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Crédito: Antônio Augusto/Secom/PGR
com colaboração de Géssica Amorim
O tempo em que os procuradores do Ministério Público Federal (MPF) brilhavam nas manchetes e davam autógrafos em aeroportos como heróis da luta contra a corrupção parece mesmo ter ficado para trás. Depois do escândalo da Vaza Jato e das sucessivas anulações de processos contra o ex-presidente Lula, a nova mancha sobre a imagem da instituição que deveria defender os direitos dos cidadãos, a ordem judicial e o regime democrático, é a notícia dos supersalários pagos aos procuradores federais em dezembro de 2021, divulgada inicialmente pelo jornal Estado de S. Paulo.
Depois que o procurador-geral da República, Augusto Aras, autorizou os procuradores a solicitarem suas respectivas licenças-prêmios, benefício que, no Ministério Público, pode ser gozado na forma de três meses de folga ou em dinheiro. Aras também deu sinal verde para o pagamento das licenças atrasadas convertidas em dinheiro.
Além desse tipo de licença, procuradores, assim como juízes, têm direito a duas férias por ano que se somam a diversos outros benefícios. A gratificação natalina não foi nada singela: mais de R$ 19 mil.
Resultado: dos 1.145 procuradores federais, 720 fecharam 2021 com salários acima de R$ 100 mil, dos quais 18 foram beneficiados com valores superiores a R$ 400 mil. Os valores estão disponíveis no Portal da Transparência do MPF.
Para efeitos comparativos, nos Estados Unidos o salário médio de um federal prosecutor, o equivalente a um procurador federal, fica entre 67 mil e 74 mil dólares por ano. Apenas no mês de dezembro, houve procurador brasileiro recebendo 86 mil dólares.
A Procuradoria-Geral da República emitiu uma “nota de esclarecimento” se justificando. De acordo com o documento, “trata-se da quitação de dívidas da União para com membros do MPF, tais como licença-prêmio, abonos e indenizações de férias não usufruídas”, tudo dentro dos “princípios da legalidade e da transparência”.
A nota também revela que parte dos valores diz respeito ao adiantamento do pagamento das férias que serão gozadas ao longo de 2022, direito inexistente para os demais brasileiros. A explicação é essa: “A folha de dezembro de 2021 apresenta valores maiores do que a média de outros meses, inclusive em razão de pagamentos obrigatórios efetivados sempre nessa época do ano, como parcela de 13º salário devida a membros e servidores. Os adiantamentos feitos – antecipação de férias de 2022 e de auxílio-alimentação de janeiro – observam critérios técnicos de gestão administrativa”.
A partir de uma planilha que começou a circular no aplicativo Telegram no final de semana, a Marco Zero levantou os 10 maiores rendimentos do MPF no mês de dezembro. A planilha inicial foi o ponto de partida desta apuração, porém ela logo se revelou falha, com valores divergentes daqueles disponíveis no Portal da Transparência. Para chegar aos valores reais, foi preciso cruzar os dados dos contracheques de cada procurador e da planilha com as verbas indenizatórias e outras remunerações temporárias, publicada em outra página do Portal.
Com esse levantamento foi possível identificar os 10 procuradores que mais se beneficiaram a partir das autorizações de pagamento feitas por Augusto Aras:
A maior parte dos valores acima dizem respeito ao pagamento de licença-prêmio transformada em pecúnia, ou seja, em dinheiro, pois o salário base da maior parte dos procuradores não ultrapassa o patamar de R$ 37 mil.
Apesar da nota oficial afirmar que os pagamentos de dezembro passado foram “excepcionais”, as planilhas de verbas indenizatórias de todos os meses anteriores contêm salários superiores a R$ 100 mil e, por vezes, maiores do que R$ 200 mil. A título de exemplo, em janeiro de 2021 no contracheque de José Robalinho Cavalcanti, o segundo da relação acima, constavam mais de R$ 173 mil em valores brutos.
