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Foto: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Por Marília Felix*
Quanto vale a memória? Quanto vale o local em que toda a sua vida foi construída? Quanto vale morar numa comunidade em que se sente acolhido? Quanto vale a sua própria personalidade? Para muitas pessoas, a moradia é apenas uma questão transitória. É só um endereço, uma residência ou um número. Mas, para os moradores da Vila Esperança, as suas casas iam além de uma habitação, elas se tornaram a sua própria identidade.
Depois de dois anos de luta, a Vila Esperança se transformou numa guerra perdida. Sem forças para resistir às pressões da esfera municipal, os moradores precisaram aceitar as baixas ofertas de indenizações ou as sentenças das decisões judiciais. O resultado foi um misto de casas derrubadas, ruas vazias e um sentimento de tristeza permanente no ar. A esperança da Vila se foi.
A Vila Esperança é reconhecida como uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) desde 1994. A comunidade está situada no bairro do Monteiro, na Zona Norte do Recife, às margens do Rio Capibaribe de um lado, próximo à Avenida 17 de Agosto do outro e aos fundos da Escola de Referência Silva Jardim.
Inserida num dos bairros mais ricos da capital pernambucana, a Vila se projeta como um refúgio em meio aos prédios de classe média alta erguidos no seu entorno. Sem portarias ou playgrounds, as crianças da comunidade brincam com os vizinhos na rua. Não há a rigidez dos apartamentos e dos salões de festa para os encontros, as conversas acontecem nos portões das casas, na rua e na mercearia de Seu Luiz, o comerciante mais antigo do local.
Mas, desde o anúncio da construção de uma ponte próxima à Vila, os moradores foram forçados a aceitar um preço pelas suas memórias. Almejada durante muitos anos, a ponte que ligaria o bairro do Monteiro ao bairro da Iputinga, através do Rio Capibaribe, foi intitulada como a salvação para o problema crônico do trânsito entre as Zonas Norte e Oeste da cidade.
Em setembro de 2021, a Prefeitura do Recife anunciou a retomada das obras da ponte, agora nomeada como Engenheiro Jaime Gusmão. O que foi intitulado como um sonho para o trânsito da cidade se tornou um pesadelo para os moradores da Vila Esperança.
A princípio, 53 casas seriam desapropriadas e demolidas para a primeira etapa da construção da ponte. Mas, segundo documento obtido pelo Jornal do Commercio e enviado à Defensoria Pública de Pernambuco pela Autarquia de Urbanização do Recife (URB), órgão responsável pela obra, mais 255 famílias da Vila vão precisar ser retiradas para a implantação do anel viário, a segunda etapa da construção.
As ofertas de indenizações pelas casas abriram as rodadas exaustivas de negociações entre a Prefeitura e os moradores. As residências acabaram recebendo valores bem abaixo do avaliado pela região em que está situada e os residentes são praticamente forçados a negociar algo que não colocaram à venda.
Com as expectativas frustradas, os moradores esperavam a proteção da Vila por ter o título de ZEIS (Zona Especial de Interesse Social). De acordo com a lei nº 15.926 do ano de 1994, assinada pelo então prefeito do Recife, Jarbas Vasconcelos, as áreas que compreendem as localidades da Vila Esperança e o Cabocó, outra comunidade próxima, foram transformadas em ZEIS pelo “fato da ocupação apresentar condições de permanência física, com perspectivas de melhorias a partir da execução do seu Plano Urbanístico e de Regularização Jurídica que venha favorecer a implantação de infraestrutura, demonstrando assim a sua viabilidade de consolidação e melhoria prevista por lei.”
Nas negociações, os moradores sentem que a validação do local como ZEIS não é levado em consideração. Além disso, mesmo que o Direito à Moradia esteja assegurado no artigo 6º da Constituição Brasileira, é como se nem isso estivesse garantido. O que resta é o clima de melancolia que se instala na Vila Esperança. Andando pelas ruas calmas do local, o comum é ver destroços das casas já demolidas. Aquelas que, um dia, foram palco de aniversários, ceias de Natal e conversas alegres no portão.
Mesmo assim, no que restou da Vila, ainda pode-se avistar crianças jogando bola, vizinhos conversando na esquina e cumprimentos de todos os lados. Junto com Dona Dalvinha, uma das moradoras do local, nós andamos pela Vila como exploradores em lugares desconhecidos. Conheça a Vila Esperança conosco através do vídeo abaixo:
Todas as casas da Vila são um conjunto de memórias e histórias de vida que irão se perder em meio ao asfalto e ao futuro trânsito de passageiros que talvez nem saibam o que um dia esteve ali. Mas, aqui, a própria história da Vila Esperança será contada através das vidas de sete moradores. Aqueles que nunca perderam a esperança.
