Amazonas e fez um alerta: “Nessa nova onda, tivemos um crescimento exponencial muito abrupto. Isso pode se repetir em qualquer capital e em qualquer estado”.

Entrevista// Bernardino Albuquerque, pesquisador da Fiocruz Amazônia

Pesquisador Bernardino Albuquerque. Foto: Fiocruz Amazônia

Há consenso de que o Amazonas vive o segundo pico do coronavírus?
Com certeza. Nós tivemos o primeiro caso registrado aqui no dia 13 de março e a partir daí uma evolução muito rápida em número de casos. Em abril e maio atingimos o primeiro momento de pico e posteriormente tivemos o declínio em junho, julho, agosto. Em setembro, tivemos um aumento de casos e internações e isso teve um crescimento. Hoje, estamos em uma situação de casos diários maior do que no primeiro pico. Consequentemente, estamos vivenciando aqui no estado uma situação extremamente crítica na saúde publica, com a saturação dos hospitais, dos leitos, uma demanda muito grande de pacientes graves que buscam unidades de saúde e não têm o atendimento que necessitam ou não são nem atendidos. No momento, estamos vivenciando também a falta de insumos, como a falta de oxigênio. Isso repercute em toda a rede de saúde. A situação hoje é de um pico da segunda onda. Acredito esse pico ainda vai se manter por dias ou até semanas até chegarmos em um novo declínio.

Como estão as restrições ?
Não há lockdown. O que o governo estadual determinou foi restringir o funcionamento apenas dos serviços essenciais. Essa semana um novo decreto determinou a suspensão do trânsito entre os municípios do interior, de forma terrestre ou fluvial. Uma medida bastante adequada porque nós estamos com essa situação dessa nova cepa do coronavírus com possivelmente características de maior transmissibilidade.

Muito se falou da questão da imunidade de rebanho que teria sido atingida em Manaus. Estudos da Fiocruz e da USP davam que até mais de 76% da população teria tido contato com o vírus, a partir de dados de doadores de sangue. Depois, o estudo da USP foi atualizado afirmando que a imunidade de rebanho seria atingida com 90%. O que aconteceu? Foi um erro acreditar nessa possibilidade?
Com certeza. Eu acho que temos que ter muita prudência em um momento como esse em fazer divulgação de estimativas futuras. E tentar realmente quando fazê-la ter absoluta certeza que aquele resultado é de extrema confiabilidade. Nós sabemos que na ciência é importante ter probabilidades e perspectivas, mas isso precisa ser analisado com mais cuidado. Essa publicação de que Manaus teria atingido imunidade de rebanho e a partir daí teríamos uma diminuição significativa de casos, sem perspectiva de uma segunda onda, foi uma falácia. Isso também permitiu que a população entendesse como mais um fator para o relaxamento das medidas de prevenção. Isso foi um ponto negativo. Além de ter sido um recorte pequeno – entre doadores de sangue – foi uma amostra viciada. E o que é isso? É extrapolar um resultado para a população geral sendo que meu estudo foi direcionado somente a determinado grupo populacional. Mesmo que se utilize algumas medidas de correção, isso é muito perigoso. Na realidade, esse estudo não foi feito da maneira que deveria ter sido feito. Na minha impressão, foi um grande erro.

