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Erros da prefeitura e do TCE atrasam atendimento a indígenas venezuelanos

Inácio França / 07/12/2020

Desde o início da pandemia, a Prefeitura do Recife tentou, por três vezes, contratar sem licitação um alojamento provisório para a população de rua, inclusive os indígenas da etnia Warao que migraram da Venezuela. As tentativas chamaram a atenção do Ministério Público de Contas (MPCO) e dos conselheiros do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE), que mandaram suspender a contratação e iniciaram uma auditoria especial para investigar o caso.

Os erros da prefeitura, no entanto, juntaram-se aos erros do próprio Ministério Público, impedindo pelo menos 200 indígenas e moradores de rua de terem acesso a um abrigo pronto para recebê-los.

De acordo com o relatório aprovado por unanimidade pelos três conselheiros da Segunda Câmara do TCE (Carlos Porto, Marcos Loreto e Teresa Duere), no dia 29 de outubro, os esforços da secretaria municipal de Desenvolvimento Social, Juventude e Direitos Humanos para contratar o Centro Especial de Acolhimento Humanizado (Cesah) começaram oficialmente em 13 de março, exatamente dois dias antes do início do estado de emergência.

Naquele dia, uma sexta-feira, a secretaria homologou a dispensa de licitação nº 02/2020. Por R$ 1.269.00,00, a Cesah teria de providenciar abrigo para 150 pessoas, mas isso não chegou a acontecer. Dois meses depois, em 16 de maio, o termo de dispensa foi cancelado pela secretária Ana Rita Suassuna. De acordo com a assessoria de imprensa da secretaria, “foi decidido como modelo mais viável a oferta do aluguel social. Dessa forma, a licitação foi cancelada” (ver a íntegra da nota da assessoria abaixo).

Um detalhe chamou logo a atenção do procurador Cristiano da Paixão Pimentel: a empresa foi criada no dia 21 de fevereiro, exatamente três semanas antes da homologação. Um dos argumentos da prefeitura é que a empresa, apesar de novata no mercado, foi escolhida por “ser especialista em serviços dessa natureza”. No pedido de medida cautelar apresentado ao TCE, o procurador rebate: “Uma empresa com 21 dias de vida não pode ter notória especialização em nada”.

A sede da Cesah, cuja foto de fachada foi incluída, foi descrita assim pelo procurador: “local de aspecto muito humilde, sem nenhum sinal externo de atividade empresarial, quanto mais uma empresa de hotelaria apta a receber 150 pessoas, é incompatível com a escolha sem licitação”.

O problema é que a equipe do Ministério Público contentou-se em usar o Google Maps para identificar a sede da Cesah e acabou incluindo a foto do local errado: o imóvel apontado foi o da rua dos Coelhos, 109-A, mas o endereço correto da empresa é rua São Gonçalo, 109, um antigo albergue de uma ordem religiosa com três pavimentos, dois anexos e mais de 4 mil metros quadrados de área.

Na defesa que apresentou ao TCE, a secretaria de Desenvolvimento Social alegou ter identificado a empresa em “pesquisa de mercado” e constatou que o prédio estava sob “contrato de comodato firmado entre o Instituto das Filhas de Maria das Servas da Caridade e o sócio da empresa Cesah, senhor Gerson Souza Santana Júnior”. O MPCO apontou então uma incongruência de datas: o tal contrato de comodato teria sido assinado no dia 20 de janeiro de 2020, um mês antes da empresa ser formalizada.

À esquerda, foto do imóvel da rua dos Coelhos retirada do Google Maps anexada ao relatório do TCE. À direita, a verdadeira sede do Cesah na rua São Gonçalo.

Outras tentativas

No dia 30 de julho, mais uma dispensa de licitação (nº 29/2020) foi publicada pela secretaria de Desenvolvimento em favor da Cesah. O valor, todavia, subiu para R$ 1.728.000,00. Questionada pelo Ministério Público, a prefeitura alegou a publicação no Diário Oficial se deu por “lapso de natureza administrativa” e que seria revogada, o que realmente aconteceu.

Em 28 de setembro, o Diário Oficial voltou a publicar um termo de dispensa de licitação favorecendo a Cesah. A dispensa 31/2020 repetiu o valor de R$ 1.728.000,00. Foi essa terceira tentativa de contratar a empresa que desencadeou a intervenção do Ministério Público para que o processo fosse suspenso e o caso investigado.

De acordo com a assessoria da secretaria, “não houve decisão da Prefeitura de contratar a Cesah. A empresa em questão se candidatou nos dois processos e atendeu às exigências.”

Dois Marconi Santana

A desconfiança do MPCO só aumentava. O proprietário da empresa Cesah, Gérson Souza Santana Júnior, é primo do prefeito reeleito de Flores, Marconi Martins Santana (PSB) e irmão de Marconi Ferraz Santana, dono de uma empresa de ramo parecido, a Pousada Solar do Lazer, fundada em 2004.

Em novembro de 2018, a empresa foi alvo de uma operação da Polícia Federal, suspeita de “desvio de recursos públicos destinados ao programa de Tratamento Fora de Domicílio da secretaria de Saúde de Salgueiro”. O relatório do TCE dá a entender que o Marconi Santana, irmão de Gérson, seria também o Marconi Santana, político do PSB.

O vínculo entre os sócios das duas empresas pesou para que os conselheiros do TCE votassem pela suspensão da dispensa de licitação e pela abertura de uma investigação aprofundada, conforme o relatório da conselheira Teresa Duere: “Pesam sobre a empresa indícios de irregularidade, a exemplo da inscrição estadual, do diminuto capital social, dos vínculos políticos e familiares com outra empresa alvo de operações da Polícia Federal”.

