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Tenho cá pra mim que, agora sim, viramos um capítulo da história que conta a relação da imprensa com a política no Brasil. Infelizmente, nesse capítulo a democracia está mais uma vez sob ataque, e a narrativa que se pode ver é composta de vários elementos. De um lado, a definitiva ruptura entre o jornalismo praticado pelos principais grupos de mídia do Brasil e o interesse público – uma separação que se aprofundou desde a década de 1960 e de alguma maneira encerra somente agora a contribuição dos conglomerados de mídia no Brasil ao longo do século XX.
Se isso for verdade, essa virada de página também consolida uma migração, uma clivagem, uma metamorfose: já não é jornalismo boa parte do que é feito pelas empresas de comunicação dos Frias, Marinho, Civita, Mesquita, justamente pela desconexão com a ideia moderna de que os assuntos de interesse público sejam discutidos em público. A subversão dessa tradição, no contexto dessas empresas, está gestando uma outra coisa, que talvez ainda não tenha nome.
É claro que o jornalismo muda e se ilude quem apostar que não – se a crise interna alcança as bases do que caracteriza tantos outros campos de ação e reflexão, porque não tocaria o jornalismo também? Mas consideremos que jornalismo mantenha essa relação com o ideal de interesse público. Consideremos mais ainda: num contexto progressivamente mais conservador, o impulso de discutir em público o que é de interesse de todos é ainda mais necessário.
Se isso se mantém como um forte diferenciador do jornalismo como prática nascida na modernidade, parece ser justo pensar que o modus operandi da aristocracia midiática brasileira nunca esteve tão fora de moda.
De outro lado, é de se esperar que esse processo ainda em curso impacte as formas de se aprender e de se ensinar sobre produção midiática em geral e sobre o jornalismo em particular. Precisamos aprender mais e nas ruas como a democracia pode pender e se fragilizar em função das narrativas midiáticas e levar esse aprendizado aos processos de ensino-aprendizagem das universidades.
Isso porque o ambiente de formação de jovens profissionais abre brechas de médio prazo para uma reconexão desse campo profissional com o interesse público, na mesma medida em que permite sua desmistificação e a compreensão de que o jornalismo é um terreno político e, portanto, de conflito. A (incômoda) novidade é que esse aprendizado não depende e não pode mais depender exclusivamente dos professores e nem mesmo da forma tradicional de ensino, nem dos espaços disciplinares para isso.
Precisamos todxs – profissionais, professores, universidades, estudantes –, nos forçar a reconhecer que as narrativas enamoradas da democracia não são uma propriedade mercantil. E que essas narrativas passeiem livres entre plataformas, jeitos, sujeitos e linguagens
A virada desse capítulo ainda sinaliza com um mercado pulsante, vivo, virtuoso de produção jornalística para além do feudo comercial que dominou a esfera pública brasileira no século passado. Esse modelou matizou o ensino do jornalismo com uma perspectiva quase que exclusivamente comercial, mas curiosamente congelou nossas expectativas pessoais e possibilidades empreendedoras de modo ainda mais sufocante que no restante do mundo.
Mas o novo vem aí, o tempo todo. A indústria da intermediação da qual o jornalismo comercial faz parte não está mais sozinha na tarefa de interpretar e narrar os acontecimentos, de criar a realidade e de intervir nela. Se é verdade que daqui até a Indochina se procuram novas formas de dar sustentabilidade ao negócio do jornalismo não comercial, talvez seja no lugar onde ele é mais problemático que apareçam, na marra, algumas soluções. Estamos diante de uma nova oportunidade?
As teses do professor Venício Lima, segundo as quais a mídia ocupa uma posição de centralidade nas sociedades contemporâneas, de que não há política nacional sem mídia, de que a mídia exerce funções tradicionais dos partidos políticos, de que a mídia enfim se transformou, ela própria, em importante ator político; essas teses precisam ser ampliadas e atualizadas.
Antirrepublicano
Escrevo sob o correr de acontecimentos que estão longe de se estabilizarem. Mas os últimos meses e dias já permitem afirmar também que toda a articulação entre a comunicação comercial e hegemônica brasileira com setores do mundo jurídico alcançou um padrão novo e profundamente antirrepublicano.
As referências ao último período de exceção ainda estão muito evidentes e claras no Brasil – na estrutura herdada da Polícia Militar, na opção pelo transporte rodoviário, na entrada canhestra, tutelada e sem soberania nas lógicas do capitalismo monopólico, no maior oligopólio das comunicações do mundo. E também na densa articulação dos personagens que tornaram aqueles 21 anos possível: os maiores grupos de comunicação comercial, uma certa sociedade civil organizada (financistas, comerciantes, industriais) e os setores mais conservadores das forças armadas montaram uma megaestrutura formadora de opinião pública, cara e bem articulada.
Mas eles não contavam com o Judiciário. O Golpe civil, midiático e militar de 1964 não contava com o Judiciário como front nem como elemento de suspensão da ordem democrática e de formação da opinião pública. Esse talvez seja o principal elemento da ação em curso no Brasil de 2015/2016.
As últimas semanas também sinalizam que a articulação desses grupos econômicos de comunicação com o capital estrangeiro e com o projeto de tutela da soberania nacional se renovou desde 1960 – para um entendimento mais completo disso, leia o Editorial da Marco Zero sobre isso (link). E que o pensamento de esquerda no país não foi capaz de anular ou minimizar essa ameaça – em que pesem os avanços sociais dos últimos anos.
Para que o golpe de 1964 fosse possível, foi necessário o trabalho árduo e contínuo de dois think tanks financiados com capital norte-americano e tocados por uma aliança virtuosa e criativa entre certa sociedade civil e militares. Essa história é bem narrada no livro A tomada do Estado, de Armand René Dreyfuss. Na virada de página que estamos testemunhando, esse investimento foi desnecessário pois o mundo é outro. Mas continua em alta a estratégia geral de manipulação midiática desenhada por Noam Chomsky e que inclui distração da atenção pública, o convencimento gradual de uma medida inaceitável, a conquista da aceitação popular para essa medida por meio afirmação repetitiva de como ela é dolorosa, o incentivo à mediocridade do debate político.
Tenho cá pra mim, entretanto, que mais do nunca é necessário esse trabalho que procura fiscalizar e criticar o Poder, de publicizar o segredo, de procurar conferir as informações e de valorizar o interesse público, de desmistificar essas estratégias de manipulação. Tenho cá pra mim que esse trabalho se chama jornalismo.
Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.