Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Crédito: Maya Santos/Portal Afoitas
Por Maya Santos, do Portal Afoitas*
Projeto Redação Nordeste**
Percorrendo as ruas largas e os becos estreitos que compõem a comunidade do Entra Apulso, na Zona Sul do Recife, é possível notar uma transformação no cotidiano das pessoas que habitam o lugar. Marcado por um histórico de resistência, o território, onde vivem quase 2,5 mil habitantes, vivencia mudanças que, além de aquecerem a economia local, transformam a mentalidade da população tendo a agroecologia como promotora do bem-viver.
O coletivo Chié do Entra atua como disseminador de estratégias sustentáveis que proporcionam novas narrativas para a comunidade por meio de ações que envolvem compostagem urbana, fabricação de sabão e detergente ecológicos, intervenções em áreas esquecidas pelo poder público, palestras e formações.
Atuando há pouco mais de três anos, o grupo formado por 13 pessoas negras foi fundado a partir da necessidade de resolver um problema que chegou com o saneamento básico na favela do Entra Apulso: os entupimentos causados pelo óleo de cozinha nas encanações.
Movidos por uma ideia, estudos e muitos testes, surgiu uma solução simples e criativa para minimizar os impactos do descarte inadequado de óleo de cozinha: a produção de sabão e detergente ecológicos.
“Eu basicamente não tinha noção de como era o descarte desse óleo, pois antes a gente deixava aqui (na loja) e depois uma pessoa levava, mas aí eu não sabia o destino que ia ter. Agora sabemos o que está sendo feito com esse óleo, que acabava sendo jogado no lixo”, afirma o morador Maximillian Marinho, de 22 anos, atendente na LM Doces e Salgados.
Ele explica que a iniciativa proporciona uma forma de consumo inteligente e sustentável para a comunidade em que trabalha e vive. Além desse estabelecimento, outros empreendimentos e outras pessoas da região participam do sistema de doação do óleo de cozinha, ingrediente principal para a fabricação do sabão, do detergente e da pasta de limpeza. Em troca, recebem os produtos confeccionados pelo Chié do Entra.
A coleta é realizada todas as quintas-feiras pela manhã. Ao chegar à sede do coletivo, começa o processo de confecção do sabão. Após alguns dias de cura, ele fica pronto para uso doméstico. Desde que iniciou as atividades, o coletivo já coletou seis mil litros de óleo e fabricou 50 mil barras de sabão. Destas, metade foi distribuída na própria comunidade no sistema de troca com o óleo usado.
Em entrevista ao Portal Afoitas, Roni Paixão, de 29 anos, explica como começou a sua atuação na comunidade em que nasceu e foi criado. O Instituto Shopping Recife iniciou um projeto chamado Pulsa Bairro, que tinha como um dos eixos principais o meio ambiente. Com isso, moradores passaram pela formação de agentes ambientais comunitários, tutorados pela Associação Kapiwara, organização que atua em comunidades com agroecologia urbana, educação e comunicação popular.
“Em algum momento, vimos a necessidade de criar o coletivo. Então, em abril de 2021, já configurado como um coletivo de agroecologia comunitária, fechamos com o Instituto Shopping um contrato de prestação de serviço. Tivemos a oportunidade de ser um coletivo comunitário com fonte de renda e isso possibilitou uma maior dedicação no nosso território, trabalhando especificamente com gestão de resíduos e educação ambiental”, detalha Roni.
Com uma atuação que pensa na longevidade da iniciativa, o grupo interage com crianças, jovens e adultos da própria comunidade. Ao aproximar as pessoas das ações por meio de relações afetivas e de conexão com o território, o coletivo objetiva despertar e desenvolver o sentimento de pertencimento na população local.
“De modo geral, os jovens e as crianças participam das oficinas e das rodas de conversa promovidas pelo próprio Coletivo Chié, assim como de mutirões”, explica a integrante Ranielly Paixão, de 27 anos. Sua fala retrata com exatidão a relação da juventude com o território, que é replicada para diversas pessoas na comunidade e em várias faixas etárias.
Em relato sobre o mutirão para construção de uma nova praça na comunidade, Ranielly conta que é papel do coletivo “fazer uma soma em rede e realizar o convite para que eles (jovens e crianças) se integrem e participem das ações”.