O nome dele é Wellington Lira, mas todo mundo na Vila Esperança o conhece como Leto. Morava na Vila desde que nasceu, há quase 60 anos. Era o terceiro morador mais antigo da comunidade. Seria impossível contar a sua história sem falar da Vila Esperança ao mesmo tempo. Os principais momentos da sua vida, as brincadeiras de infância, as aventuras de adolescente e as responsabilidades de adulto foram nas ruas do local.
A Vila hoje é o resultado de muitas ocupações ao longo do tempo. Terras de um antigo engenho da região, o local tinha cerca de dez casas antigas por volta da década de 1960. As pessoas que ali moravam pagavam aluguéis a um homem chamado Nelson Temporal – coincidência ou não, o nome da rua principal da Vila é Rua Ilha do Temporal. Depois de um tempo, esse Nelson desapareceu, os moradores ficaram sem saber quem era o novo dono das casas e continuaram morando.
Foi nesse cenário que a avó de Leto, Porcina Maria, chegou na Vila Esperança. Rezadeira e natural de Palmeira dos Índios, município de Alagoas, ela veio para Recife na busca de uma nova vida. E foi na comunidade que Porcina encontrou a possibilidade de uma moradia tranquila. Um ano depois da sua chegada, a filha Alaíde também começou a morar no local.
Em 1964, Wellington nasceu conquistando cada pedaço da Vila. Andava pela rua principal que ainda não era pavimentada. Tomava banho no riacho que atravessava os terrenos da região. Olhava a pequena horta que a sua avó cultivava ao lado da sua casa. Ia pegar água no chafariz que ficava próximo à Avenida Dezessete de Agosto. Brincava com os trilhos da via férrea. Observava com admiração as lavadeiras que desciam dos morros ao redor e abriam as suas saias para lavar as roupas no Rio Capibaribe.
Nos anos 1980, a Vila Esperança começou a se expandir. Os terrenos vazios foram ocupados por outras pessoas que chegavam e construíam as suas moradias. Essas ocupações também foram marcadas por tensões. Chegou a acontecer uma ação da polícia no local para dispersar os novos moradores. Mas, por pressão de alguns movimentos sociais e políticos, as pessoas conseguiram continuar lá. Foi nesse momento que a comunidade ganhou o nome de Vila Esperança. Era a esperança de permanecer e conquistar um novo espaço que os motivaram.
Como não é possível contar a história de Leto sem a Vila, também foi no início dos anos 90 que ele e o cunhado resolveram construir as casas da família no mesmo terreno onde ficava a horta da avó. Três anos depois, a Vila Esperança se tornou uma ZEIS, um título que daria segurança a todos os moradores. Mas, a segurança os deixou desde que a construção da ponte voltou.
No vídeo abaixo, Leto fala emocionado do significado da Vila Esperança na sua vida e da situação atual da sua moradia diante da construção da Ponte Engenheiro Jaime Gusmão:
Em outubro de 2021, os moradores da Vila Esperança foram surpreendidos com funcionários da URB marcando as suas residências e dizendo que seriam chamados para fazer acordos indenizatórios. Todas as casas da família de Wellington foram marcadas, inclusive a da sua mãe, que tem mais de 80 anos. Ele sabe que a ponte é um problema de mobilidade, mas argumenta: “tem dois problemas sérios aqui no Recife, um é a mobilidade, e o outro mexe com muito mais pessoas, que é a camada mais pobre, que é a moradia”.
A partir disso, Seu Leto encampou a luta e a resistência para permanecerem. Em março de 2023, ele foi eleito o 2º líder da Vila Esperança na Comissão de Urbanização e Legalização de Posse da Terra (COMUL). Contudo, o papel de liderança na comunidade acabou ficando estremecido quando Leto foi forçado a negociar a sua casa. Como a própria residência está vinculada às outras da família, a permanência ficaria inviável depois que os parentes decidiram negociar.
Com o valor da indenização, seu Leto adquiriu uma casa em outro local. Ele explica que não aguentaria ver o cenário de destruição que ficou após as demolições, com apenas os destroços das casas da família. Os entulhos não significam apenas tijolos, telhas e portões, é como se a sua própria história estivesse misturada à poeira. Ali, estão simbolizadas as brincadeiras de infância, as refeições em família e a construção de uma vida.
Dalvinha é o apelido de Lindalva do Carmo Veríssimo de Sousa. Uma mulher branca, baixa, com os cabelos lisos e brancos que carrega muita história nos seus passos. Natural de Itapetim, cidade do sertão pernambucano, ela chegou à Vila com a esperança que já é natural dos moradores da comunidade.
