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Crédito: blog da Agenda Cultural do Recife
Bastou este escriba que vos fala pegar um Nova Descoberta via Cruz Cabugá a caminho do centro do Recife, neste 1º de novembro, para que fosse por água abaixo o preconceito e a raiva contra muita gente que está incluída nos inacreditáveis 58.206.354 de eleitores e eleitoras do ex-militar que ocupa o Palácio do Planalto até 31 de dezembro. E o preconceito caiu porque sou bom de ouvir conversa em ônibus, meu ouvido é tão afiado para fuxicar que o busão nem precisa estar muito cheio.
Desde já, subtraí daquele total de votantes as duas mulheres que conversavam no banco atrás de mim, em todo o trajeto pelas avenidas Norte e Cruz Cabugá, passando pelo parque 13 de Maio, rua Princesa Isabel em direção à Guararapes. Elas votaram em Bolsonaro e já conversavam animadamente sobre política e os resultados da eleição quando embarquei.
Uma ressalva necessária: a repugnância àqueles bolsonaristas que aceitam esse rótulo permanece intacto, guardado em algum canto do fígado. Ou do coração, talvez. Contudo, acerta quem nos aconselha a não medir pela régua da infâmia todos que votaram no infame.
As duas senhoras iam conversando e eu, fingindo prestar atenção no celular, anotando tudo que dava. O papo era empolgante, revelador de um universo que não me pertence.
– Lá em casa só quem votou em Bolsonaro fui eu. Os meninos tudinho votaram em Lula. Foi uma gritaria danada que fizeram no domingo, foi tanta alegria que não achei ruim Lula ter ganhado, não.
A outra, que estava bem atrás do meu assento, emendou:
– Sabe Edvan, meu neto que vai me buscar na porta da igreja, o que mora comigo? Ele disse que ia votar em Lula. Eu aconselhei e pedi pra votar em Bolsonaro porque o pastor pediu. Quando ele chegou da votação, me disse todo desconfiado que tinha votado no 22. Foi nada! Quando a TV deu que Lula passou na frente ele saiu pra rua, correndo e gritando que nem um doido. Até bandeira escondida ele tinha debaixo do colchão.
Agora, atenção que vamos entrar no trecho mais, digamos, teológico do diálogo. Talvez seja o mais importante ou o que mais tocou (como isso não é reportagem, não tenho obrigação nenhuma de botar o mais importante no início):
– Eu acho que Lula já pagou o que tinha de pagar aqui na Terra. Foi pra cadeia, a mulher morreu, o netinho morreu, o irmão morreu. Se ele fosse ladrão, Deus não tinha botado ele no comando de novo. E se roubou, Deus já perdoou, não deve mais nada não. Se Deus não tivesse perdoado, não tinha ganhado do candidato da igreja.
– Eu disse pra meu marido um negócio parecido com isso. Se os dois chegaram no final tão perto um do outro, é que os dois tinham merecimento. Mas se ele ganhou com esse tantinho a mais, foi Deus quem deu esse pouquinho pra ele ganhar. Ele é o escolhido.
– Se ele fosse ladrão, ele tinha fugido do Brasil pra não ser preso. Tá vendo como ele tem muito amigo no estrangeiro? Se ele é ladrão devia ter muito dinheiro pra fugir e ficar na casa de um estrangeiro desses nos Estados Unidos.
– Mulher, pois agora tô achando que ele não tinha dinheiro nem pra fugir. E ele foi injustiçado. Por isso Deus escolheu ele agora.
– Ele não fugiu nem se escondeu.
– O que eu tô achando ruim é Bolsonaro estar se escondendo agora. E o pessoal dele tá fazendo uma arruaça grande, ontem fulana [ela disse o nome da filha, mas eu não peguei] tá morando em Ponte dos Carvalhos e fazendo faxina em Boa Viagem. Apois ela só chegou em casa ontem depois de meia-noite.
– Eu votei em Bolsonaro, queria que ele tivesse ganhado, mas no outro dia a gente de sair de casa pra ir trabalhar, a vida continua, tudo normal.
Elas desceram na Guararapes, uma parada antes de mim, deixando a impressão de que a vitória de Lula foi ainda maior do que a gente pensa.
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Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.