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Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo
Foi de supetão: o prefeito João Campos (PSB) postou nas redes sociais – “em primeira mão” – que o imenso terreno na avenida Dezessete de Agosto, na altura do número 2000, viraria um parque. Já havia até imagens de projeção da mais nova área verde da zona norte e um nome: Jardim do Poço. Alvo de disputas, processos judiciais e protestos há mais de uma década, o imóvel foi desapropriado na terça-feira passada (11) em nome da “utilidade pública”.
No terreno, ainda está o outdoor que anuncia ali a construção de um novo Atacado dos Presentes, um “empreendimento integrado com o bairro e a natureza – as 82 árvores serão preservadas”. Uma praça ou um parque nunca é demais em uma cidade como o Recife, mas há várias dúvidas sobre o projeto e críticas sobre as prioridades da prefeitura.
Uma pergunta óbvia que ainda não tem resposta é sobre quanto a prefeitura do Recife vai gastar com a desapropriação do local. São na verdade oito terrenos, que, juntos, somam mais de 12 mil metros quadrados, ou 1,2 hectare. Isso na avenida que cruza os bairros mais nobres da zona norte.
Questionada pela Marco Zero, a prefeitura do Recife não informou quanto estima gastar com a indenização da desapropriação. No Diário Oficial, consta que as despesas decorrentes da desapropriação vão sair da conta da secretaria municipal de Planejamento, Gestão e Transformação Digital. E que os possíveis débitos tributários dos oito imóveis que compõem o terreno serão abatidos do valor da indenização.
De acordo com a prefeitura do Recife, o parque só deverá começar a ser construído no próximo ano. No local, o vigia do terreno, que está lá há dois anos, afirmou que só soube que o terreno não era mais da empresa quando a polícia chegou, na terça-feira (11), com um ofício. A Marco Zero entrou em contato com o Atacado dos Presentes, mas não obteve resposta.
A professora do Laboratório da Paisagem da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Ana Rita Sá Carneiro lembra que o Recife, como um todo, tem poucos parques e de tamanhos diminutos. Ela celebra que a capital vai ter mais um parque, mas não deixa de reconhecer os privilégios dos bairros nobres. “As praças e parques no Recife surgem pela reivindicação dos moradores da área. poi assim como a Praça de Dois Irmãos, por exemplo, que está precisando de atenção. Há praça em frente ao antigo Aeroporto também, entre muitas outras”, diz.
Historicamente, não faz tanto tempo assim que se começou a reivindicar uso público para o terreno da Dezessete de Agosto, que é cercado de edifícios altíssimos. Só foi em 2019 que a vizinhança se uniu para não aceitar a construção do Atacado dos Presentes e, ao mesmo tempo, pedir um parque. Bairros nobres, como o Poço da Panela, têm mais poder de reivindicação. “A cobrança de moradores dessas áreas tem mais peso, disso sabemos. Cadê o parque da Tamarineira, por exemplo? Que é uma reivindicação mais antiga, já perto de Casa Amarela e que já teve até concurso para o que vai ser feito ali, mas segue sem nada”, questiona Ana Rita.
Em carta aberta, o Instituto dos Arquitetos do Brasil em Pernambuco (IAB-PE) critica as prioridades de investimento da Prefeitura do Recife sob a gestão de João Campos. “Enquanto bairros que concentram moradores de alta renda ganham equipamentos dignos com mobiliários de qualidade, localidades com população mais carente recebem pinturas em escadarias e muros. Essas intervenções figuram muito bem nas redes sociais, mas são literalmente superficiais”, diz um trecho.
O IAB-PE também cobra transparência sobre o processo de desapropriação. “O que mais nos surpreende é a divulgação da desapropriação já com imagens do parque, mas ainda sem diálogo e transparência sobre o processo. Ao decidir e agir dessa maneira, a prefeitura se afasta da sua função de mediar conflitos e distorções sociais. Na verdade, ela passa a amplificá-los. Ora, quais são as prioridades de uma cidade que tem a maioria da sua população vivendo em situação de vulnerabilidade?“
O arquiteto e urbanista Cristiano Borba, doutor em desenvolvimento urbano, lembra que o empreendimento do Atacado dos Presentes já estava com uma série de entraves para a sua construção. A Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), que fica a poucos metros do terreno, pediu em 2020 a ampliação da atual Zona Especial de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural do Poço da Panela (ZEPH nº 5) para incluir o campus Casa Forte da Fundaj e afirmou que a construção do Atacado iria prejudicar o processo tombamento do conjunto arquitetônico. Pouco depois, a Prefeitura do Recife revogou a licença prévia de construção do empreendimento.