Gérson Santana, sócio da Cesah, confirmou ser parente dos dois Marconi, porém garante que sua vida profissional é completamente independente de ambos: “Vim para o Recife com oito anos de idade e nunca tive qualquer envolvimento com política, muito menos no interior do estado. Além disso, nunca me envolvi na vida do meu irmão, muito menos nos negócios dele. Apenas nos encontramos nas confraternizações da família, como aniversário da minha mãe e Natal.

Gérson explica que, além da Cesah, trabalha fazendo “todos os trâmites necessários para legalizar, homologar documentos do exterior para o Brasil e vice e versa, como casamentos com estrangeiros, homologação de sentença estrangeira”.

A empresa vista por dentro

Gérson e a esposa Ana Paula são os proprietários da empresa que se tornou o pivô da investigação do TCE-PE. Na sede da rua São Gonçalo, o casal há mais de 20 anos realiza serviços voluntários com moradores de rua, sempre vinculados às iniciativas da Igreja Católica. Estimulados por sacerdotes, o final do ano passado, decidiram investir na criação de uma empresa para poder concorrer a editais públicos ou das ONGs católicas.

Usando as próprias economias e empréstimo bancário, reformaram o antigo albergue recebido em regime de comodato. “Não pagamos aluguel. A igreja nos cedeu porque não tinha como manter ou reformar o prédio, que estava abandonado. Nosso compromisso foi garantir que o imóvel voltasse a ser usado para atender os excluídos”, explica Ana Paula, advogada que trabalha com ordens religiosas e a própria arquidiocese do Recife e Olinda.

Como foram os únicos a apresentar proposta para atender ao chamamento público da prefeitura, Gérson e Ana Paula procuraram os caciques dos dois grupos Warao do Recife para que a reforma do pavilhão que iria recebê-los estivesse adequados aos seus costumes. “Cada família irá ocupar um quarto, que não têm portas a pedido deles. Instalamos as redes e as camas são para as crianças. Eles também abriram mão dos berços, pois os bebês ficam grudados no corpo da mãe”, relata Ana Paula.

O abrigo, que o relatório do TCE considerou não ter condições de receber 150 pessoas, tem lavanderia, salas para atendimento psicossocial, dois refeitórios, um exclusivo para os Warao e outro para os demais moradores de rua. “É preciso separar, pois iremos receber egresso do sistema prisional e usuários de drogas em processo de reabilitação”, detalha Ana Paula.

Quartos foram adaptados aos costumes dos venezuleanos (Crédito: Inácio França/MZC)

O que diz a Prefeitura do Recife

A equipe de comunicação da secretaria-executiva de Imprensa e da assessoria da Secretaria de Desenvolvimento Social, Juventude e Direitos Humanos respondeu aos questionamentos da Marco Zero:

Sem uma empresa contratada para prestar o serviço de acolhimento, como foi feito o atendimento à população em situação de rua no período de emergência sanitária? Como está sendo realizado no momento?

O atendimento nas ruas foi garantido por meio da atuação do Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS), cujo trabalho é contínuo e consiste na conversa ativa, sensibilização e orientação e, sempre que há aceitação, no encaminhamento para a rede de acolhimento ou outros benefícios eventuais, como o aluguel social. Além disso, há prestação de serviços nos dois Centros de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) e o Restaurante Popular Josué de Castro passou a entregar quentinhas, tanto na porta do restaurante, quanto de maneira itinerante, tendo fornecido mais de 325 mil quentinhas até agora durante todos os dias da semana. Em relação ao acolhimento da população em situação de rua durante a pandemia, a PCR disponibilizou 120 vagas no Abrigo Emergencial para usuários que foram encaminhados pelo serviço de saúde com suspeita de covid-19 para que fosse feita a quarentena em um espaço digno. Além disso, o Abrigo Noturno Irmã Dulce permaneceu ofertando 100 vagas diariamente para acolher usuários. A PCR inaugurou ainda o Abrigo Edusa Pereira com a intenção de ofertar 40 vagas para pessoas idosas, grupo de risco da covid-19.

Por que o primeiro processo de dispensa de licitação em favor da Cesah foi cancelado, em maio de 2020?

Inicialmente, o primeiro processo foi idealizado para atender apenas à população indígena da tribo Warao. Entretanto, foi decidido como modelo mais viável a oferta do aluguel social. Dessa forma, a licitação foi cancelada.

Por que a prefeitura manteve a decisão de contratar a Cesah, mesmo após os questionamentos do MP-CO após a publicação da dispensa de licitação de julho?

A SDSJPDH realizou um chamamento público para convocar qualquer entidade que pudesse, em condições de salubridade, prestar o serviço de acolhimento com dormida e oferta de três refeições e dois lanches diários para moradores em situação de rua e imigrantes. A única entidade interessada a comparecer foi a CESAH – Centro Especial de Acolhimento Humanizado Ltda, ao valor de R$ 48,00 a diária por pessoa. Não houve decisão da Prefeitura de contratar a CESAH. A empresa em questão se candidatou nos dois processos e atendeu às exigências. Após o primeiro processo de chamamento, em meados de julho, a empresa em questão não se mostrou apta na prática, embora tenha atendido às exigências do edital. Um outro processo de chamamento público foi realizado em meados de agosto e, novamente, a CESAH foi a única empresa a se candidatar. Entretanto, o TCE suspendeu a licitação antes de a contratação ser iniciada.

AUTOR
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Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.