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No centro da imagem, menino adolescente negro, magro, sem camisa, descalço, com bermuda estampada nas cores predominantes azul e verde, caminha sobre lama negra do maguezal, cercado de restos carbonizados de traves de madeira fincadas na lama, sob um céu nublado.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

por Jones Manoel* e Tiago Paraíba**

“O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer”.

 Quarto do Despejo, de Carolina Maria de Jesus

O ano é 2022, mas esse artigo poderia se referir ao período colonial no País.  Hoje a fome aflige 125,2 milhões de pessoas no Brasil, o que corresponde a 58,7% da população brasileira, segundo os dados divulgados em 8 de julho de 2022 pelo 2° Inquérito Nacional sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, pesquisa realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN).

De acordo com a pesquisa anterior, de 2020, a fome no Brasil havia retornado aos patamares similares aos de 2004. Em 2022, a realidade é ainda pior. De 9% dos domicílios com moradores passando fome, saltamos para 15,5%, correspondendo a 33,1 milhões de brasileiros/as, o que nos leva aos níveis da década de 1990.

Isso ocorre no contexto de uma pandemia, mas ela não é maior culpada pelo Brasil voltar a esses números extremamente altos de pessoas com fome; soma-se a ela o desmonte sistemático das políticas públicas, a crise econômica, a falta de reforma agrária e o fortalecimento do latifúndio, a carestia dos alimentos e o aprofundamento das desigualdades sociais, o que faz do Brasil um dos países mais desiguais do mundo. O resultado disso tudo nos dois últimos anos são mais 14 milhões de pessoas passando a conviver com a fome cotidianamente.

O Brasil sempre foi um país da geografia da fome, como nos alertava Josué de Castro, desde a década de 1940. Na história brasileira – do período colonial até o desenvolvimento do capitalismo e a formação da República – a carestia, fome, privação e falta de acesso a direitos sempre estiveram presentes no cotidiano do povo trabalhador. Nunca tivemos uma destruição das estruturas tradicionais de concentração de terras, renda e riqueza e de opressão racista do nosso povo.

O Brasil é um país moldado pela exploração negra e indígena, um moinho de gastar gente, como diria Darcy Ribeiro. Esse peso da nossa construção histórica não é nosso passado apenas; é o presente, é parte da compreensão da luta de classes hoje. Desde a Lei de Terras (1850) até os dias atuais, o povo negro segue sem acesso à terra e comprimido nas favelas de todo Brasil.

A compreensão do problema da fome, portanto, passa não só por um olhar atento aos desmontes e à destruição de direitos aplicados desde 2015 para cá, como também à longa duração histórica do nosso país. A fome no Brasil tem cor. O rosto da pessoa que passa fome é, majoritariamente, o de uma mulher negra. É necessário um entendimento profundo das razões disso.

A fome tem cor e gênero

“Daria um filme

Uma negra e uma criança nos braços

Solitária na floresta de concreto e aço”

Negro Drama (Racionais MC´s)

Em setembro de 2022, em São Paulo, uma mãe foi presa por furtar R$ 21,69 em comida para os seus cinco filhos. A escritora Carolina Maria de Jesus, em seu livro Quarto de Despejo, é certeira quando afirma que a fome também serve de juiz”.

De acordo com os dados levantados na pesquisa da Rede PENSSAN, a fome é desproporcionalmente maior entre mulheres, pessoas negras, habitantes de zonas rurais e moradores das regiões norte e nordeste. Fica mais uma vez evidente que a fome tem cor, gênero e classe.

Enquanto 53,2% dos domicílios onde a pessoa de referência se autodeclara branca vivem em segurança alimentar, nos lares com responsáveis de raça/cor preta ou parda ela cai para 35%. Em outras palavras, 65% dos lares comandados por pessoas pretas ou pardas convivem com restrição de alimentos em algum nível. Ou seja, seis a cada dez domicílios cujos os responsáveis se identificam como pretos ou pardos vivem com algum grau de insegurança alimentar, seja leve, moderada ou grave.

Em 2021, um estudo feito pela Integration Consultinge comprova o que já é fácil de inferir: 76% das pessoas que passam fome no Brasil são negros e negras e a grande maioria vive em favelas. Comparando o inquérito de 2020 com o de 2022, a fome saltou de 10,4% para 18,1% entre os lares comandados por pretos e pardos.

No período das duas pesquisas, as diferenças são ainda mais alarmantes quando a comparação é entre os lares chefiados por homens e os lares chefiados por mulheres. Nas casas em que a mulher é a pessoa de referência, a fome passou de 11,2% para 19,3%. Nos lares que têm homens como responsáveis, a fome passou de 7,0% para 11,9%. Um dos fatores que explicam essa diferença é a desigualdade salarial entre os gêneros.

As mulheres comandam cerca de 48% dos lares brasileiros, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), e na esmagadora maioria, são mães solos, as únicas responsáveis por suprir as necessidades de famílias inteiras. Quando falta comida, os conflitos tendem a aumentar, e é sobre as mulheres que recaem as pressões por mediar os conflitos da panela vazia. A mulher negra está na base da exploração dessa sociedade extremamente desigual e a fome é uma das manifestações do encontro violento entre machismo, racismo e capitalismo. 