Da infância sofrida no sertão à juventude esperançosa, ela veio para o Recife definitivamente em 1988 porque precisou cuidar da irmã que morava na Vila Esperança. Após se casar em 1994, como não tinha um lugar certo para morar, passou um tempo pagando aluguel até a irmã ligar e anunciar que tinha uma casa na própria Vila para vender. O local da nova residência era às margens do Rio Capibaribe, no valor de R$ 2.500. Mas, para Dalvinha, era uma oportunidade única.
Mesmo sem o dinheiro completo, entrou em acordo com o então dono para quitar o valor da casa de forma parcelada. E, assim, ela e o marido passaram de 1997 até 1999 pagando o novo lar em prestações conforme o que recebiam dos trabalhos. Até hoje, os recibos dos pagamentos são guardados como artigos de ouro.
Hoje, Dalvinha coleciona mais de 25 anos morando na Vila Esperança. Com o tempo, a casa foi ganhando a forma atual. O cunhado ajudou a erguer as paredes de alvenaria nos cômodos, ela fez uma nova cozinha na parte de trás da casa e comprou todas as grades das portas e janelas com o dinheiro que ganhava lavando roupa para fora.
Contudo, o retorno da obra da ponte tira o sono de Dalvinha. A dúvida e a insegurança chegam. E a possibilidade de indenização não a tranquiliza: “eu tenho medo deles dizerem que vai dar tanto e a gente não encontrar um canto para comprar que dê o dinheiro, um canto que preste, em encosta de barreira, de todo o jeito a gente se aperreia”.
Dona Dalvinha conta que, no mês de agosto, encontrou com uma funcionária da Prefeitura que lhe perguntou: “vocês vão querer habitacional ou auxílio moradia?”. Uma pergunta que pode parecer banal, mas para Dalvinha é a proclamação de uma sentença. Nenhuma das duas opções agrada. Tem receio de habitacional, devido aos casos de desmoronamento de prédios no Grande Recife, e aluguel soa como uma volta assustadora a um passado incerto.
Emocionada, Dona Dalvinha nos fala o que a Vila Esperança simboliza para ela e quais são os seus sentimentos com a perda da própria casa:
O maior desejo de Dalvinha era ficar. “Aqui é um pedacinho do céu para a gente”, ela diz em meio à resposta do porquê gosta de morar ali. Consegue tudo o que precisa na Vila: é fácil pegar um ônibus, é perto da feira, tem bom atendimento no posto de saúde da comunidade e, o principal, se sente numa família. “Aqui, se precisar de um, todos chegam”. Para ela, umas das maiores vantagens do local são as pessoas que moram ali, o sentimento de pertencimento que não se acha em qualquer lugar.
Das grades da cozinha, aos fundos da casa, ela enxerga os avanços da construção da ponte, os guindastes e as duas cabeceiras sendo erguidas às margens do rio. Diariamente, os avanços da obra parecem um relógio avisando a Dalvinha que a hora dela sair chega mais perto. Indignada, ela diz: “a gente não tem força para quem tem dinheiro”.
Lindalva é a mulher que carrega no corpo as cicatrizes da desigualdade social e do tanto que precisou se esforçar para chegar aonde chegou. Ela sorri quando se lembra da própria trajetória: “eu já passei por tanta coisa, mas estou aqui de pé”. Sem esperança de continuar na Vila, ela aguarda o dinheiro da indenização para adquirir uma nova casa em regiões próximas e, quem sabe, ser tão feliz quanto foi na Vila.
Luiz é o dono do comércio mais conhecido da Vila Esperança. Quase como um patrimônio, o Mercadinho de Seu Luiz é um ponto cardeal da comunidade. Lá, ele vende de tudo: gás de cozinha, alimentos não perecíveis, chupeta de criança, refrigerante e por aí vai. Além das vendas, o local também é um ponto de conversa e encontros animados entre os moradores da Vila.
Mas, antes da Vila Esperança, Luiz era um homem em busca de um lar. Nascido em Feira Nova, cidade do agreste pernambucano, ele já trabalhou nas lavouras da região e como faxineiro, porteiro e vigia quando morou em São Paulo. Por lá, ele se casou e teve dois filhos. Mas, quando surgiu a oportunidade de voltar, juntou o dinheiro que tinha e regressou à capital pernambucana.
Aqui, começou uma pequena mercearia do Alto Santa Isabel, comunidade da Zona Norte de Recife. Era o início da profissão que marcaria a sua vida. Ele trabalhava por lá quando soube da Vila Esperança e sentiu desejo de morar no local. A oportunidade apareceu no ano de 1983 quando Luiz comprou um terreno na avenida principal da Vila e decidiu construir o novo lar. Finalmente, ele encontrou o local que fincou raízes.
