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A cruzada religiosa do segundo turno

Marco Zero Conteúdo / 20/10/2022

Arte: Ivson Santo

Por Bia Pankararu

Estamos a pouco mais de uma semana do segundo turno das eleições e, numa sociedade cada vez mais fundamentalista, os noticiários e campanhas mais parecem uma cruzada cristã e religiosa para ver quem realmente tem o Todo Poderoso Deus escalado em seu time de governo. Trazer religião e política tão emaranhadas, onde a gente não consegue ver quando começa uma e termina a outra, sempre foi um anúncio certo de retrocesso democrático.

Bolsonaro vem numa investida feroz e descontrolada tentando vincular toda e qualquer manifestação religiosa como palco de campanha eleitoral. Ele esteve no último dia 8 no Círio de Nazaré, a maior festa religiosa do mundo, no estado do Pará, onde participou da romaria fluvial e em nenhum momento chegou perto da imagem de Nossa Senhora de Nazaré. Sua presença causou muito incômodo, tanto aos fiéis, à classe política e à própria Igreja Católica. A Arquidiocese de Belém (PA) lançou nota alegando que não permitiria qualquer utilização de caráter político ou partidário junto às atividades da celebração, nem convidou qualquer autoridade política para os festejos, sejam políticos de esferas municipais, estaduais ou federal.

Dito católico, mas atuante junto aos evangélicos, Bolsonaro seguiu usando festas tradicionais como agenda de campanha. Sua passagem pela cidade de Aparecida no dia 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, causou mais que incômodo, causou um verdadeiro tumulto, um show de horrores e ataques à imprensa e ao arcebispo Dom Orlando que, em sua pregação, disse que deveríamos ter uma “pátria amada, e não armada”. O que se viu em seguida, tanto em Aparecida, quanto em várias igrejas pelo país, foram ameaças, xingamentos, ofensas, missas interrompidas por apoiadores de Bolsonaro que entendem como “discurso de esquerda” quando os padres trazem temas como fome, caridade, justiça, verdade, amor e paz. Ataques em missas e nas redes sociais nos últimos dias estão intensos. O sentimento lunático, absurdo e descabido dos bolsonaristas já chegou ao nível de termos o Cardeal Dom Odilo tendo de explicar que o vermelho do traje que ele usa não tem a ver com o comunismo, mas é a cor tradicional das vestimentas dos cardeais.

A onda de violência nas igrejas não está apenas nas católicas. Chegam à mídia inúmeros relatos de intimidação e perseguição nas igrejas evangélicas, onde pastores pregam em nome de Deus e do “Messias”. Aqueles que se manifestam contrários são coagidos, ameaçados e têm até de deixar de frequentar a mesma igreja. Pastores julgando quem seriam os bons os maus cristãos a depender de em quem votariam para presidente nada mais é que o cabresto pela bíblia. Mas não podemos colocar todos os pastores e igrejas no mesmo balaio. Uma onda de revolta entre os fiéis se intensificou nos últimos dias. A adoração a Bolsonaro, cega e inquestionável, escancarou um sistema cruel de domínio pela fé e crença das pessoas e esse viés segue forte na corrida eleitoral, inclusive, também na campanha de Lula.

Foram diversas fake news da campanha bolsonarista alegando que, se eleito, Lula fecharia igrejas, perseguiria cristãos, implantaria banheiros unissex nas escolas, ideologia de gênero e todos os delírios possíveis, mas a resposta veio com um “recordar é viver”: em 2003, Lula sancionou a lei de liberdade religiosa; instituiu o Dia Nacional da Marcha para Jesus em 2009; em 2010 sancionou outra lei criando o Dia Nacional do Evangélico. Ou seja, não existe nenhum fundamento para alegar que os evangélicos e cristãos correm algum tipo de perigo, nem hoje, nem na história do nosso país.

Se olharmos nossa história, um dos primeiros atos da invasão portuguesa foi, justamente, fincar uma cruz em uma terra indígena, celebrar uma missa e assim iniciar o processo de catequização, apagamento e perseguição às culturas e crenças que já existiam aqui. Em 1500, a igreja justificava a escravização, perseguição e execução dos indígenas alegando que não teríamos alma, logo, seríamos como animais aos olhos europeus. A cruzada cristã em 1500 dizimou dezenas de povos e culturas, escravizou e matou milhares de indígenas, violentou, marginalizou e criminalizou nossos modos de vida e essa investida segue até os dias de hoje, de outras formas e com outros nomes, mas a colonização ainda está em curso.

São 522 anos em que o cristianismo chegou nessas terras e, desde então, não houve um momento da história em que a igreja e os preceitos religiosos cristãos não foram dominantes em termos de poder e decisões políticas. Não consigo aceitar a ideia de que exista alguma ameaça à liberdade dos cristãos, pois essa liberdade sempre foi e segue protegida e vigiada de perto pelo Estado. Gente como eu, que vem de tradições religiosas racializadas, sejam indígenas ou afro-brasileiras, sabe desde cedo o que é ter sua religiosidade perseguida e demonizada. A violência contra terreiros de candomblé, centros de umbanda, territórios indígenas e suas tradições, violências que acontecem há séculos, está no DNA da nossa sociedade onde se aceita um Jesus de olho verde e se demoniza Exu e Tupã, o que é um grande equívoco, afinal, o Diabo não existe em nenhuma das religiões de matrizes africanas e indígenas, apenas na cristã.

Não existe qualquer possibilidade de enfraquecimento das instituições religiosas cristãs, mas as instituições democráticas estão enfraquecidas há tempos quando não conseguimos ter, de fato, um Estado laico. Quando temos a bíblia mais consultada do que a Constituição para nortear e fundamentar aspectos políticos que afetam toda população, independente da religião a que pertença, temos um atraso significativo na nossa tão recente democracia. Ter a religião tão enraizada na nossa sociedade dificulta avanços sociais importantes em respeito à igualdade de direitos étnicos, raciais, sexuais, reprodutivos, de gênero e na ciência. Teremos muito caminho pela frente para chegarmos perto de uma classe política menos fundamentalista, ainda mais num país que foi “fundado” em torno de uma cruz.

Seguiremos para o segundo turno no próximo dia 30 com a certeza de que nem Deus e nem o Diabo irão declarar seus apoios políticos. Enquanto isso, vamos ficando do lado da verdade, do amor, do respeito e da coerência. Se formos pautar projeto político com os valores cristãos, sem dúvida, Lula é o candidato que traz o olhar do povo para o povo, a vontade de transformar, de novo, a vida da classe trabalhadora e encher de esperança o coração daqueles que acreditam num país mais justo e que respeite toda e qualquer crença. Seja com Deus, Buda ou Alá, seja com Exu, Malunguinho ou a Jurema, vamos tirar Bolsonaro da presidência e devolver ao Brasil a nossa fé mais genuína, que é a fé na nossa gente de bem, honesta, da gentileza e do acolhimento. Profetizei.

*Bia Pankararu tem 28 anos, é mulher indígena, sertaneja, mãe de Otto, LGBT+, técnica em enfermagem e produtora cultural e audiovisual. Ativista pelos direitos humanos e ambientais. Comunicadora da rede @povopankararu.

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