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A frase que dá título a esta reportagem é do professor de História e youtuber Flávio Muniz. Ele sabe que o ex-presidente não está sendo julgado pelos crimes contra a saúde pública durante a pandemia. Mas, para quem perdeu parentes e amigos ou sofreu em uma UTI infectado pela covid-19, como é o caso do professor, o julgamento retomado hoje no Supremo Tribunal Federal (STF) tem um significado adicional, que não consta da denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet.
Muniz e as pessoas que compartilham essa dor aguardam uma possível condenação também como uma forma de punir o ex-presidente por incitar o descumprimento das regras sanitárias, prevaricação, charlatanismo, uso irregular de verbas e infração de medidas sanitárias. Como essas acusações foram arquivadas pelo ex-procurador-geral Augusto Aras, Jair Bolsonaro nunca poderá ser julgado por ajudar a propagar a doença que matou 700 mil pessoas no Brasil.
“Anistia é não olhar, é esquecer. Eu me dou ao direito de não esquecer porque eles não podem se sentir confortáveis com nosso esquecimento”, desabafa Muniz, doutorando pela Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais.
Responsável pelo canal Caçador de Histórias, especializado em contar a história dos povos africanos, Muniz passou 31 dias na UTI – dos quais 17 em estado de coma –, no início de 2021, depois de ser infectado quando faltavam poucos dias para tomar a primeira dose da vacina. Meses depois, seu filho Lucas Khristen, de 24 anos, foi contaminado e acabou morrendo no dia 13 de julho. É por isso que ele não se permite esquecer.
Também é por isso que ele considera como um ataque covarde o esforço do governador bolsonarista de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de articular o centrão para arrancar a anistia do Congresso Nacional.
Em seu perfil pessoal, Muniz espera que a 1ª Turma do STF não ceda às pressões da extrema-direita. “Desejo que a condenação seja a mais dura. Mas a pena dele nunca será proporcional à minha: viver o luto que não acaba, sepultar meu filho sabendo que não foi acaso, mas política deliberada de morte”.
Em entrevista para a MZ, o professor contou que faz questão de acompanhar não apenas o julgamento, como todas as etapas do processo contra o ex-presidente e os demais integrantes de seu governo que planejaram o golpe de Estado. E isso o faz reviver tudo o que passou em julho de 2021.
É disso que Flávio Muniz se recorda:
Eram 10h55 da manhã, o telefone toca. E eu conhecia aquele tipo de ligação, porque era muito comum no hospital a gente ouvir isso. Os médicos ligarem pra família… a assistente social só ligou e falou assim pra mim: ‘Flávio – ela já me conhecia, todo mundo lá me conhecia, já sabiam da minha história – a doutora pede pra você vir aqui urgentemente no hospital, pra resolver um assunto com você’. Aí, na hora que ela falou assim, eu só falei ‘ah, tá’.
Desliguei o telefone… lógico, o chão fugiu dos meus pés na hora. Chamei minha esposa, disse: ‘se arruma, nós vamos pro hospital. Acho que o Lucas não resistiu’. Ela falou: ‘não, Flávio, ele tava bom ontem, ela falou que ele ia andar hoje’. Eu falei: ‘não, não, não é isso’. Não me lembro de como fiz essa viagem aqui de casa até o hospital. Na hora que eu cheguei no hospital, a assistente social não me falou nada, ela só segurou no meu braço, minha esposa começou a chorar, aí fomos indo.
Nós subimos, foi no terceiro andar da UTI, fomos lá, chegamos no terceiro andar, fiquei na salinha de espera da UTI, eu já tava, assim, os olhos cheios d’água, já chorando. Na hora que a médica chega, ela me olha, e ela ajoelha no chão, eu tô chorando, eu ajoelho junto com ela, ela fala pra mim: ‘eu fiz o que eu pude, eu fiz o que eu pude…’
Nem quis saber o que tinha acontecido de fato na hora. Eu falei: só quero ir lá ver ele. Eu só quero ir lá ver ele. Aí eles me deixaram, eu fui lá, cheguei lá, eu abracei ele, ele tava enroladinho no tecido, no lençol da cama, como eles arrumam o corpo, rosto quietinho, e eu abracei ele. Fiquei uns cinco, dez minutos ali, falando tudo com ele, sabe, eu acho que muita gente ora a Deus, aquele dia eu orei ao meu filho, pra ver se ele me ouvia. Foi um momento muito especial pra mim”.