A construção foi feita aos poucos e com os próprios esforços de Seu Luiz. Comprou barro para aplainar o terreno e levantou a casa com taipa. A rotina da época era pesada: fechava a mercearia às 18h, jantava e ia trabalhar na obra até a meia-noite. O resultado foi que a casa já estava pronta depois de um mês. Em busca do que fazer, Seu Luiz resolveu seguir o conselho do seu fornecedor e iniciou um pequeno negócio na Vila Esperança. E começou do jeito que dava mesmo: abriu uma janelinha para a rua num dos quartos, fez uma pequena coberta do lado de fora e encheu as prateleiras com os primeiros produtos.
Aos poucos, a comunidade aumentou e a clientela da mercearia também cresceu. Mas a estrutura da casa de taipa não aguentou o crescimento. Depois de quatro anos, as prateleiras e as paredes caíram. A partir disso, Luiz entendeu que era hora de construir as paredes com tijolo e cimento.
Ele abria a mercearia às 5h da manhã e vendia enquanto ajudava os pedreiros na obra. Trabalhava nos dois locais até a meia-noite, desgastando o corpo e a mente. Mas o esforço valeu a pena. Hoje, a casa tem o espaço da frente destinado ao comércio, mais a sala, a cozinha, o banheiro e três quartos. No vídeo abaixo, Seu Luiz explica um pouco da sua história com a Vila Esperança e o sentimento de pertencimento que tem com o local.
O Mercadinho de Seu Luiz, como é conhecido, é o resultado do trabalho de toda uma vida. Com a renda do local, ele sustentou a casa e ajudou a criar os dois filhos, que hoje moram em outros estados. Seu Luiz está prestes a completar 68 anos e sente prazer não só em vender, mas em ter contato com as pessoas da comunidade. Sabe de tudo o que acontece na região sem sair de casa e é conhecido por todos da Vila Esperança. Viu crianças crescerem, se casarem e levarem os filhos para comprar na mercearia.
Por muito tempo, Seu Luiz também foi o conselheiro da vizinhança. Bastava qualquer problema e as pessoas iam saber a sua opinião. Ele pensava, analisava e dizia o caminho que parecia certo. Mas essa questão chegou ao ponto de preocupá-lo tanto que ele pediu para as pessoas não pedirem mais os seus conselhos. Mesmo assim, ele não desistiu das pessoas da Vila. Aquele local representa a vida para ele: “A Vila é a minha família, todo mundo me conhece e eu conheço todo mundo”. Ele diz com orgulho que pode ir à casa de qualquer morador que será bem recebido.
Mas a retomada da construção da Ponte Engenheiro Jaime Gusmão e a desapropriação das casas da Vila significam a desintegração dessa família. Luiz acredita que o seu comércio deve acabar com a grande diminuição das pessoas na comunidade. Ele conta que a primeira saída de moradores do local já representa uma perda de 52 clientes. E, mesmo que a sua moradia ainda não tenha sido marcada para a demolição ou chamada para um acordo, sabe que não vai ficar por muito tempo ali: “se eu for obrigado a sair, vou fazer o quê?”. A destruição do lugar não será só a perda da Vila para Seu Luiz, será a perda de uma família.
As casas da Vila Esperança representam mais do que apenas residências, representam conquistas. E para Dona Gil não seria diferente. A casa onde mora é resultado do próprio suor e das noites em claro. Por isso, o pedido de desapropriação representa a perda da própria história de vida.
A trajetória de Givanilda Lopes com a Vila Esperança começou há 33 anos, numa casa de taipa situada aos fundos da comunidade. Depois de certo tempo, ela comprou outra residência na avenida principal da Vila. A nova casa precisava de uma reforma completa e, como não tinha condições de pagar trabalhadores para isso, foi a própria Gil que colocou a mão na massa.
Em várias madrugadas, ela assentou pedras de cerâmica nos cômodos e deixou a casa toda arrumada para que pudesse morar com a família. Além disso, Dona Gil também construiu uma pequena sala onde trabalha como manicure. O piso inferior da residência também tem terraço, sala, cozinha, dois quartos e um banheiro. Já no piso superior, ela construiu duas pequenas casas para os familiares.
O local representa a moradia para Gil, seus dois filhos, dois sobrinhos e o ex-marido, além da casa da irmã que fica ao lado da sua. A segurança que sente ao morar no local vem não só de estar perto dos parentes, mas da sensação de bem-estar que a Vila Esperança lhe garante. Givanilda se preocupa com o local onde mora por causa de um dos seus filhos, que tem deficiência mental. Ela assegura que precisa residir numa comunidade tranquila, sem agitação e que lhe dê segurança para deixar o seu filho em casa. A Vila Esperança cumpre todos esses requisitos e, por isso, revolta tanto que precisa sair do local.