Para Cristiano Borba, a desapropriação e a consequente apresentação do projeto foi brusca, deixando mais perguntas que respostas. “A questão é: por quê esse tipo de investimento? É estranho a prefeitura não negociar com o investidor. Não seria mais barato cobrar contrapartidas do que um investimento da própria prefeitura? Será que um armazém é tão vulgar a ponto de ser impossível conciliar com aquele perfil de vizinhança? Não é que a vida toda ali foi um terreno vazio, era um hospital. Por que de uma hora para outra fazer esse investimento, que não é barato?”, diz o urbanista, lembrando que há parques e praças próximos, como a praça de Casa Forte, o Jardim Secreto, o Parque Santana e o de Apipucos, que permanece sem uso, de portões sempre fechados.
Em 2019, Borba escreveu um artigo sobre a demolição da Casa de Saúde São José, que ocorreu em 2009.
Em nota, a Prefeitura do Recife afirmou que no último ano o procedimento de desapropriação foi realizado “mais de uma dezena de vezes nas mais diversas localidades da cidade como Areias, Campo Grande, Bongi, São José, Beberibe e Santo Amaro, entre outras, para contemplar a construção de diversos equipamentos públicos como unidades educacionais, o Hospital da Criança, as futuras obras de urbanização da Bacia do Pina e do Rio Tejipió, além da instalação de uma casa de acolhimento para pessoas idosas, entre outras obras”.
A prefeitura affirmou também que o Recife conta com mais de 660 áreas verdes, entre praças, parques e refúgios. “Apenas nos últimos dois anos, a Prefeitura requalificou 90 praças, além de fazer manutenção nos outros espaços, a exemplo da recém-entregue Praça da Infância, na Encruzilhada. A cidade também ganhou equipamentos novos desde 2021, como a segunda etapa do Parque das Graças, e haverá obras para um parque no Pina, que irá beneficiar, sobretudo, moradores das ZEIS Encanta Moça/ Pina, Brasília Teimosa e Ilha do Destino. Importante lembrar que o Programa de Requalificação e Resiliência Urbana em Áreas de Vulnerabilidade Socioambiental (Promorar), também prevê obras de urbanização em 40 diferentes comunidades da cidade do Recife e incluem espaços públicos de lazer como praças”.
Assim como o vigia do terreno, os moradores do Poço da Panela também foram pegos de surpresa pelas imagens do Jardim do Poço. Houve muita comemoração, claro. Era o que queriam há muitos anos: mantém o sossego e a paz do bairro, valorizando ainda mais as propriedades.
Mas o desenho do projeto não agradou a todos. O corte de árvores – a prefeitura afirmou que vai manter 69% da área natural, enquanto o Atacado dos Presentes dizia que não ia derrubar nenhuma das 82 árvores no terreno – foi um ponto de discórdia. A falta de pesquisa prévia com os futuros usuários do parque também é criticada por especialistas.
Os moradores, porém, estão confiantes de que o projeto pode mudar para se adaptar aos interesses da vizinhança. Já conseguiram o mais difícil, que era o disputadíssimo terreno. O advogado Elvânio Jatobá, que, lá atrás, deu início, junto com a Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco (OAB-PE), à Ação Civil Pública por conta da demolição da Casa de Saúde São José, acredita que será possível um diálogo com a prefeitura.
“Era uma burrice o Atacado construir ali. Não pode se jogar um trânsito de 3 mil, 4 mil veículos por dia em um bairro como o Poço da Panela, que não sustenta nem 5 mil veículos. A desapropriação foi uma medida sensata e positiva da prefeitura. O melhor é um parque. Muita gente que andava na praça de Casa Forte não anda mais, tem carro estacionado dos dois lados. Tem que ter uma pista de cooper bem feita, como tem no parque da Macaxeira. Não acho que a prefeitura precisa discutir com ninguém antes para fazer o projeto, mas se deve haver adaptações, discussões. Não tem problema. O importante é que será para a comunidade, para a coletividade”, afirmou o advogado.