A força do coletivo Chié do Entra reside na dedicação de seus integrantes e aglutina cada vez mais pessoas. Os irmãos Ana Maria da Silva Bezerra, 47 anos, e José Fabiano, de 38 anos, sentiram o impacto das inovações que vêm acontecendo na comunidade e se tornaram agentes multiplicadores.
Ana explica que fazer parte do coletivo mudou desde a percepção sobre o território que habita até a dinâmica de sua vida. “Para mim, é tudo mágico, o sabão, a compostagem, essas praças que a gente fez em maio. Sou de fazer tudo, mas, no jardim, eu me realizo, lá é como se eu saísse do planeta. Quando eu estou lá dentro, só sou eu e o jardim”, compartilha ela sobre sua vivência na praça Evandro Cavalcanti, na divisa entre o Shopping Recife e a favela.
Além do impacto ambiental por meio de ações que alteram o cenário pouco verde da comunidade para um local mais confortável e sustentável para os moradores e as moradoras, Ana enfatiza a inclusão de pessoas com Síndrome de Down, como é o caso de José Fabiano.
“É importante para cuidar mais do meio ambiente e para ter mais inclusão, tiro por ele (José Fabiano) e tem Wilson também. É importante para as outras pessoas verem que, se a gente pode, eles também podem mudar a comunidade deles”, comemora.
O cultivo de plantas medicinais compõe o leque de estratégias de conhecimento ancestral compartilhadas no coletivo e que reverberam na comunidade. Moradora do Entra Apulso há 35 anos, Vilma Barros, de 64 anos, é uma das cuidadoras da Farmácia Viva, uma horta com plantas medicinais construída para atender a comunidade bem ao lado do posto de saúde Jader de Andrade.
“O pessoal da comunidade frequenta mesmo a Farmácia Viva, onde temos as plantas medicinais. Tem boldo, tem rabo da raposa, que serve para coceira, tem esse capeba e tem até cana-de-macaco, que é para os rins, sabe? Aí o pessoal tira e faz chá e banhos”, diz.
Com um olhar de quem semeia um futuro mais sustentável, a compostagem é caminho de educação agroecológica na prática, principalmente para as crianças. Prova disso foi a atividade promovida na Semana do Meio Ambiente, Zeis do Entra Apulso, lançada no mês de junho de 2023 em toda a rede escolar da comunidade. Zeis é a sigla para Zonas Especiais de Interesse Social.
“Durante a atividade, os alunos coloriram suas tampinhas com emojis e gravatinhas e coloram em seus lápis e canetas. Debatemos sobre a separação dos resíduos e como eles contribuíram para que mais de 10 mil tampinhas não fossem descartadas de modo incorreto”, traz relato nas redes sociais do Chié.
Além dessa ação, parte das tampinhas recolhidas foi destinada ao projeto Tampinhas Solidárias. Lá elas foram recicladas e revertidas em recursos destinados aos beneficiários do Grupo de Apoio à Criança Carente com Câncer de Pernambuco (GAC-PE). Esse é mais um caminho das transformações tocadas pelo coletivo, que realizou essa atividade em parceria com o Instituto Shopping Recife e a Associação Kapiwara.
A compostagem também é um braço educacional para alcançar e envolver as crianças e os adolescentes. Através da iniciativa permanente na comunidade, o coletivo já detectou mais de nove toneladas de resíduos orgânicos entre composteiras caseiras (146 famílias) e pedagógicas (escolas, instituto e creche) e nas composteiras de beco.
Em 2010, a Lei 12.305/2010 instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos, criada para estimular a redução de geração de resíduos, reutilizando, reciclando e promovendo o tratamento, assim como a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos. Uma responsabilidade compartilhada entre poder público, empresas e sociedade na gestão dos resíduos. Atualmente, no Brasil, menos de 2% dos resíduos sólidos urbanos são destinados para compostagem.
Recife também conta com um Plano de Resíduos Sólidos para a Região Metropolitana, atualizado em 2018, no então governo de Paulo Câmara (ex-PSB). De acordo com os dados, a cidade gerou até 2014 cerca de 836.640 mil toneladas de resíduos sólidos.
Em 2023, por meio do programa municipal Tá Arrumado, mais de 590 mil toneladas de resíduos domiciliares foram recolhidos no Recife. Questionada sobre as medidas socioeducativas, a Prefeitura do Recife, sob comando de João Campos (PSB), explica sua estratégia para alcançar a população.
