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A audiência pública para discutir a lei que vai definir como serão as construções no Recife já começou lotada no plenarinho da Câmara dos Vereadores. A equipe da prefeitura e seus aliados se prepararam bem para a ocasião: muito mais do que representações de bairros ou recifenses interessados em discutir as mudanças, a plateia era formada por comissionados de órgãos da prefeitura, funcionários terceirizados e movimentos sociais invariavelmente coordenados por pessoas alinhadas à prefeitura. Vestidos com camisa de botão e calça social, representantes do mercado imobiliário se somavam ao grupo de apoio.
Nesta quarta-feira (10), em mais de quatro horas de discussões sobre o futuro da cidade do Recife, os temas recorrentes foram a Lei dos 12 Bairros – alvo de muitos ataques e pouca defesa –, a criação de 16 novas Zeis, vista positivamente por todos, e abundantes elogios ao texto do projeto da nova Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) – aprovada por unanimidade no Conselho da Cidade –, ainda que poucos aspectos práticos tenham sido realmente discutidos na audiência.
A nova lei incentiva a exploração imobiliária em bairros como Boa Viagem e Pina, mas não se viu nenhuma organização ou morador pegar o microfone para fazer considerações sobre a zona sul — aliás, mal se falou nela. A apresentação e a discussão da prefeitura se fixaram muito mais em aspectos gerais – assim como foi feito na audiência pública no Teatro do Parque, em abril.
Também participaram vários técnicos ligados ao poder público elogiando a proposta da nova lei. Uma técnica do município disse que ficou tão entusiasmada com as mudanças que aprovou a minuta em apenas três dias — apesar de urbanistas já terem falado à Marco Zero que é uma lei complicada, com mapas recortados e muitas tabelas. Dois urbanistas da UFPE que trabalham no Recife Cidade Parque – que recebe recursos da Prefeitura do Recife – também pegaram o microfone na audiência para tecer elogios.
A presidente do Instituto Pelópidas da Silveira, Mariana Asfora, disse que estava feliz por ter ajudado a se fazer uma “lei de fácil compreensão”. Tão fácil que até semanas atrás nem o próprio Ministério Público sabia da revogação da Lei dos 12 Bairros. E foi somente ao analisar item por item que a arquiteta e urbanista Luciana Duque notou que os parâmetros urbanísticos da Lei dos 12 Bairros caíam por terra na nova lei. A partir daí, de três semanas para cá,começou um movimento para que isso seja revertido ou minimizado.
Talvez a contribuição mais prática na audiência foi a da professora da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) Amélia Reynaldo. Ela se mostrou preocupada que uma faixa de terra próxima à Rosa e Silva, que era do polígono da Lei dos 12 Bairros, vai agora permitir construções bem maiores. O mesmo vai acontecer em uma área perto da avenida Agamenon Magalhães e em outra na Tamarineira, já quase Casa Amarela, a partir da Rua Guimarães Peixoto e imediações.
A explicação de Amélia Reynaldo nos faz pensar em como teria sido didático e transparente se a Prefeitura do Recife tivesse apresentado essas mudanças com um mapa da cidade, projeções, vídeos e toda tecnologia hoje disponível para mostrar para a população o que realmente vai mudar. Isso não aconteceu ontem nem na única audiência pública realizada com a população.
O tema central da audiência, contudo, foi a habitação. Na tese que a prefeitura vem explorando desde quando começou a discutir essa nova legislação, o Recife precisa de mais moradias. Na visão da prefeitura, os 48 mil habitantes que deixaram a capital no intrevalo de 12 anos entre os dois últimos censos fizeram isso por falta de lugar digno e acessível para se viver por aqui. A solução? Construir mais e adensar mais.
A ideia da prefeitura do Recife é abrir as portas para que construtoras façam novos edifícios que possam ser financiados pelo programa Minha Casa, Minha Vida, da Caixa Econômica Federal. Em várias falas do secretário de Habitação Felipe Curry (PT) e do Secretário de Desenvolvimento Urbano e Licenciamento Felipe Matos (Republicanos) a habitação de interesse social foi colocada como o foco da nova LPUOS.
A vereadora Jô Cavalcanti (PSOL) e a promotora do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) Belize Câmara, contudo, apontaram que a minuta da lei não informa a faixa de renda que a prefeitura está mirando. Felipe Matos respondeu que isso não entrou na lei para seguir a faixa de renda da Caixa, citando a faixa 1, 2 e 3 do MCMV. Belize, então, lembrou que a faixa 3 vai até R$ 8 mil de renda mensal, o que pode abranger a classe média recifense – que não deveria ser o foco da habitação social.
