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A política do “quanto mais escondido, melhor”

Luiz Carlos Pinto / 17/12/2015

O prefeito Geraldo Julio convocou reunião do Conselho de Desenvolvimento Urbano para o dia 22 de dezembro. O objetivo é aprovar o Projeto Novo Recife, criando assim um novo fato jurídico que fortalece o consórcio de empresas e torna mais real o empreendimento. A prática de tomar decisões importantes no apagar das luzes do governo e/ou às vésperas de Natal e final de ano é um expediente corriqueiro dos grupos que ocupam o Estado – sobretudo quando trata-se de temas impopulares ou que atentem ao interesse público. É nesse cenário que grupos contrários ao empreendimento organizam duas grandes manifestações nos dias 21 e 22 de dezembro, na sede da prefeitura. A convocação para essa reunião, entretanto, expressa de forma muito especial o modus operandi que caracteriza a aliança entre a augusta elite política local e o capital imobiliário.

Em 2012, o ex-prefeito João da Costa promoveu a aprovação da primeira versão do projeto Novo Recife no último dia útil de seu mandato. O palco era o mesmo CDU, a reunião aconteceu a portas fechadas, depois de ter sido cancelada por força de ação judicial que o grupo Direitos Urbanos havia movido. A ação acabou sendo derrubada numa quinta-feira e a reunião ocorreu na sexta, no 28 de dezembro daquele ano. Naquela ocasião, foi Instituto dos Arquitetos do Brasil – Seção Pernambuco quem publicizou as plantas da primeira versão do projeto e fomentou uma discussão aberta – o Conselho de Arquitetura e Urbanismo não tinha assento nem no CDU nem na Comissão de Controle Urbanístico (CCU).

A disposição do prefeito João da Costa acabou beneficiando Geraldo Julio, que começou seu mandato sem a necessidade de aprovar o Projeto. É interessante lembrar que, àquela altura, o ex-prefeito do Partido dos Trabalhadores já havia sido preterido por sua agremiação na disputa interna pela eleição da prefeitura. Individualmente, portanto, João da Costa não precisava mais se preocupar com o abalo que a aprovação teria em seu eleitorado.

Atualmente, a pressão é correlata: no ano eleitoral de 2016 não é interessante à articulação de forças no poder – partidos, construtores, fornecedores, consultorias, escritórios de arquitetura, departamentos de publicidade dos jornais, anunciantes – que a indefinição se demore muito. Correspondentemente, pode-se inferir que o cálculo do PSB não leva em consideração o (virtual) estrago eleitoral causado pela desenvoltura de seu prefeito no processo de aprovação do empreendimento. A ver.

Um dos elementos que explica as semelhanças nas estratégias dos dois gestores é a origem do financiamento de suas respectivas campanhas – em ambas, o capital imobiliário é imprescindível. É no governo de ambos que a participação popular nos rumos da cidade se esvazia – apesar do Instituto Pelópidas da Silveira ter sido criado no governo de João da Costa como uma tentativa de planejamento integrado da cidade. Mas também foi quando o Orçamento Participativo, a pedra de toque da participação popular nos governos do PT, degenerou de vez.

Uma outra semelhança se impõe, dessa vez entre o prefeito Geraldo Julio e o presidente da Câmara de deputados, Eduardo Cunha. O parlamentar foi acusado pela procuradoria Geral da República de vender emendas a medidas provisórias – uma clara submissão do trabalho legislativo a interesses privados. No caso local, o paralelismo está na elaboração a Lei (n°08/201) que definiu as normas e estabelece parâmetros para o uso e ocupação da região do Cais José Estelita, e dos bairros de Santa Rita e Cabanga – amplamente interpretada por arquitetos e advogados como uma legislação feita sob medida para o Projeto Novo Recife.

Alento

O novo fato jurídico que pode emergir dessa reunião no dia 22 de dezembro pode ser entendido também como um alento aos empreendedores. Depois da decisão judicial que anulava o leilão (proferida pelo juiz Roberto Wanderley Nogueira, da 1ª Vara da Justiça Federal em Pernambuco, em exercício da 12ª Vara, no último dia 28 de novembro.), a prefeitura teve que a cancelar a reunião do CDU pois a decisão do juiz Wanderley assim o ordenava. O clima mudou com a suspensão dos efeitos dessa primeira decisão por meio de uma ação cautelar solicitada pelo consórcio Novo Recife e aceita por unanimidade pelo pleno do Tribunal Federal Regional da 5a. Região. A ação cautelar libera temporariamente a análise do projeto Novo Recife pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano, além de suspender a sentença que anulava o leilão do Cais José Estelita.