O racismo estrutural e a fome

O fato da maioria em situação de fome e miséria no Brasil ser negra, como já podemos constatar, não é um acaso; é consequência de um sistema que tem no racismo uma das bases fundamentais da exploração e reprodução das desigualdades socioeconômicas que, olhando mais de perto, se mostram como desigualdades também sociorraciais.

O professor, filósofo e doutor em Direito e autor do livro O que Racismo Estrutural? Silvio de Almeida, uma das referências sobre o tema no país, define que “todo o racismo é estrutural porque o racismo não é um ato, é um processo em que as condições de organização da sociedade reproduzem a subalternidade de determinados grupos que são identificados racialmente”.

“O grande valor do conceito de racismo estrutural é a compreensão de que o racismo não é um desvio da estrutura, mas sim, a própria estrutura. É a ética pela qual se fundamenta de maneira estruturante as relações desiguais entre pessoas brancas e pessoas negras, ou indígenas”. A fala é de Bruna Rocha, pesquisadora da Semiótica Antirracista.

Falar que o racismo é estrutural tornou-se moda, mas é preciso tirar as consequências práticas e políticas desse conceito. Como as duas citações acima mostram, o racismo é base, fundamento, da dinâmica da sociedade capitalista brasileira. Isso significa, dentre outras coisas, um brutal processo de desumanização da população negra e redução da empatia com nosso sofrimento e dor. O rosto da fome é o rosto de uma mulher negra e mãe solteira – mas esse rosto comove?

A fome, a violência policial, a moradia precária, a falta de acesso aos direitos básicos, fatores que afetam a população negra, não provocam comoção e indignação geral. Ao contrário, no país que viveu mais de 300 anos de escravidão, ainda é comum se questionar se existe racismo hoje ou, em alguns setores da esquerda, falar que a questão racial é uma mera “questão identitária”. Se na esquerda brasileira é comum falar da fome como um drama que precisa de respostas, é mais raro entender a dimensão racial do fenômeno da fome e tirar as consequências políticas dessa constatação.

Que consequências políticas são essas? A questão racial é um elemento de totalização e compreensão universal de explicação do que é o Brasil e a nossa luta de classes. Não é uma “questão identitária” ou um “tema de nicho”. É um dos centros dinâmicos de reprodução do capitalismo brasileiro e suas mazelas. Logo, o antirracismo deve ser eixo estruturante de todo e qualquer projeto de esquerda/socialista/comunista/anarquista e afins.

Não existe “projeto nacional” sem o antirracismo no centro do debate. Não se trata, por exemplo, de termos uma secretaria de igualdade racial e pronto. Trata-se, isso sim, de pensar a dimensão antirracista de todas as políticas públicas. Antirracismo passa pela reforma agrária, segurança e soberania alimentar e combate à fome; passa pela democratização da mídia e recuperação do investimento público na cultura; passa pela defesa das nossas empresas estatais – em particular a Petrobras -, recuperação de direitos trabalhistas, fim do teto de gastos e das políticas de austeridade, etc.

A luta contra a fome é uma prioridade máxima da nossa conjuntura. Mas essa prioridade precisa ser encarada com concretude. A fome não é apenas a falta de renda suficiente para comprar os alimentos. Essa, sem dúvida, é uma das dimensões do problema. Mas a fome se liga diretamente com a concentração de terras; a produção não de comida, mas sim de commodities para exportação; o domínio dos grandes monopólios capitalistas sobre o orçamento público; os ataques e tentativas de extermínio contra a população indígena, camponesa e quilombola; a destruição ambiental e a total falta de incentivo à agricultura baseada na agroecologia; a captura de órgãos como a Embrapa pelo agronegócio e muitas outras mazelas.

Em suma, a fome responde a um processo de duas dimensões interligadas: a falta de emprego e renda de milhões de brasileiros – sendo a maioria a população negra – para comprar comida e a estrutura produtiva agrária do país, cada vez mais concentradora, anti-meio ambiente, antipopular e antinacional.

O que defendemos? Um programa radical de combate à fome que seja antirracista, baseado em uma reforma agrária profunda fundamentada na agroecologia e em um modelo de desenvolvimento que coloque a preservação da natureza como uma de suas preocupações centrais, afastado da lógica capitalista do lucro a qualquer custo.

Temos força política para colocar em marcha, no Brasil e em Pernambuco, esse programa? Hoje, no imediato, não. Mas estamos construindo essa força política. E nesse trabalho, seu voto é parte do processo. Vote em candidaturas que tenham compromisso radical com a luta antirracista e saibam que esse país não tem futuro enquanto a questão racial – e o antirracismo revolucionário – não for o centro do debate público.

*Educador e comunicador popular, professor e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB). -candidato a governador de Pernambuco nas eleições de 2022.

**Militante do movimento negro e presidente do diretório estadual do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em Pernambuco.

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