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O Recife tem dono?

Inácio França / 15/06/2015

Poucos episódios são capazes de expor com tanta clareza como se dá a interferência de interesses privados numa administração pública quanto a misteriosa alteração, feita da noite para o dia, do plano urbanístico elaborado pelo Instituto Pelópidas da Silveira para o Cais José Estelita.

Os depoimentos coletados pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) apontam o caminho para as vísceras do relacionamento entre empreiteiras e o poder público em Recife.

Em janeiro, o Instituto criado para estudar, planejar e apontar os caminhos do futuro da cidade do Recife, enviou para o secretário municipal de Planejamento Urbano, Antônio Alexandre, a minuta do plano urbanístico para a área. A ideia era que o documento fosse debatido e, provavelmente, modificado pelos integrantes do Conselho da Cidade. Esta é a rotina para outros projetos.

No entanto, horas depois os conselheiros receberam um documento diferente, com várias modificações. O novo Plano que saiu dos endereços de e-mail da secretaria não passou pelas mãos dos técnicos do Instituto, mas foi apresentado como se tivesse sido. Pior: na hora de enviar o material para os conselheiros, alguém se atrapalhou e mandou uma versão intermediária, ainda com anotações da ferramenta de comentários do word indicando aquilo a ser suprimido.

Na elaboração desta reportagem, a versão com os comentários não foi levada em conta, afinal dois dias depois seguiu uma nova mensagem com o arquivo modificado em anexo. Este sim, anunciado como sendo de autoria do Instituto.

Na época, ainda em fevereiro, a história das três versões não era segredo para ninguém. Identificar as mudanças e explicar o impacto sobre a cidade de cada uma delas, detalhar o que estava na minuta original e o que sumiu no documento que chegou ao Conselho, deveria ter sido notícia. Não foi.

A curiosidade que faltou nas redações estimulou o Ministério Público  a instaurar uma investigação para tentar descobrir como surgiram tantas versões de um mesmo plano urbanístico, quem alterou e, o mais importante, porque alterou. Mesmo com um inquérito em andamento, o teor das modificações continuou sendo desprezado pela mídia da cidade. Não fosse isso, os recifenses ficariam sabendo que, ao lerem as alterações, os urbanistas do Instituto perceberam imediatamente o quanto elas atendiam aos interesses das empresas do Consórcio Novo Recife, pois eram as mesmas defendidas em várias reuniões pelo arquiteto Paulo Roberto Barros e Silva, contratado pelo consórcio (Moura Dubeux, Queiroz Galvão Ara e GL) para conduzir as negociações com o poder público.

A mudança de conteúdo do Plano somado e a insistência para que o Instituto assumisse a paternidade do plano falso foi a gota d’água para que a presidente da instituição, a urbanista Evelyne Labanca, entregasse o cargo.

A própria presidente só ficou sabendo da modificação quando integrantes do Conselho da Cidade pediram esclarecimentos sobre o conteúdo que lhes havia sido enviado. Surpresa, ela foi até o gabinete do secretário e pediu explicações a respeito da deturpação do seu trabalho. A conversa teria sido tranquila, apesar da tensão que envolvia o assunto. Antônio Alexandre teria lhe cobrado a aceitação das modificações por também fazer parte da gestão. Evelyne informou imediatamente que agradeceria a oportunidade e entregaria o cargo.

Consórcio Novo Recife/Divulgação

Consórcio Novo Recife/Divulgação

Depoimento ao MPPE

A ex-presidente do Instituto foi procurada e não negou esse relato: “Tudo o que sei desse fato está no depoimento que dei ao Ministério Público”.

No depoimento, a ex-presidente foi categórica quando respondeu às perguntas das procuradoras Bettina Guedes e Áurea Rosane Vieira: “Somente o secretário de Planejamento pode informar quem elaborou a minuta do plano urbanístico apresentada para discussão no Conselho”.