Uma questão interessante que se impõe é saber se o candidato Geraldo Julio sobreviverá ao prefeito Geraldo Julio, que topa dar continuidade a um processo sob investigação policial. Aparentemente, os adiamentos anteriores não visavam aguardar o término das investigações, mas esperar uma decisão em segunda instância que liberasse a análise do Novo Recife, esperar que a opinião pública fosse desviada para outro foco de atenção – o que aliás não tem sido difícil de ocorrer. A desmobilização dos movimentos que acompanham o caso, às vésperas do Natal, também é indicativo do modus operandi já citado e integra essa estratégia.

A julgar por essa disposição, o cálculo eleitoral da proto-candidatura do PSB e aliados não leva em consideração o caso Estelita como uma ameaça aos seus planos. A ver…

Pareceres

É nesse cenário que três novos documentos se somam ao já enorme conjunto de dissertações de mestrado, teses de doutorado, artigos, reportagens, documentários, decisões judiciais e conclusões da Polícia Federal. Esses pareceres foram descartados pelo Tribunal Regional Federal na análise que fazia do caso o juiz Francisco Antônio de Barros Neto. Em comum, a afirmação já notória de que o empreendimento é ruim para a cidade do Recife e sua população. Os documentos são respostas a seis questionamentos feitos por Mona Lisa Duarte Abdo Aziz Ismail, Procuradora da República do Ministério Público Federal em Pernambuco, acerca dos impactos do Projeto Novo Recife sobre os bens tombados pelo Iphan no Bairro de São José. As análises, elaboradas pelo Departamento de Arquitetura da Universidade Católica de Pernambuco, pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo e pelo Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, vão além de um parecer técnico-urbanístico.

A leitura dos documentos revela uma argumentação racional, afetiva, generosa, histórica e lúcida das razões pelas quais é necessário preservar a paisagem como forma de pensar melhor a cidade. Por isso mesmo, podem e devem ser lidos como documentos que venham subsidiar a política de gestão dos bens Comuns na cidade – começando pelo Cais José Estelita. Estaríamos melhor, caso fôssemos governados por arquitetos e urbanistas?

Um elemento muito interessante desponta do parecer da professora Lúcia Veras, que assina o documento endossado pelo Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPE: a ideia de que a cidade que se insinua com o Projeto Novo Recife nega a cidade que lhe tornou possível. Ou como escreve a pesquisadora, “São duas cidades antagônicas onde a nova nega completamente aquela que lhe dá suporte”. A afirmação é mais rica ainda se extrapolarmos a questão urbana e urbanística e projetarmos essa noção no terreno da política institucional e representativa – na qual navega, triunfante, a geração de políticos e administradores a quem calhou redesenhar a cidade do Recife à imagem e semelhança do capital, em franca contradição com a ideia de que a cidade deve funcionar para as pessoas.

Essa extrapolação permite considerar como o corpo técno-político hegemônico dentro do governo de Pernambuco assumiu o antagonismo ao interesse público, negando as condições que a tornaram possível. E aí estão envolvidas as disputas para restaurar a democracia desde 1985, restituir a sociedade como tal e a máquina pública como agente regulador da vida em sociedade.

Permite considerar como esse antagonismo nega também a própria sociedade, como se ela não fosse mais necessária – um emblema perdido no tempo, que é todo destinado a servir apenas ao desenvolvimento. E assim como a verticalização oligárquica homogeneíza o traçado da cidade, tende a homogeneizar a dinâmica da própria cidade, deixando-a igual a tantas outras. Essa é, portanto, a geração de gestores que pretende mais do que redesenhar o traçado da urbe, mas sobretudo forçar uma nova morfologia urbana – e da pior maneira possível.

Do ponto de vista urbanístico, o documento assinado pela professora da UFPE considera a necessidade de proteção à visibilidade dos bens tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que formam uma Unidade de Paisagem e se relacionam com outros imóveis no bairro de São José.

Uma das justificativas para isso é que manter as bordas da ilha de Antônio Vaz (o quadrilátero formado pelos bairros de São José, Santo Antônio, Cabanga e Joana Bezerra) desimpedidas garante a visibilidade dos bens tombados e a identidade do centro histórico. Como afirma o parecer, estamos falando do “maior acervo de bens culturais tombados no Recife em âmbito nacional: são edifícios isolados e conjuntos arquitetônicos, como igrejas, conventos, mercado, casario, pátios, praças, largos, com origens na arquitetura dos séculos XVII, XVIII e XIX, concentrados em sua maioria no miolo da Ilha e conectados às águas pelas bordas com seus pátios, passeios, embarcadouros, praças e cais”. Indo além, o documento afirma que esses locais, além de se incorporarem à morfologia do centro histórico, são condição sine qua non para a manutenção da identidade local e visibilidade aos seus monumentos.