Além disso, a localização da Vila garante o deslocamento rápido para o Centro Médico Ermírio de Moraes, onde faz tratamento de oftalmologia e ortopedia, e fica próximo aos médicos que o filho precisa. Caso precise se deslocar a um local distante, o ponto de ônibus está a 130 metros da sua residência. A centralidade da comunidade também auxilia Gil no seu empreendimento, pois facilita quando as clientes se dirigem ao comércio ou nos atendimentos domiciliares.
A própria casa tem um valor inestimável para Givanilda. As lágrimas e a emoção transbordam quando ela relembra como conquistou o local e os benefícios que consegue morando na Vila Esperança, confira no vídeo abaixo.
O modo como as desapropriações das casas da Vila Esperança estão sendo feitas revolta Dona Gil. Ainda sem entender como a retomada da construção da ponte iria impactar a vida dos moradores, ela se deparou com a própria casa sendo marcada por funcionários da URB. Foi o pontapé para uma disputa que se arrasta até hoje: “eles vieram com um valor muito irrisório, que não dá para eu comprar uma moradia”.
Com o valor oferecido pela URB, Dona Gil não conseguiria comprar outra moradia semelhante para acomodar todos os familiares que moram no mesmo terreno hoje. Desesperada, ela apela para que o traçado da ponte seja modificado e possa permanecer no local que lutou a vida inteira. “Se for possível mesmo, eu quero ficar na minha casa. Não tem preço nenhum que eu venda a minha casa”, é a fala de Gil como um pedido desesperado.
Mesmo vendo as casas vizinhas serem demolidas, Givanilda diz que não vai desistir até a garantia de um local seguro para morar. A perda que sente é maior do que qualquer valor ofertado, mas sabe que é seu direito ter uma indenização justa e compatível com a residência atual. Afinal de contas, uma moradia digna não é favor ou boa vontade, é direito.
A casa de Dona Bernadete é como a porta de entrada da Vila Esperança. Entre as antigas construções do local, ao lado da Praça do Monteiro, emerge uma parede verde com a estrutura porta e janela. Não raro uma figura simbólica aparecia sentada no batente frontal da casa: era a própria Dona Bernadete. Uma mulher idosa, baixa, com os cabelos meio alourados e cheia de história para contar.
Moradora da Vila Esperança há 32 anos, a filha de Bernadete foi a primeira da família a chegar ao local, juntamente com o esposo e dois filhos. Quando a filha ficou viúva, Bernadete decidiu morar na comunidade para ajudar no cuidado com os netos e nunca mais saiu. A convivência gerou amor pela Vila. Emocionada, diz que ali “não é uma comunidade, é uma irmandade”.
Dentre os motivos que escolheu para continuar na Vila, a segurança foi o principal deles. Ela se sentia segura de ficar só em casa e ser socorrida por qualquer um dos vizinhos caso ocorresse algum problema. Também era atendida pelo mesmo médico de outras moradoras da comunidade, na unidade de saúde do Poço da Panela, um dos bairros próximos.
Além disso, também sentia segurança pela sua casa. Ela conta duas histórias marcantes para exemplificar isso. A primeira ocorreu quando esqueceu de trancar a grade na frente da residência ao dormir e ninguém entrou no local. A segunda aconteceu ao sair de casa e não ter fechado a porta, quando retornou havia três rapazes a esperando para garantir que ninguém iria invadir a residência.
Bernadete Miranda conta, no vídeo abaixo, qual é a sensação de morar na Vila Esperança e como se sente com os processos de desapropriações.
Professora aposentada do Estado de Pernambuco após 31 anos de trabalho, Bernadete esperava usufruir do descanso no lugar que escolheu para viver. Mas, o processo de desapropriação a fez perder o sossego. A sua casa é uma das escolhidas para sair desde o início da obra.
Há alguns meses, ficar com Dona Bernadete na calçada era observar que todos os vizinhos a cumprimentavam. Ela sabia quem tinha nascido na comunidade, conhecia os familiares de cada um e até mesmo a filha pequena de um dos vizinhos a chamava de vó. Pedia a quem passar para comprar o pão ou ir ao comércio de Casa Amarela quando estava indisposta. É essa comunidade que não se encontra com dinheiro de indenizações ou construções de moradias distantes.
Bernadete também é pastora da Igreja Quadrangular, de Casa Amarela, e é na sua fé que encontrava forças para resistir. Perdia noites de sono e sentia medo do futuro. Mas o futuro não tardou a chegar. Depois de tantas pressões, Bernadete e a filha tiveram a ordem de despejo decretada e aceitaram a indenização para sair do local. Hoje, a casa de Bernadete é um local abandonado: a figura imponente não está mais na calçada e a porta, que sempre permanecia aberta, está fechada.
