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A urna eletrônica como espelho de nós mesmos. Em cada voto, o reflexo do Brasil que queremos

Marco Zero Conteúdo / 22/09/2022

O ex-presidente Lula no lançamento do movimento "Vamos juntos pelo Brasil", em maio de 2022. Crédito:: Ricardo Stuckert

Por Bia Pankararu*

Quero trazer, de início, a proposta de imaginar a urna eletrônica como um espelho de nós mesmos. Quando estivermos ali, sozinhos na hora de votar, teremos cinco votos depositados no futuro que desejamos para o país. Para além da representatividade e se enxergar no seu voto, você entende o projeto de seu candidato ou candidata e sabe, ao menos, qual partido político, que bandeira e interesses receberão seu voto? Essas eleições darão rumos significativos para nossa jovem democracia, pois desde a Constituição de 1988, as instituições democráticas nunca estiveram tão ameaçadas.

Estamos há dez dia das eleições e estou certa que muita gente ainda não entendeu que estamos elegendo, também, qual plano de sociedade queremos viver nos próximos quatro anos, pelo menos. São tempos sombrios para a democracia brasileira: de um lado o autoritarismo e o vexame internacional, do outro, o convite ao diálogo e quem já fez o brasileiro se orgulhar do Brasil aqui e no mundo.

Até parece uma escolha fácil, mas há quem não enxergue a barbárie que está em curso. É sobre escolher um lado da história e fazer um verdadeiro pacto com a civilidade e com compromissos sérios em um modelo de Governo que nos é possível, ao menos, tentar dizer o óbvio. Sem meias palavras, é preciso mais que vencer Jair Bolsonaro nas urnas, é preciso vencer o bolsonarismo e o projeto de ódio que encontrou campo fértil nos últimos anos, principalmente com aqueles ditos “cidadãos de bem”.

As campanhas eleitorais se intensificam, assim como a violência político-partidária. Até quando vamos normalizar e dar palco para manifestações criminosas, de ataques ao Poder Judiciário e à Justiça Eleitoral, manobras nas polícias e milícias, 51 imóveis em dinheiro vivo, rachadinhas e alguns 100 anos de sigilo em praticamente tudo. Não é sobre corrupção, é sobre chegarmos aqui, com a fome de volta aos lares brasileiros, uma pandemia que escancarou uma saúde em sucateamento, desemprego, cortes seguidos na educação, nas universidades e para a ciência, bloqueio para o setor cultural, cortes de orçamento em tudo que é prioridade e um belo pacote de Orçamento Secreto para comprar deputados com emendas parlamentares. Tem gente na fila do osso, mas o projeto Bolsonarista ainda consegue ter mais de 30% de intenções de voto em todo país. Não é só sobre política ou projeto de governo, muito menos sobre corrupção, é sobre identificação.

O bolsonarismo trouxe à tona uma sociedade machista, racista, homofóbica, falso moralista e abençoada pela legitimidade branca que permite desafiar os limites do “direito de liberdade de expressão” com a prática de crimes. Passeatas com cartazes pedindo a volta do regime militar, incitando o AI-5, cartazes autorizando o fechamento do Supremo Tribunal Federal e uma infinidade de ameaças à democracia seguem fomentadas, alimentadas e permitidas em plena luz do dia sob a proteção do Estado. Recentemente, apoiadores de Bolsonaro fizeram outdoors com o chamamento “cuscuz clã’’. No Brasil onde quem mais morre são as pessoas racializadas, seja pela mão da polícia ou pela ausência do Estado, a política neofacista de Bolsonaro se enraíza na sociedade tranquilamente, enquanto quem luta por justiça social sofre a repressão da polícia, é tratado como terrorista e uma ameaça à segurança pública. A verdadeira ameaça vem nas entrelinhas das brincadeiras irresponsáveis que um Presidente da República não poderia estar fazendo. Que patriotismo é esse que rompe os limites constitucionais?

Nunca foi tão perigoso se manifestar politicamente, pois do outro lado pode ter um pró vida que, facilmente, se sinta legitimado a agredir e até tirar a vida de alguém em nome de Deus, da família e dos bons costumes. Queria eu que fosse um exagero ou uma mera suposição, mas desde o assassinato de Mestre Moa do Katendê, morto a facadas numa briga de bar em 2018 por declarar voto no PT, é assombrosa a crescente violência política. Só na primeira metade de 2022, já se somam 40 mortes relacionadas à violência política, segundo o Observatório da Violência Política e Eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (OVPE-Unirio). Na última quarta-feira, dia 21 de setembro, um apartamento com a bandeira do PT foi alvo de tiros durante a madrugada, o prédio fica no bairro de Casa Amarela, Recife. A motivação dos disparos está sendo investigada pela polícia civil, mas é assustadora a possibilidade da motivação ser política, e não me surpreenderia se for.