O documento lembra ainda que a borda leste/sul, que corresponde ao Cais de Santa Rita e Cais José Estelita, foi definida como Zona Especial de Centro Principal e de Urbanização Preferencial pela Lei de uso e Ocupação do Solo do Recife, Lei 16.176/96, ainda em vigor. Nesta legislação, a ZEPH-10 foi classificada como “Conjuntos Antigos” pelo Decreto no 11.693/80. Isso tudo significa que o município reconheceu e definiu legalmente que a região do Cais de Santa Rita e Cais José Estelita detém “traços típicos da paisagem recifense”. Ou seja, conserva “excepcional interesse histórico e estético-cultural que empresta significado e prestígio à história da cidade”. Para esses casos, o Código de Meio Ambiente e do Equilíbrio Ecológico da Cidade do Recife define de forma contundente a importância de se proteger o acesso visual para a paisagem. Fazendo o contrário, a administração municipal acrescenta mais um dedo de ilegalidade no processo.

O estudo ainda lembra que quaisquer edificações próximas à Basílica de Nossa Senhora da Penha (Rua das Calçadas) e na linha do Cais José Estelita, não deveriam ultrapassar o limite de 21 metros, que corresponde aos 7 (sete) pavimentos de um edifício moderno. A Basílica é a edificação mais alta entre todos os imóveis, sejam eles os protegidos isoladamente ou no conjunto da ZEPH-10. Sua altura total corresponde, aproximadamente, a um edifício moderno de 15 pavimentos. A ocupação do “vazio essencial”, que permite a visibilidade e identidade dos bairros de São José e Santo Antônio, deve obedecer a essa referência, tanto em relação a construções próximas dos bens tombados quanto em relação a empreendimentos mais distantes.

Basílica1

Basilica2

Vazio essencial

O Projeto Novo Recife anula uma faixa de transição como linha de fronteira entre o que é mais e o que é menos construído no interior da ilha de Antônio Vaz e que diferencia e caracteriza a cidade do Recife. Nesse sentido, o estudo elimina o que a professora Lúcia Veras chama de vazio essencial, necessário para que se possa acessar visualmente o panorama da cidade histórica, para que se compreenda o skyline do centro da cidade e se conserve a histórica relação dos bens tombados com as águas. “É este ‘vazio’ que permite que as torres das igrejas ainda sejam marcos de sinalização dos que chegam pelas águas, assim como permite, na chegada em sobrevoo, que se identifique rapidamente o centro da cidade, ou porque se difere da verticalização e homogeneização de Boa Viagem, ao sul, ou por se distinguir das colinas históricas de Olinda, ao norte”, escreve.

Skyline_Violentado

Em um dos seus questionamentos, a promotora Belize Câmara questiona se as características, valores e significados de São José e Santo Antônio permanecem presentes, a despeito da falta de planejamento urbano e gestão pública do bairro. A resposta: “Sim, permanecem. As características, valores e significados em São José são tão fortes e latentes nos recifenses e na paisagem por eles apreendida, que São José resiste, independentemente da falta de planejamento e gestão pública ou de um planejamento deficiente, com a definição de um Plano Urbanístico aprovado em 2014, voltado para a aprovação do Novo Recife e de outros possíveis empreendimentos na borda da Ilha de Antônio Vaz”.

O parecer da Unicap, assim como o do Conselho de Arquitetura de Urbanismo (CAU), também recomendam a preservação – a Unicap se baseia, por sua vez, nas cartas tutelares da Unesco para salvaguarda de monumentos históricos, assim como o CAU, que apenas menciona as orientações da Unesco. Os três documentos concordam que características, valores e significados do centro histórico continuam a existir – a despeito da falta de planejamento urbano e da gestão pública.

No que se refere à interferência à visibilidade, todos os documentos relacionam as torres gêmeas e a degradação histórica causada por esse empreendimento ao conjunto de bens tombados do entorno.

Em um dos últimos questionamentos da procuradora Belize Câmara, sobre a existência de porções livre de paisagem que permitem a visualização dos bens tombados e que mereçam ser preservados, o documento produzido pelo Departamento de Arquitetura da Universidade Católica de Pernambuco salienta um aspecto importante: a perda de valor econômico e consequente degradação de áreas de patrimônio histórico. Segundo o documento, esse seria um processo resultante da falta de posturas de preservação que levem em consideração os valores da paisagem como um bem cultural e que possam produzir novas políticas de preservação do patrimônio existente.

Nesse sentido, o documento afirma que o “patrimônio edificado da cidade, que deveria ser um bem de altíssimo valor a ser deixado como herança para gerações futuras, passou a não ter valor de troca e consequentemente a se degradar, por falta de interesse de muitos proprietários”.

A pergunta que não quer calar é: por que o Tribunal Regional Federal não achou importante considerar o trabalho desses estudiosos? O impedimento desautorizou o juiz Francisco Antônio de Barros Neto, que abandonou o caso e que já foi objeto de reportagem aqui na Marco Zero. Consequentemente, a medida impediu o Ministério Público de considerar esses pareceres em sua recomendação.

AUTOR
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Luiz Carlos Pinto

Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.