Para o mestre em Direito e professor de Direito Constitucional da Faculdade Estácio, Caio Sousa, os salários milionários de procuradores e magistrados no Brasil se explicam pelas relações de poder. “No setor público, essas carreiras jurídicas acabam tendo grande influência pra composição, inclusive, dos seus próprios salários, dos seus benefícios, dos seus vencimentos, são carreiras que têm até uma regulamentação própria, diferentes de outras carreiras do serviço público federal”.
Sousa tenta compreender a razão da complacência da sociedade diante de remunerações tão altas. A explicação talvez esteja na formação histórica do país: “As carreiras que representam autoridade, que representam poder, dentro do imaginário do brasileiro, devem ser mais bem remuneradas do que, por exemplo, uma carreira como a de professor, que é uma carreira essencial, mas que não habita no imaginário cultural da população como de um grande salário”.
Em Portugal, onde ele cursou seu mestrado em Ciências Jurídicas e Políticas na Universidade de Lisboa, “os juízes do Tribunal Constitucional português, não chegam a receber sequer 5 mil euros mensais (aproximadamente R$ 30 mil)”.
Ele ressalta, porém, que não há ilegalidade ou improbidade na folha salarial de dezembro do MPF, mas isso geralmente acontece no final de ano porque “dezembro é o melhor período pra se pagar isso em virtude das festividades, quando população não vai ficar muito apegada a essas notícias, afinal os últimos dias do ano são de distração permanente”. Para o jurista, mais do que a instituição ou os profissionais do MPF, os maiores responsáveis são os legisladores, que não produzem leis que coloquem limites aos supersalários.
A lei parada no Senado
Em julho de 2021, a Câmara Federal aprovou o projeto de lei 6726 que estabelece limites para pagamentos de dezenas de auxílios, abonos, indenizações e outros benefícios. O projeto, originalmente elaborado no Senado, acabou sendo modificado pelos deputados federais e a versão do relator Rubens Bueno (Cidadania-PR) foi aprovada com regras mais restritivas para os salários pagos por todas as esferas de governo (federal, estadual, distrital e municipal), incluindo Ministério Público, Defensoria Pública, e dirigentes de empresas públicas, além de militares e policiais militares, aposentados e pensionistas. O problema é que, depois de ser enviado para a mesa do Senado no dia 15 de julho, o projeto não voltou a tramitar. E continuou parado até o encerramento dos trabalhos legislativos em 2021.
Para os servidores públicos que estão sem reajuste salarial há seis anos e tentam iniciar uma negociação com o governo após o anúncio de que só os policiais federais receberiam aumento, causa espanto saber que algumas autoridades recebem mais de R$ 400 mil em um único mês.
O coordenador geral do Sindicato Servidores Públicos Federais no Estado de Pernambuco (Sindsep-PE), José Carlos Oliveira, acredita que os supersalários pagos a procuradores federais refletem a compreensão da elite brasileira “de Estado mínimo para a sociedade brasileira e Estado máximo para algumas pessoas”.
O sindicalista explica que a defesa do Estado não significa a defesa dos altos salários, como a “mídia tradicional” faz as pessoas acreditarem: “o poder do Estado é o que garante o mínimo para que a sociedade possa sobreviver. E um dos requisitos pra isso é essa mesma sociedade estar incluída no orçamento da União, não apenas uma parte pequena dela, que é a classe dominante”.
“Existe um abismo remuneratório muito grande entre esses salários e os da maioria do serviço público federal. Esses salários milionários não dialogam com a saciedade, não podem ser considerados normais num país com as condições do nosso Brasil e com as discrepâncias sociais desse país”, critica Oliveira.
Para ele, “o que dialoga com a sociedade é um serviço público valorizado, que atenda às demandas sociais e com uma remuneração digna, porque é a sociedade que paga R$ 400 mil a um procurador, que paga ao técnico do Ibama que tem que enfrentar o desmatamento, que paga ao agente do INSS, que paga ao agente administrativo do ministério do Trabalho”.
Pra encerrar, não esquecemos dos vencimentos em dezembro do ex-herói da Lava Jato e do MPF, Deltan Dallagnol: ele recebeu R$ 207 mil. Foi seu último contracheque como procurador.
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Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.