Suas declarações também são bem claras quanto à qualidade das alterações, as quais “prejudicam o plano urbanístico elaborado pela sua equipe”. As procuradoras pediram então que ela listasse essas modificações: “o aumento do coeficientes apontados na primeira versão, supressão da lista de imóveis propostos para serem preservados, supressão da quota para habitações de interesse social, diminuição da largura das calçadas”. A lista é grande, a tabela que acompanha este texto dá uma ideia mais clara do significado das modificações.

O principal problema, no entanto, não foi a retirada de todos os itens, mas a inclusão do artigo que na lei aprovada pela Câmara recebeu o número 22. Esse artigo é de uma ironia cruel, pois permite ao consórcio ignorar todo o plano urbanístico e construir o projeto Novo Recife exatamente do jeito que foi apresentado inicialmente, ainda sob a administração do prefeito João Paulo.

Começa assim o artigo: “Os projetos já aprovados poderão ser licenciados de acordo com a legislação vigente no ato de sua aprovação, podendo ser adequados à presente Lei mediante requerimento do proprietário”. E termina com “o eventual indeferimento do pedido de adequação, ou sua desistência, não invalida o projeto originalmente aprovado.” Traduzindo: o prefeito Geraldo Júlio sancionou uma lei que permite a quatro empreiteiras ignorarem qualquer parecer negativo dado pela própria prefeitura para construírem do jeito que pretendiam fazer desde o início.

A mesma pergunta que as procuradoras fizeram a Evelyne Labanca foi enviada por este repórter ao secretário municipal de Planejamento Urbano: Quem alterou a proposta elaborada pelo Instituto Pelópidas antes de apresentá-la ao Conselho da Cidade? Além desta, foi perguntado ao secretário, por meio de sua assessoria, de quem partiu a ordem para tais modificações. A resposta poderia ter sido enviada por e-mail, mas ele preferiu responder pessoalmente. A conversa está sendo agendada.

No quadro abaixo, entenda as modificações nas duas versões do plano e o que elas significam:

Trechos retirados integralmente do plano do Instituto Pelópidas Silveira O que isto significa
Art. 6º Em terrenos com área superior a 4 ha (quatro hectares), será exigido Plano de Massa que considere conceitos sustentáveis de urbanismo, principalmente quanto à permeabilidade, mobilidade, acessibilidade, vitalidade urbana, densidade e capacidade de suporte do território.
§ 1º Entende-se como Plano de Massa a representação gráfica de um plano urbanístico que propõe diretrizes de ordenamento físico-territorial, de uso e ocupação do solo e distribuição de espaços públicos.
§ 2º As diretrizes e os critérios para elaboração e avaliação do Plano de Massa de que trata o caput desse artigo serão estabelecidos pelo órgão competente de planejamento urbano por meio de procedimento definido mediante decreto do Poder Executivo.
§ 3º O Plano de Massa deve considerar o sistema viário, os parâmetros urbanísticos e as normas estabelecidas nesta Lei, sendo permitida a permuta do coeficiente de utilização entre as quadras resultantes, desde que esta não ultrapasse o coeficiente máximo definido para a Zona na qual se localize o terreno.
O consórcio não teria nenhuma obrigação de apresentar o estudo preliminar da paisagem, quando se define com a definição da estrutura básica dos espaços a serem produzidos, suas características de uso, formas, cores e texturas.Também não haveria a obrigação de apresentar um projeto que sirva como apoio no estudo não apenas da nova paisagem que será criada, mas também das possibilidades de acessibilidade, mobilidade urbana  e de sustentabilidade. Esse seria um requisito básico do qual o Novo Recife teria se livrado se o Conselho da Cidade não o reintroduzisse no plano.
Art. 7º Será obrigatória a destinação de área para Habitação de Interesse Social (HIS):
I – Nos projetos de loteamento, em área equivalente a 10% da área privativa resultante do parcelamento, a se localizar no próprio terreno ou mediante área equivalente em local próximo, inserida no raio de até 1 km (hum quilômetro) de distância do loteamento, a ser repassada ao município.
§ 1º Para efeito de cálculo da área total de construção, o Coeficiente de Utilização incidirá sobre os 65% da área total do terreno, que de acordo com a Lei do Parcelamento compete a área privativa.
Esse artigo é auto-explicativo: no plano elaborado pela equipe do Instituto Pelópidas da Silveira o consórcio teria de disponibilizar 10% da área do terreno para que o Poder Público construísse imóveis para a população de baixa renda. Depois das alterações, não há mais essa exigência. Foi dado o primeiro passo para que, no futuro, os moradores do Novo Recife não tenham vizinhos indesejáveis.
Art.10 Na Zona 2, no setor 2b é obrigatório o uso residencial, comercial, de serviço ou de lazer,em no mínimo, 30% (trinta por cento) do perímetro total das testadas de cada pavimento, sendo aplicado, no mínimo, aos 3 (três) primeiros pavimentos acima do térreo. A inclusão possibilitaria o surgimento de uma área multiuso, com estabelecimentos comerciais, de serviços e lazer convivendo com imóveis residenciais, o que ajuda a reduzir engarrafamentos. Isso foi descartado após as alterações.
Art. 23 Ficam classificados como Imóveis Especiais de Preservação – IEP, aqueles de valor cultural significativo, objetivando sua restauração, manutenção ou sua compatibilização com a feição do conjunto integrante do sítio.
§ 1º Os Imóveis Especiais de Preservação – IEP de que trata o caput deste artigo, encontram-se relacionados no Anexo VI desta lei e deverão atender ao disposto na Lei Nº. 16.284/97.
Outro artigo auto-explicativo que foi retirado: o Instituto Pelópidas da Silveira previa a preservação de imóveis de valor histórico ou arquitetônico que deveriam ser restaurados e passer a fazer parte do empreendimento, a exemplo de inúmeros casas que hoje estão integradas a edifícios em Casa Forte ou nos Aflitos, por exemplo.
Art. 24 Para fins e efeitos do que dispõe o artigo 5° da presente lei, fica desafetada de sua finalidade de bem de uso comum do povo, passando a integrar a categoria dos bens patrimoniais disponíveis do Município, a área de terra identificada no Anexo VIII, descrita e caracterizada, inserida na área maior objeto da matrícula do 1° Registro Geral de Imóveis do Recife/PE.
Parágrafo único – A desafetação da área de uso comum do povo descrita neste artigo é concretizada para efeito dela ser permutada por áreas previstas no artigo 5° desta lei, as quais, uma vez incorporadas ao patrimônio municipal, serão afetadas para uso comum do povo.
Este é um artigo de conteúdo técnico e diz respeito às áreas que deveriam ser permutadas com a prefeitura para que o projeto se adequasse ao Plano Diretor em vigor.
ANEXO VII – em resumo, estabelecia o número mínimo de vagas de garagem e estacionamento por unidade residencial, de serviços, hotelaria ou comércio, considerando as dimensões de cada unidade. A ideia inicial seria de evitar, o máximo possível, grande número de veículos que usem as vias públicas como local de estacionamento, como acontece nas ruas com grande edifícios. A retirada deste anexo liberou o consórcio para oferecer vagas na quantidade que lhe interessar,.
Trecho incluído O que isto significa
Art. 22. Os projetos já aprovados poderão ser licenciados de acordo com a legislação vigente no ato de sua aprovação, podendo ser adequados à presente Lei mediante requerimento do proprietário, inclusive através de pedido de alteração durante a obra.
Parágrafo único. O eventual indeferimento do pedido de adequação, ou sua desistência, não invalida o projeto originalmente aprovado.
A inclusão e aprovação deste artigo desfaz até mesmo o simulacro de “debate” promovido pela prefeitura: o consórcio poderá construir o Novo Recife exatamente do jeito que foi aprovado inicialmente, antes da aprovação do Plano Urbanístico pela Câmara Municipal. Ou seja, o Plano não vale absolutamente nada para impor limites ao projeto do consórcio.
Trechos com alterações significativas O que isto significa
ZONA 4 (Z-4) – Frente d’água, Cabanga Iate Clube, com o objetivo de assegurar a visibilidade da bacia do Pina, dos elementos marcantes do Bairro de São José e utilização pública da frente d’água.  A menção referente à utilização pública da frente d’água foi excluída, expressando o interesse das empresas em construir, futuramente, às margens do estuário do Pina.

