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As vidas negras “criadas no evangelho” importam para os evangélicos?

Marco Zero Conteúdo / 01/06/2020

Ato “o amor vence o ódio", 2018, na Avenida Paulista, em São Paulo

Por Jackson Augusto*

Estamos na Década Internacional de Afrodescendentes da ONU (2015-2024), isso significa que a comunidade internacional deve incentivar e promover os direitos humanos a partir do combate do racismo anti-negro no mundo, e que as vidas do povo negro na diáspora africana devem ser protegidas. Somos mais de 200 milhões de pessoas negras nas Américas, então por aqui o racismo é uma lógica que opera fortemente através da linguagem da violência contra os corpos negros. Isso acaba atingindo todas as esferas da nossa vida. Levando em consideração os contextos das Américas, os EUA e o Brasil são os países que têm a maior quantidade de pessoas negras, também são os países que mais assassinam a população negra. Estamos imersos em um mar de violência. É só lembrar dos casos de Mário Andrade, do Ibura, em Recife, da chacina do Cabula, em Salvador, com 12 jovens assassinados ou de Marcos Vinícius, no Rio de Janeiro.

Apesar desse contexto de violências também existe o crescimento dos coletivos organizados do movimento negro no Brasil, nos últimos anos grandes intelectuais negros surgiram e escreveram livros, construíram espaços na comunicação, influenciaram nas produções intelectuais da academia e tivemos em 2019 o surgimento da Coalizão Negra por Direitos e a reativação da Articulação Negra de Pernambuco. O Brasil, a partir de 2016, sofreu com diversos retrocessos na política partidária, nas conquistas dos direitos, nas políticas públicas que promovem os direitos humanos e também nas políticas de igualdade racial.

No contexto partidário, o Brasil e os EUA elegeram Trump (2016) e Bolsonaro (2018), os dois com um discurso religioso, supremacista e racista, um fator decisivo para isso foi o apoio explícito de uma ala hegemônica da igreja evangélica nas Américas. Os EUA e o Brasil, quando se trata de evangélicos e racismo, têm ligações muito fortes. As primeiras missões batistas no Brasil eram norte-americanas do sul dos EUA, lado dos escravagistas, por isso vamos ver na história do Brasil cartas de 1859 como a do missionário Crabtree, dizendo:

“o Brasil era como os Estados Unidos, tem escravos e os missionários enviados pela Convenção Batista do Sul não podiam sentir-se constrangidos a combater a escravatura e assim envolver-se na política do país”¹.

Isso foi escrito para a Junta missionária da Convenção Batista do Sul. Ele tranquiliza as missões, dizendo que aqui no Brasil o sistema escravagista era muito parecido com o Sul dos Estados Unidos, e que por isso os missionários não precisariam ser confrontados ou constrangidos a combater a escravidão, ou envolver-se na política brasileira a favor da abolição. Ele também relata que os primeiros batistas do Brasil também eram Senhores de Escravizados:

“Depois de dormir uma noite na Capital Paulista, os missionários tomaram o trem para Sta. Bárbara, onde chegaram sob forte aguaceiro. Na estação os aguardavam os enviados da Sra. Ellis, com dois cavalos e um escravo, para carregar a bagagem. A estrada até o sítio estava bem lamacenta, mas, ao chegar, foram carinhosamente recebidos”².

Percebemos aqui que o evangelicalismo hegemônico brasileiro já chega com uma lógica religiosa que não se importa com a escravização e objetificação dos nossos corpos. A lógica supremacista sempre afirma que a luta pela libertação do povo negro é algo político e abominável, enquanto todo discurso, teologia ou produção de conhecimento que silencia as vítimas do racismo e das opressões, ou que justifica todas as violências contra vidas negras, é algo neutro, santo e apolítico. O protestantismo hegemônico que chega no Brasil é cúmplice do maior crime da história brasileira, e ele é forjado a partir da experiência norte-americana. Uma experiência extremamente supremacista, branca e que nunca se importou ou se posicionou a favor do negros no país.

Nas últimas semanas vimos situações que atravessaram violentamente a comunidade negra tanto nos EUA quanto no Brasil. Tivemos o caso do George Floyd em Minneapolis, que foi assassinado por um policial em plena luz do dia, com tudo filmado e legalizado, enquanto agonizava dizendo que morreria. Ele tinha 46 anos, era evangélico e atuava integralmente como missionário num projeto do campo habitacional, era muito atuante e um dos líderes em sua igreja. No Brasil, tivemos o caso do João Pedro no Rio de Janeiro, adolescente assassinado com um tiro disparado pela polícia dentro da própria casa. Ele tinha 14 anos de idade e segundo seu primo era “do grupo de jovens da igreja, sempre criado no evangelho”.

Analisando nesse exato momento o contexto brasileiro, me pergunto se esse evangelho se importa com João Pedro, ou com George Floyd, dois negros evangélicos, assassinados pelo Estado, que moravam nos países que mais encarceram e assassinam pessoas negras no mundo. Qual tem sido a pauta da hegemonia evangélica no país? Por que ainda não vimos os grupos evangélicos que apoiaram Trump ou Bolsonaro se posicionarem e se articularem para gritar por justiça e denunciar o racismo que acontece e atinge as pessoas negras evangélicas? Será mesmo que as vidas negras importam para a igreja evangélica nas Américas?