A escalada da violência é generalizada. No último mês, ao menos uma dezena de indígenas foi assassinada em conflitos de território. São diversos casos de desaparecimento, estupro e assassinato de crianças e adolescentes, lideranças mortas em emboscadas, aldeias inteiras incendiadas e invadidas por jagunço, mas nada disso choca a sociedade. O sangue indígena está sendo derramado de norte ao sul, mas é o velório da Rainha Elizabeth que ocupa todas as manchetes e ao colonizador devotamos um luto mundial coletivo.

A vida de um indígena no Brasil parece valer menos que uma arroba de boi, uma saca de soja ou um punhado de ouro. Todo e qualquer povo está sob ameaça, mas como falei antes, o bolsonarismo é sobre identificação e há indígenas que se identificam com o discurso de progresso acima de tudo. Não é difícil encontrar conflitos internos nas comunidades tradicionais, principalmente nos espaços de liderança e poder. Historicamente, foram exatamente conflitos como esses que enfraqueceram e dividiram os povos, uma estratégia do colonizador de dividir e conquistar, mas, atualmente, a linguagem do colonizador é clara: invadir, destruir e tomar posse. Até quando?

O Brasil do samba, churrasco e futebol se transformou no Brasil da bíblia, da bala e do boi. A Constituição nos assegura um Estado laico, mas a bíblia se transformou em uma ferramenta para pautar leis e políticas públicas que afetam toda a sociedade. O tabu sobre educação sexual nas escolas e instituições, temas como aborto e direitos reprodutivos, planejamento familiar, assuntos tão complexos e que perpassam por milhares de vidas, não podem ser pautados por causa da religião e convicções morais de uma determinada parcela de parlamentares fundamentalistas. Somos o país que mais mata pessoas transexuais no mundo e um dos primeiros em registros de casos de homofobia. Uma política que se diz ser em defesa da família, mas exclui os diversos modelos familiares que também merecem respeito e proteção. Um governo que criminaliza defensores de direitos humanos e do meio ambiente, que persegue, coage e executa tantos como Bruno e Dom. Aliás, quem mandou matar Marielle e Anderson?

Todos os dias no noticiário um novo escândalo, uma tragédia, um novo ataque à democracia e um caso de vexame público com alguém de bandeira nacional na mão. Nos sentimos como se estivéssemos presos nas cordas, levando golpes seguidos, lutadores resistindo há quatro anos de desgoverno que geraram décadas de retrocessos em todas as áreas sociais e de garantia de direitos. Chegamos aqui ainda precisando virar voto para eleger o único caminho possível em 2022 que converse com o Estado Democrático de Direito. Com Lula liderando as pesquisas eleitorais, Bolsonaro segue acenando para o golpe, diz que não irá respeitar o resultado das urnas se não for eleito e poderá pedir revisão da contagem de votos. O envolvimento das Forças Armadas, que já era natural no processo eleitoral, mas foi enfatizado como fiscalizador para evitar alguma fraude, e todas as suspeitas colocadas sobre a segurança das urnas eletrônicas, é para desvalidar o processo que faz a eleição há 26 anos, que elegeu Bolsonaro em todos seus mandatos como deputado e presidente da República.

É chegado o momento de dar uma resposta contundente e retomar o brilho no olho e a esperança em dias melhores ainda no primeiro turno. Eleja quem defende a vida, o amor e liberdade, não aquela turma do “bandido bom é bandido morto” e assombrada pelo fantasma do comunismo. Vote em quem defende a posse de livros, não a posse de armas, acredite em um projeto com mais universitários que presidiários. Pense em cada voto como uma poupança a ser resgatada no cotidiano pelos próximos anos. Um voto é um investimento e não podemos mais investir numa política autoritária e fadada a ser lembrada como o pior governo da história brasileira.

*Bia Pankararu tem 28 anos, é mulher indígena, sertaneja, mãe de Otto, LGBT+, técnica em enfermagem e produtora cultural e audiovisual. Ativista pelos direitos humanos e ambientais. Comunicadora da rede @povopankararu.

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