Imagina acordar por anos na mesma rua, falando com os mesmos vizinhos e fazendo o mesmo trajeto para resolver os compromissos? Pois essa foi a rotina de Seu Juca pelos últimos 37 anos. Um dos símbolos mais antigos da Vila Esperança, ele se refere ao local como parte essencial da sua história. Lá, ele construiu família, casa e as amizades. Agora, olha tudo virar destroços.
No ano de 1986, o avô materno de Juca comprou uma nova casa para ele e a família na Rua Pinto Campos, número 108, no bairro do Monteiro. Mas o endereço representou mais do que uma residência, de lá ele começou a constituir uma família. Primeiro, acabou se casando com a filha da vizinha Jaidete, Valéria. Segundo, o seu sogro presenteou o casal com uma casa na mesma Rua Pinto Campos, no número 106. E detalhe: a nova residência ficava situada entre a moradia da mãe de Juca e a da sua sogra.
Cercado de familiares, Juca e Valéria transformaram a casa de meia porta em três imóveis, que hoje acomodam o casal, dois filhos e um neto. As reformas foram resultados de muito esforço, trabalho duro e luta. Mas, a transformação da Vila Esperança em ZEIS, no ano de 1994, não garantiu à família a titularidade do terreno. Foi, então, alguns anos depois que o pesadelo começou.
Com o primeiro anúncio da construção da ponte, em 2012, a sua rua foi um dos principais alvos do projeto. Na época, Seu Juca e a família aceitaram a negociação, mas, como a obra foi paralisada, não tiveram mais notícias do acordo. Em 2021, a construção voltou como um furacão ao acordar com funcionários da URB marcando as suas casas sem qualquer explicação.
A marcação deu início às rodadas de negociação. Com propostas de valores insuficientes pela sua residência, Seu Juca resistia a negociar até que encontrasse um valor para comprar uma nova casa. Em agosto deste ano, Juca falou como estava acontecendo todo o processo e os seus sentimentos no vídeo abaixo:
Entre os imóveis da família, a casa da mãe de Seu Juca já foi negociada por se tratar de herança entre os irmãos. No dia dessa gravação, antes da demolição, ele tentava aproveitar algum material da residência, como as telhas e as portas. Mesmo assim, os destroços de uma casa impactam mais que a perda financeira.
Profundamente abalado com todo o processo, Seu Juca desenvolveu transtorno de ansiedade nos últimos tempos e precisa utilizar medicamentos antidepressivos. Ele explica: “agora, por exemplo, você deita, fecha o olho e fica pensando onde você vai viver. Ou seja, seus hábitos vão mudar, tudo vai mudar. Minha esposa trabalha a dois quilômetros daqui, eu trabalho a dois quilômetros daqui. Aí vai mudar tudo. Então isso está deixando a gente doente”.
Juca não entende como ele e os vizinhos precisam sair, enquanto nenhum dos condomínios do entorno será afetado. Até mesmo, um terreno em frente à sua casa, que serve apenas como estacionamento, ficará intacto. Ele se revolta e fica triste porque o local onde cresceu vai acabar.
Cerca de dois meses depois, o processo da casa de Juca foi judicializado e o morador precisou aceitar o valor oferecido pela URB. Depois do pagamento, teve início uma nova pressão para sair do local com o prazo de cinco dias. Juca conta que o período da mudança de casa foi traumático, feito às pressas e sem direito a caminhão para ajudar no transporte.
A indenização recebida precisou ser dividida entre a família. Juca adquiriu uma nova casa num local mais distante e o filho precisou se mudar para Paulista. O percurso até o trabalho da esposa de Juca também foi modificado e é necessário sair da residência até uma hora mais cedo, comparado a quando morava na Vila Esperança. Hoje, Juca e a família tentam reconstruir a vida, superar os traumas e encontrar um novo futuro, com a esperança de que a história da Vila não seja esquecida.
Ao andar pelas ruas estreitas da Vila Esperança, Maria Helena cumprimenta todos os moradores pelo nome e é reconhecida por eles. Sabe identificar quem mora na maioria das casas. Leninha, como é conhecida entre os vizinhos, é um dos símbolos de luta da Vila Esperança. Nascida e criada no lugar, ela é a responsável por administrar a página no Instagram, fazer reuniões na Associação de Moradores e articular a resistência com outros vizinhos.
Em março de 2023, Helena foi eleita a 1ª representante da comunidade na Comissão de Urbanização e Legalização de Posse da Terra (COMUL). Mais do que isso, Leninha também é uma âncora para quem ainda está à deriva em relação ao processo de construção da ponte. Não raro, os vizinhos a param na rua e perguntam sobre algo que não sabem ou não entendem das negociações.