“A Prefeitura do Recife erradicou 421 pontos críticos de lixo na cidade, realizou 65 reuniões comunitárias e ações socioeducativas, plantou 4.047 mudas em novas jardineiras, instalou 80 placas de sinalização para sensibilizar os moradores sobre a questão dos resíduos. Além disso, 40 painéis de arte urbana e/ou pinturas com brincadeiras lúdicas foram criados, especialmente voltados para as crianças, incorporando temas ambientais e contribuindo para a conscientização e embelezamento da paisagem urbana”, detalha a gestão a Afoitas.
Saber ouvir e repetir as boas práticas é o diferencial do Chié do Entra. Atuando na comunidade do Entra Apulso, o movimento do coletivo reverbera não somente na Região Metropolitana do Recife. O grupo foi selecionado para participar do 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia, um momento importante para visibilizar as ações na comunidade.
“Voltamos com mais ideias de como continuar nosso trabalho aqui na favela”, adianta Roni, que, junto com o coletivo, aspira consolidar cada vez mais boas práticas de preservação do meio ambiente construindo um legado para as próximas gerações.
No entanto, antes mesmo de participar de um dos eventos mais importantes para a agroecologia, o coletivo obteve reconhecimento por meio da premiação Periferia Viva. A premiação recebeu mais de 1,3 mil inscrições de iniciativas de todo o Brasil. Dos 54 contemplados, o coletivo Chié do Entra ocupa o 12° lugar do Nordeste. A honraria foi realizada pelo Ministério das Cidades através da Secretaria das Periferias.
Em entrevista, Rafaela Maria, de 31 anos, estudante de serviço social e integrante do grupo, relembrou como a colaboração em equipe num mesmo objetivo contribuiu para essa conquista, que potencializa o trabalho do coletivo no Entra Apulso. Com tom de celebração, Rafa, como é chamada, reforça que “esse prêmio chega agora para a gente pensar e sistematizar todo o trabalho que está sendo feito até para o futuro. Pensar um pouco no presente e pensar um pouquinho no futuro”.
Destacando a importância do protagonismo comunitário, ela reforça que a compreensão dessa construção faz o coletivo entender que é possível estar em outros espaços e alcançar mais pessoas com as ações de forma efetiva, mas não só para a comunidade como para outras comunidades ao redor e, quem sabe, no mundo.
“Tem um significado muito especial, o prêmio é poder conectar também todos esses trabalhos que estão sendo feitos em vários territórios e compreender que a gente não está só”, finaliza.
*O Portal Afoitas surge como um portal interessado em revelar as histórias escritas por jornalistas negras e indígenas, cis ou trans, como forma de ir na contramão de redações que se espalham pelo país, formada majoritariamente por pessoas brancas e cisgênero masculino.
**Quem são, o que pensam e o que fazem jovens ativistas do meio ambiente de territórios periféricos, rurais e ribeirinhos do Nordeste? É com essa provocação que o projeto Redação Nordeste publica a série especial de cinco reportagens “Jovens ativistas socioambientais do Nordeste”. Participam deste trabalho conjunto as organizações de jornalismo independente Afoitas (PE), Conquista Repórter (BA), Mídia Caeté (AL), Ocorre Diário (PI) e Mangue Jornalismo (SE).
Enquanto o aumento da temperatura provoca efeitos mais rápidos sobre o planeta do que as decisões mundiais para atenuar a crise climática, projetos inspiradores se fortalecem em diversos territórios por uma questão de sobrevivência. Representando as populações mais atingidas pela crise e pelas injustiças socioambientais, jovens marcam presença e assumem a linha de frente para transformar o lugar onde vivem. Nesta série coletiva, você vai conhecer a história e a capacidade de mobilização e organização da juventude e de organizações e movimentos locais.
A Redação Nordeste é a união de organizações de jornalismo independente de oito estados nordestinos, que consolida um trabalho cooperativo, integrado e aprofundado de jornalismo com foco nas pessoas. Esta rede nasceu em 2023 e recebe o apoio da OAK Foundation e International Fund for Public Interest Media (Ifpim).
Edição e mentoria de Raíssa Ebrahim, da Marco Zero
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.