No Amazonas está ocorrendo o período de chuvas, chamado de inverno amazônico. E isso já seria um fator para o recrudescimento de vírus respiratórios. Fora isso, que outros fatores o senhor percebe que contribuíram para esse segundo pico?
O primeiro trimestre do ano é historicamente o período onde temos mais infecções respiratórios. É um período de muitas chuvas, as pessoas se aglomeram mais e isso facilita a transmissão, ainda mais se tratando de uma doença com contágio pessoa-pessoa, como é o coronavírus. Nós tivemos também a partir dos meses de julho e agosto já um relaxamento das ações de controle. As ações que realmente permitiam um distanciamento entre as pessoas, e o uso de máscaras, lavagem de mãos, isolamento de casos e de controle…na medida que a doença diminuiu as pessoas relaxaram na proteção. Fora isso, nós tivemos grandes eventos no período eleitoral. Queira ou não queira, esses eventos contribuíram para uma grande taxa de infecção, com comícios e reuniões. Tivemos as festas de final de ano, que também contribuíram para isso. A situação foi muito relaxada. Depois, colocaram restrições para bares e eventos. Mas sabemos que nosso país não tem fiscalização. As coisas são feitas de uma forma muito pontual, até porque não temos recursos. Infelizmente, nosso país não está preparado para uma questão dessa. Outro fator é que depois do relaxamento da primeira onda, se começou a desmontar os serviços de saúde. Parece até que pensaram “olha, isso aqui não vai acontecer mais”. E aí realmente a doença voltou com muita força.

Manaus foi onde aconteceu o primeiro pico no Brasil, em abril e maio. Aqui no Recife, o pico veio cerca de um mês depois. O senhor acredita que o que está acontecendo agora em Manaus possa novamente se repetir em outros estados?
Sem dúvida. Todas as capitais brasileiras estão sinalizando para isso. Com aumento de casos em lógica exponencial. Isso pode se repetir em Pernambuco e em qualquer estado brasileiro. O vírus está presente, em foça total. Aqui em Manaus a detecção da nova variante, que possivelmente tem uma maior transmissibilidade, já é algo que assusta. Talvez isso não tenha acontecido agora. Quem está acompanhando viu que essa subida do final de dezembro pra cá foi extremamente abrupta. Pode ter sido essa nova cepa, ainda não sabemos. Com mais estudos termos mais clareza disso. Ainda não sabemos se quem pegou a Covid original pode pegar de novo com essa mutação sem ter o período de imunidade. Teoricamente, é possível a reinfecção.

Essa semana o ministro da Saúde Eduardo Pazuello foi em Manaus e o Ministério da Saúde emitiu um documento afirmando que era “inadmissível” os hospitais do Amazonas não adotarem o chamado “tratamento precoce”, que é como o governo chama o uso de drogas sem comprovação científica par a Covid-19, como ivemerctina, hidroxicloroquina e azitromicina. Com a falta de oxigênio no Amazonas, como o senhor vê a insistência do governo nesses tratamentos sem eficácia?
Na realidade, é difícil de entender qual é a lógica e a justificativa do Ministério da Saúde para isso. São situações nas quais se a gente for buscar na literatura o uso dessas drogas são drogas que, dentro dos estudos realizados, principalmente dos mais sérios, não têm nenhuma evidência de eficácia. Então as organizações médicas têm que se posicionar, principalmente as sociedades e os conselhos de medicina. Não vejo isso com bons olhos.

O que os estados e capitais deveriam fazer agora vendo a situação do Amazonas e sabendo da circulação dessa nova linhagem do coronavírus, possivelmente mais transmissível?
Primeiro, já vivenciaram o exemplo da primeira onda. Tudo que o Amazonas está passando agora os outros estados poderão passar amanhã. Isso tem que ser tratado com a maioria seriedade possível, no sentido de cada vez mais se buscar sensibilização e adesão da população para as medidas de controle não-farmacológicas. Nós temos aí a perspectiva da vacina, mas sabemos que a vacina se não tiver uma cobertura efetiva, nós não vamos ter o resultado que queremos, que é a interrupção da transmissão. Outra coisa importante é que se a gente não trabalhar na sensibilização da população nós não vamos avançar muito na vacinação. Tudo que o Amazonas está passando consequentemente vai se repetir em outros estados. É o momento dos estados tentarem minimizar isso ao máximo. Não vamos conseguir impedir, mas podemos minimizar. Não é que vamos ter que manter o distanciamento social até a chegada da vacina. A vacina é mais uma ferramenta. Uma ferramenta eficaz, mas que tem que ser muito bem utilizada.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com