Em nota, a Prefeitura do Recife afirma que o projeto apresentado “trata-se de uma concepção preliminar e contempla estacionamento, bem como mobiliário e equipamentos voltados para uma tendência urbanística internacional de nome 880 Cities, linha que entende que uma cidade cujos espaços públicos sejam pensados para pessoas de 8 a 80 anos é acolhedora para todos”.
Para a professora Ana Rita, os parques e praças funcionam melhor quando tem um pertencimento, a cara do frequentador. Foi assim com a concepção do Parque da Jaqueira e do Parque das Graças Lúcia Moura, que tiveram pesquisas – ou reivindicações – para o projeto. Na Jaqueira, havia no projeto inicial a construção de quadras poliesportivas. A população foi contra, pela preservação da área verde. No Lúcia Moura, houve pesquisa anterior para o desenvolvimento dos equipamentos para crianças pequenas. Vive cheio, sendo plenamente utilizado.
Ana Rita conta que, quando estava fazendo uma pesquisa no Parque Santana, ouviu de uma frequentadora que ali era um “parque sem dono”. “Ou seja, significa que é um parque que não tem a cara dos moradores, das pessoas que frequentam. Um parque precisa ter essa identidade com a vizinhança. Como a prefeitura anuncia a desapropriação e no mesmo dia já aparece com imagens do parque? tem que haver uma pesquisa, saber que uso o parque vai ter. Essa imposição padronizada de coisas já estabelecidas, eu acho errado”, afirma a professora.
Como mau exemplo dessa falta de escuta ela aponta o parque de Apipucos. “Ali era uma grande área onde não era para ter sido construídos aqueles prédios. O parque ficou praticamente isolado. Os moradores do Alto Santa Isabel mal frequentam. É um espaço cheio de concreto, que não tem o espírito do lugar porque não teve escuta da comunidade”, diz.
Nos dias após a notícia da desapropriação, a sociedade civil organizada apontou um caminho mais democrático. Não é o parque que a prefeitura e os moradores da área nobre querem, mas também não é o Atacado dos Presentes com tráfego de caminhões e barulho. É a ideia de que a o terreno tenha um uso misto: um parque e moradia popular, atendendo quem viveu por ali a vida toda.
A moradia popular seria destinada para as famílias da Zeis Vila Esperança, que fica a menos de um quilômetro do terreno. As mais de 300 famílias da vila serão removidas por conta da obra da ponte Monteiro-Iputinga. Apenas 75 famílias têm a promessa de receber apartamentos em um local próximo, um terreno de cerca de 3 mil metros quadrados — o equivalente a 25% da área do Jardim do Poço.
“É bem possível conciliar área verde pública com habitação popular para que mais pessoas removidas da Vila Esperança sigam vivendo a 10 minutos de caminhada do local. Para tal, da mesma forma que a Prefeitura já fez acertadamente para o Parque Capibaribe, esse processo deverá passar por um concurso público de arquitetura. Esse é o caminho rumo ao ponto de encontro entre transparência, qualidade urbana e compromisso social”, diz a carta aberta do IAB-PE.
Juntos, o Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), a CAUS Cooperativa e o Coletivo ZEIS Vila Esperança Resiste foram além. Na defesa da mesma proposta, fizeram uma projeção de como poderia ser o terreno com uso misto – e sem construir espigões, como os prédios vizinhos com mais de 30 andares.
Elaborada pela CAUS e pelo CPDH, a proposta conta com edifícios de apenas cinco pavimentos, preservando 8.800m² de área verde – ou 73%, mais do que os 69% do projeto da prefeitura – e a grande maioria das árvores. Os prédios teriam um total de 232 unidades de habitação de interesse social, com 55m² cada apartamento. “E isso sem esgotar os parâmetros da lei dos 12 bairros (SRU3), que nortearam esse estudo e ainda permitiriam chegar a oito pavimentos”, diz o documento.
A carta aberta pede o fim do racismo ambiental na região – a expulsão dos moradores da Vila Esperança e mais um parque para a área nobre – e defende que a Vila Esparança e o parque não estão em nenhuma competição. “Ao contrário: é perfeitamente possível conciliar habitação de interesse social e áreas verdes de qualidade nesse mesmo terreno e, com isso, minimizar drasticamente o impacto sobre as famílias da Vila Esperança. Assim como seria possível modificar o projeto da ponte e poupar dezenas de casas, como é reivindicado desde o início. Basta que o norte da prefeitura seja a garantia de direitos e não de privilégios.”
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org