A igreja não pode dizer que vidas negras importam se ela nunca valorizou e reconheceu seu papel na construção do racismo brasileiro. Uma igreja que nunca se posicionou oficialmente sobre o seu lugar na escravização do povo negro – que é uma das maiores violências da humanidade – é uma igreja que não vai conseguir enxergar o racismo no cotidiano, na sua estrutura, nos seus projetos legislativos como o pacote anti-crime, a redução da maioridade penal, a tentativa de realizar o ENEM, mesmo em meio a uma pandemia, onde os mais atingidos são os negros. Todas essas ações fazem parte do genocídio de um povo, que não ocorre só quando morremos fisicamente mas quando a nossa existência é atingida, quando nossos corpos são presos, passam fome e são levados a julgamentos injustos; quando não levam em conta nossas condições socioeconômicas e que uma grande parcela da população negra não tem acesso a internet; e mesmo assim querem manter a maior prova de ingresso ao Ensino superior público do país.

Olhando para essa igreja brasileira vemos que ela não serve para consolar as mães negras que choram as mortes de seus filhos, essa igreja não se importa com as vidas dos nosso primos, dos nossos filhos, dos nossos sobrinhos, dos nosso pais, das nossas tias, das nossas famílias. A igreja que elegeu Bolsonaro, pode até está falando sobre racismo neste últimos dias, mas elegeu um governador que afirmou: “A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo!”. Quem matou João Pedro e George Floyd foi cada pastor que, diante de sua igreja branca e de classe média, passou anos no púlpito demonizando as políticas de ações afirmativas, fugindo do debate racial dentro da igreja, apoiando explicitamente presidentes com falas extremamente racistas. O evangelho mais branco que a neve que chegou no Brasil pode ser hegemônico, mas não tem um compromisso com a radicalidade da luta pela libertação dos Oprimidos.

Temos que lembrar que segundo o Datafolha de 2019, cerca de 60% dos evangélicos são negros, então precisamos urgentemente dar visibilidade a experiências que não são hegemônicas. Existe uma construção religiosa, a partir dos evangelhos, que promove a vida, que se importa com a luta dos negros desse país, que se levanta e mobiliza pessoas em favor da luta antirracista. Um evangelho que ocupa as ruas contra governos racistas, que acolhe a revolta do povo silenciado. O evangelho que se importa com vidas negras nasce da própria experiência negra, que sabe o que é ser perseguido pelo Estado desde criança. É só observar a história de Maria e José, que fogem do império-militar romano que persegue e quer exterminar seu filho – essa história parece com a de muitas famílias negras que fogem com suas crianças com medo de perdê-las.

Não existe nada mais negro do que morrer da pior forma que o Estado pode te matar. A experiência de um homem que passou por um julgamento injusto, de um homem que não foi digno da comoção dos religiosos e nem da sociedade de seu tempo, encarna perfeitamente na experiência negra. O corpo negro não é digno de choro ou comoção, ele habita nesse não-lugar, por isso a negritude de Jesus não está somente na sua cor, mas também na sua profunda experiência com a violência através do poder do império. Se Jesus nascesse no Brasil no século XVIII, com certeza morreria em um tronco, sendo açoitado, chamado de herege, sem pena e sem comoção da igreja, do Estado ou da sociedade hegemônica. O evangelho que não se importa com as vidas negras, é o evangelho da branquitude, que é forjado através da escravidão, da violência e do acúmulo, que produz uma igreja supremacista, que forma discípulos infernais.

Então devemos olhar para a luta pela justiça como um caminho para um novo mundo. Não é possível melhorar uma igreja que nasce escravocrata. Não é possível melhorar um mundo – o mundo dos brancos – que já surge a partir de nosso extermínio. Temos que dar voz a um novo mundo, a uma nova forma de produzir a espiritualidade evangélica, a uma outra igreja que nasce a partir dos pobres, dos negros, das mulheres, dos LGTBQIA+, dos condenados desta terra. Uma igreja que não vai somente chorar pelo extermínio da população negra, mas que vai se levantar e lutar contra qualquer forma de opressão, que vai ser instrumento de libertação para todos os povos desta terra, uma igreja que não quer uma paz superficial e branca – que na verdade é o silenciamento dos oprimidos enquanto são mortos – mas que luta por justiça, uma justiça profunda e concreta que é irredutível perante os opressores deste mundo. Afinal, não existe paz sem justiça, e não existe um mundo novo sem luta pela libertação.

Fontes:

1. CRABTREE, A.R. História dos Batistas do Brasil até 1906. Rio de Janeiro. Casa Publicadora Batista.1962, p.5

2. CRABTREE, A.R. História dos Batistas do Brasil até 1906. Rio de Janeiro. Casa Publicadora Batista.1962, p.5

* Jackson Augusto é um jovem batista, integra a coordenação nacional do Movimento Negro Evangélico do Brasil, membro do colegiado nacional do Miqueias Brasil, articulador social no Usina de Valores, produtor de conteúdo no projeto Afrocrente e ativista da teologia negra no Brasil.

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