Outra alteração percebida entre os dois projetos é na tabela com o gabarito do projeto. No documento original, o coeficiente de utilização da área é de 2,00. Na versão alterada, subiu para 3,0. O aumento do coeficiente permite a construção de prédios com mais área, ou seja, mais altos.

Primeira versão

Zona Setor Coef. Util.(m) Gabarito (G) Máximo
(m)
TSN
%
Afastamento (af) Requisitos especiais
Frontal Lateral Funtos
Z-1 (1) (2)
Z-2 S-2a 2,0 30,00 10 * * * (3) (4)
S-2b 2.0 65,00 10 * * * (4)
S-2c (6)
S-2d 2,0 30,00 25 5 5 5 (7)
S-2e 2,0 9,5 10 Nulo Nulo Nulo (8) (9)
Z-3 S-3a (1)
S-3b 1,5 30,00 50 5,00 5,00 5,00 (3) (4)
Z-4 1,5 18,00 50 5,00 5,00 5,00 (5) (10)
Z-5 S-5a 4,0 137,00 10 5,00 5,00 5,00 (4) (11)
S-5b 4,0 120,00 10 5,00 5,00 5,00 (4) (11)
S-5c 3,5 42,00/95,00 10 5,00 5,00 5,00 (4) (11) (12) (13)
S-5d 3,0 42,00 10 5,00 5,00 5,00 (4) (11) (12)
Z-6 (1) (2)
Z-7 S-7a 1,0 10,00 25 5,00 5,00 5,00 (10)
S-7b 2,0 60,00 5,00 5,00 (14)
Z-8 1,0 40 5,00 5,00 5,00 (10) (15)
Z-9 Z-9a 1,5 10,00 25 5,00 5,00 5,00 (4) (5) (10)
Z-9b 2,5 36,00 25 Nulo Nulo Nulo (10)
Z-10 (16)

Segunda versão

Zona Setor Coef. Util.(m) Gabarito (G) Máximo
(m)
TSN
%
Afastamento (af) Requisitos especiais
Frontal Lateral Funtos
Z-1 (1) (2)
Z-2 S-2a 3,0 30,00 10 5,00 5,00 5,00 (3) (4) (11)
S-2b 3.0 65,00 10 5,00 5,00 5,00 (4) (11) (17)
S-2c (6)
S-2d 2,0 30,00 25 5 5 5 (7)
S-2e 2,0 9,5 10 Nulo Nulo Nulo (8) (9)
Z-3 S-3a (1)
S-3b 1,5 30,00 50 5,00 5,00 5,00 (3) (4)
Z-4 1,5 18,00 50 5,00 5,00 5,00 (5) (10)
Z-5 S-5a 4,0 137,00 10 5,00 5,00 5,00 (4) (11)
S-5b 4,0 120,00 10 5,00 5,00 5,00 (4) (11)
S-5c 3,5 42,00/95,00 10 5,00 5,00 5,00 (4) (11) (12) (13)
S-5d 3,0 42,00 10 5,00 5,00 5,00 (4) (11) (12)
Z-6 (1) (2)
Z-7 S-7a 1,0 10,00 25 5,00 5,00 5,00 (10)
S-7b 2,0 60,00 5,00 5,00 (14)
Z-8 1,0 40 5,00 5,00 5,00 (10) (15)
Z-9 Z-9a 1,5 10,00 25 5,00 5,00 5,00 (4) (5) (10)
Z-9b 2,5 36,00 25 Nulo Nulo Nulo (10)
Z-10 (16)
AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.