Flávio Muniz era evangélico; hoje, aos 49 anos, se considera um cristão desigrejado, ou seja, sem igreja. E é impressionado em saber que o filho, tão parecido fisicamente com ele, morreu com uma cicatriz nas costas exatamente igual a uma que marca seu próprio corpo, resultante de drenos colocados no mesmo ponto quando a doença agravou.
“Fui eu quem escolheu e comprou o berço dele, fui eu quem escolheu e comprou a urna funerária dele”, contou o emocionado youtuber. As manifestações bolsonaristas no 7 de setembro o encheram de indignação: “Aos que choram por Bolsonaro, mas nunca derramaram uma lágrima pelos enlutados: saibam que somos nós que já estamos condenados”.
Muniz recorre a um conceito africano para auxiliá-lo nas reflexões sobre a importância histórica do julgamento que ocorre no STF: sankofa.
“Trata-se de um pássaro que anda para frente, com os pés bem firmes no chão, mas que está olhando para trás, nos ensinando a recordar o passado para construir o futuro”, explica. Para ele, a anistia ou a absolvição de Bolsonaro seria o oposto disso, seria o mesmo que apagar a história.
Nas redes sociais, centenas de outras vítimas e parentes de vítimas da covid vêm fazendo postagens pedindo a condenação de Bolsonaro e impulsionando uma mobilização contra a iniciativa para anistiá-lo:
Essa mulher deu voz a milhões de brasileiros e brasileiras, tem todo meu respeito. pic.twitter.com/bsxuzVGO9x
— Peixoto Peixoto (@AdnanvpPeixoto) September 5, 2025
Hoje o Brasil acerta as contas com a sua história. Pela primeira vez, um ex-presidente que tentou dar um golpe senta no banco dos réus. Por mais de 700 mil mortes por COVID-19, sem vacina. Pelo STF vandalizado. Por Dilma Rousseff, por Rubens e Eunice Paiva. Por todas as vítimas…
— Deyvid Bacelar (@deyvidbacelar) September 2, 2025
🇧🇷 Bolsonaro não deveria ser julgado apenas por atentar contra a Democracia, o Presidente eleito, os 3 poderes. Ele também deveria ser julgado pelos crimes que cometeu na Pandemia da COVID 19 contra o povo brasileiro @STF_oficial pic.twitter.com/IREmsgMkKa
— 🪶Porã ( Humanista) 🏹🌳 🐆 (@LilliunAzules) September 9, 2025
Pelas 700 pessoas mortas pela COVID-19, pelo luto do taxista Márcio Antônio, que havia perdido seu filho de 25 anos, e pelas famílias brasileiras divididas por essa polarização estúpida
Fora, Bolsonaro! 🇧🇷 pic.twitter.com/5IlzrOII6e— Paulo Menezes (@paulonmenezes) September 2, 2025
Eu nunca vou esquecer o sorriso e o brilho nos olhos de Bolsonaro no dia que houve 4 mil mortes por covid.
Ele vai pagar por tudo o que fez pra milhares de famílias brasileiras.Não tenho dó desse desgraçado.
SOBERANIA É JUSTIÇA
HUGO MOTTA SEM ANISTIA
BOLSONARO CONDENADO pic.twitter.com/L0i946tR7p— Fran Nordestina 🌵☀️ (@FranNordestina) September 2, 2025
Bolsonaro está sendo julgado por tentativa de abolição do Estado de Direito, Golpe de Estado e formação de organização criminosa, mas deveria estar sendo julgado por isso:https://t.co/koe2PLxusl pic.twitter.com/YL5eGLipGo
— Leo The Red Thinker (@leokbelo13) September 5, 2025
Jornalista e escritor. É o diretor de conteúdo da MZ.