Ela sabe de cada passo da disputa porque sente na pele a incerteza do futuro. Leninha mora no primeiro andar construído em cima da casa dos seus pais e ambas as residências foram uma das primeiras a serem chamadas para a desapropriação. Com valores insuficientes para uma nova residência e indignados com a falta de escuta, Helena e os pais não aceitaram as ofertas e os processos foram judicializados. Diante da revolta familiar, Lenina entendeu que a luta não era só dela, mas coletiva. Ela precisava resistir para manter as suas memórias de infância, a convivência com os vizinhos e o seu local de trabalho. Ela precisava resistir para manter a Vila Esperança viva.
A sua história com a comunidade começou antes mesmo de nascer. Os seus pais, Luiz e Valdilene, foram morar no local assim que casaram. A primeira casa foi pequena, numa das regiões mais próximas ao rio, foi lá que Helena nasceu. Depois de uma chuva forte na época, as águas acabaram invadindo o local e forçaram seu Luiz a procurar outra casa. A escolhida foi uma residência na entrada da Vila Esperança, na Rua Ilha do Temporal, onde mora há 30 anos.
Lá, Helena cresceu e colecionou memórias. Brincava na rua calma e tranquila com as crianças que moravam perto, conhecia todos os vizinhos, ia e voltava do colégio andando. Quando a mãe precisava se ausentava à noite, ela ficava sob os cuidados das pessoas que moravam na sua rua. No Natal da Vila Esperança, era mais do que natural cada vizinho visitar os outros para confraternizar, compartilhar as comidas e comemorar o final de mais um ano. A convivência coletiva se transformava numa realidade distante do mundo elitizado à sua volta.
A Vila continua sendo o lar de Helena até hoje. Quando se casou, decidiu construir a sua própria casa em cima da residência dos pais. Além disso, ela ergueu o seu local de trabalho numa sala confortável na varanda, onde realiza serviços de sobrancelhas e maquiagem. A boa localização da casa representa mais possibilidades de atrair a clientela e manter o seu negócio. Por isso, se mudar para outro local é também uma questão de renda.
Helena nos contou mais da sua sensação com as desapropriações da Vila Esperança no vídeo abaixo:
Quando Leninha é perguntada sobre como a Vila Esperança formou a sua personalidade, a emoção e as lágrimas vêm ao rosto. Não é só um local. É nascer, desenvolver, brincar, estudar, crescer, conviver, casar e trabalhar numa só comunidade. É como se a sua personalidade e a Vila Esperança se confundissem ao longo do tempo.
Por isso, a desapropriação das casas da Vila revolta tanto. Com uma visão crítica e ampla, Helena expõe que a retirada das pessoas do local é um reflexo de uma questão maior. Não é só a ponte. Não é só a Vila. É a política de uma cidade. “O que acontece na Vila Esperança não é só em Vila, é na cidade de Recife”, ela diz em meio ao desejo de que mais recifenses entendessem a luta da comunidade.
No último dia 08 de agosto, a justiça decretou a imissão de posse para a Prefeitura do Recife na casa de Helena, assim como a determinação de que o oficial de justiça possa requisitar a força policial para efetivar o cumprimento da ordem judicial. Ela resistiu e entrou com um recurso, que não foi acatado. Sem forças diante de tanta pressão, ela e os pais acabaram negociando as casas.
Como os valores foram insuficientes para garantir duas moradias adequadas, a família decidiu juntar as duas indenizações e comprar um imóvel para os pais. Helena e o seu esposo, que construíram com tanto esforço e dedicação a primeira residência, agora não sabem onde irão morar. Mesmo com a incerteza do futuro, eles só pensam em seguir em frente. Helena, que sempre morou na Vila Esperança e sentia a comunidade como o seu lar, agora não reconhece mais o local: “olhar pra Vila hoje não é encontrar pertencimento, o local está desfigurado, infelizmente”.
A Prefeitura do Recife foi questionada através de email sobre as alegações apresentadas nesta reportagem. As perguntas enviadas procuravam saber como está a atual situação das desapropriações e indenizações das casas da Vila Esperança; como os valores indenizatórios das casas foram calculados; qual a posição da Prefeitura sobre os depoimentos dos moradores da Vila Esperança a respeito de funcionários municipais exercendo pressão para a saída deles; se a Prefeitura ofereceu algum suporte, como caminhão, para a mudança dos moradores; se a Prefeitura disponibilizou ajuda psicológica para os moradores durante esse processo de desapropriação; por que os destroços das casas já demolidas não foram recolhidos imediatamente e se o habitacional anunciado para os moradores da Vila Esperança tem previsão de entrega.
Confira a íntegra da nota enviada pela Prefeitura do Recife com as respostas:
“A Autarquia de Urbanização do Recife (URB) informa que a ponte Jaime Gusmão beneficiará diretamente cerca de 60 mil pessoas, criando uma nova ligação entre as zonas Oeste e Norte da cidade. É a primeira ponte a ser entregue na capital pernambucana em quase duas décadas e já está com 95% de conclusão em sua etapa principal de obras, correspondente ao “tabuleiro” sobre o rio.
A construção da ponte Jaime Gusmão requer a desapropriação de 50 imóveis no Monteiro. Todos já estão negociados e 44 foram pagos. A URB esclarece que cada imóvel é avaliado individualmente e recebe um valor que varia de acordo com questões como existência de documentação legal, área construída e benfeitorias realizadas pelos moradores. Os valores oferecidos são baseados em tabela atualizada anualmente e validada pelos órgãos de controle, como Tribunal de Contas do Estado e Caixa Econômica Federal.
Quando solicitada, a URB dá apoio na mudança das famílias que tiveram as casas desapropriadas. A Diretoria de Integração Urbanística da URB dá todas as orientações necessárias aos moradores e continua à disposição para dirimir dúvidas. O material das casas já demolidas será retirado à medida que as obras avancem.
A URB está construindo um conjunto habitacional, com 75 apartamentos, como opção de moradia para que as famílias residentes na Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) Vila Esperança/Cabocó, afetadas pela construção da Ponte Jaime Gusmão, possam permanecer no local. A obra já está em andamento, com investimentos em torno de R$ 13 milhões. Além disso, a comunidade ganhará também uma creche.
Os equipamentos serão construídos num terreno desapropriado pela Prefeitura do Recife, vizinho à ZEIS. O habitacional será dividido em dois blocos, um com 40 unidades e o outro com 35, contando com jardim, horta comunitária, playground e bicicletário. Os apartamentos medirão cerca de 40 m2 e os prédios terão tipologia do tipo térreo mais quatro pavimentos.”
No evento de inauguração da ponte, estarão presentes autoridades, a imprensa, representantes dos poderes públicos e quem mais queira assistir. Será alardeado como a obra é importante para o trânsito da cidade, a eficiência da Prefeitura em concluir um projeto prometido há tantos anos e como representa a modernização do Recife. Os discursos serão bonitos, entusiastas e alegres com a conclusão da Ponte Engenheiro Jaime Gusmão.
Do outro lado, estará uma Vila que chora. Ela vê os filhos que cuidou desde pequenos irem embora sem a certeza de moradia. As histórias, os momentos felizes, as vidas foram esquecidos pela necessidade da modernidade. A ponte vai passar, o anel viário vai passar, as vias de acesso vão passar, os carros vão passar, as bicicletas vão passar, os pedestres vão passar, todos irão passar pela Vila Esperança como se ela não fosse nada.
O novo asfalto pode até brilhar, mas não vai sorrir como Dona Dalvinha. O trânsito dos carros vai fazer barulho, mas não será igual às conversas com Dona Bernadete. As pessoas vão andar, mas não irão parar para conversar com Seu Luiz. A alça de acesso à ponte estará erguida, mas não com o cuidado que Leninha construiu a própria casa. As ciclofaixas serão importantes, mas não lembrarão do passado como Seu Leto. A Avenida 17 de Agosto poderá estar mais bonita, mas não terá Dona Gil andando para chegar em casa. Os novos espaços de convivência atrairão a vizinhança, mas não haverá o terraço de Seu Juca para receber quem chega.
A perda da Vila Esperança e dos seus moradores será inestimável para qualquer um. É mais do que desapropriações, despejos e demolições, é a política de uma cidade. Simboliza como um território coletivo é pensado e ocupado. O que importa mais: as pessoas ou os carros? Retratar as injustiças contra a Vila Esperança é também mostrar o que acontece com outras comunidades que são expulsas diariamente, seja pelo poder público ou privado. Lutar pela Vila Esperança é lutar por nós mesmos, para que a cidade seja pensada a partir da coletividade e do direito de moradia digna para todos.
Eu, a jornalista em formação que vos escreve, não conhecia a Vila Esperança até janeiro deste ano. A experiência de conviver com as pessoas da comunidade, que contagiam e acolhem como se você fosse a âncora que irá lhes salvar do naufrágio, é única. A construção desta reportagem me deu a oportunidade de praticar um jornalismo humano que olha para cada pessoa como se ela representasse todo o país. Talvez eu não salve ninguém, mas a história de cada um estará marcada. Quem sabe ela nos faça olhar além da Vila Esperança, mas também para tantas outras comunidades que lutam para não ter o mesmo destino.
* Reportagem multimídia apresentada como Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco – 2023.1, da aluna Marília Felix de Carvalho. Produção e reportagem: Marília Felix de Carvalho // Orientação: Yvana Fechine // Coorientação: Jadeanny Arruda // Imagens em vídeo: Nildo Ferreira e Tião Possidônio // Montagem dos vídeos: Beto Farias
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