O secretário respondeu que se uma família que vive com R$ 8 mil é considerada classe média, então ela “vive muito indignamente” e depois emendou que o salário mínimo para o Dieese deveria ser de mais de R$ 7 mil.
Por diversas vezes, Matos citou faixa 1, 2 e 3 do Minha Casa, Minha Vida, não mencionando que em maio deste ano entrou em vigor a faixa 4 do Minha Casa, Minha Vida, que permite financiamento para famílias com renda de até R$ 12 mil. Em outra fala, disse que a habitação popular era para “todas as famílias”.
De acordo com o último Censo, 38% da população recifense sobrevive com meio salário mínimo por mês. Recife possui 295 favelas, com 361.548 moradores, o que representa 24,28% da população recifense. Ou seja, não colocar uma faixa de renda é dar oportunidade de o mercado imobiliário construir tão somente para as faixas 3 e 4, que têm mais poder aquisitivo.
Em um desenrolar aparentemente orquestrado, não demorou muito para que a Lei dos 12 Bairros virasse a grande vilã da construção de habitacionais. Como se fosse unicamente a lei — e não todos os determinantes históricos, econômicos e sociais — que impedisse que a população mais pobre morasse em bairros com boa infraestrutura.
Representante do setor imobiliário, o arquiteto Sandro Guedes afirmou que quem se posiciona contra a Lei dos 12 Bairros o faz por medo porque, com a nova lei da prefeitura, vai ter Minha Casa, Minha Vida em bairros nobres do Recife. “Eu não digo que se corre o risco, eu digo que vai acontecer Minha Casa, Minha Vida em Casa Forte, Minha Casa, Minha Vida em Boa Viagem e Minha Casa, Minha Vida na rua da Aurora”, afirmou, entre um e outro elogio à nova legislação.
Na sequência, o militante Davi Lira, do Movimento de Luta por Teto, Terra e Trabalho (MLLT) – organização que ocupou o colégio Americano Batista, imóvel pertencente ao Governo de Pernambuco – pareceu seguir o mesmo roteiro ao irromper ao microfone dizendo que “vai ter pobre morando em Boa Viagem! pobre morando nas Graças! pobre morando na Jaqueira!”. Algum incauto que entrasse naquele momento no plenarinho poderia até pensar que a lei defendida por Davi, ex-candidato a vereador de Jaboatão dos Guararapes pelo PSB, teria a capacidade de abolir a propriedade privada.
Logo depois, Felipe Matos foi mais modesto. Afirmou que vislumbra, sim, ter Minha Casa, Minha Vida nos bairros do Jiquiá e no Bongi. No entanto, talvez tenha se empolgado com a fala anterior do militante, e foi além. “Vai ter Minha Casa, Minha Vida na rua Aurora”, disse, repetindo o que Sandro Guedes havia dito ao anunciar a existência de um projeto pronto para a rua. Vamos aguardar e ver para qual faixa do MCMV ele será.
Curiosamente, um dos vereadores que defendeu a Lei dos 12 Bairros foi o bolsonarista Eduardo Moura (Novo). Mas o fez tão somente para se contrapor à prefeitura de João Campos (PSB), à qual faz oposição. O vereador ficou no plenarinho até fazer sua fala – ou melhor, seu corte para as redes sociais – e foi embora. Ainda usou do seu pouco tempo para ofender o secretário Felipe Matos – dizendo que ele seria melhor como secretário de propaganda, já que falava “muitas mentiras”.
Diante da oposição rarefeita, o discurso ao longo da audiência foi mudando notavelmente. Se, no começo, os representantes da prefeitura chegavam até em cogitar “mais tempo para debater”, lá pelas 13h o secretário Felipe Matos se dirigiu a um representante de uma comunidade no Rosarinho — que reclamou que a prefeitura do Recife estava ameaçando retirar os moradores para fazer uma rua – dizendo que ele deveria era torcer para a nova LPUOS ser aprovada logo, porque aí o local viraria uma Zeis, e não não haveria despejo. Aqui, vale relembrar as reportagens que a Marco Zero fez sobre a Vila Esperança, Zeis despejada para a construção de uma ponte. Matos também disse que ficou aflito ao ler nesta semana que um casarão nas Graças havia sido demolido, pensando que poderia ser um dos que estão inclusos na proteção da nova lei.
O prazo para que os vereadores sugerissem emendas ao PL da prefeitura já terminou. Há dezenas delas a serem discutidas e analisadas pela comissão – o que ainda pode mudar bastante a LPUOS, para melhor e para pior. Com associações de bairros enfraquecidas ou cooptadas, a discussão da lei passou longe da sociedade. Uma pequena parcela só nas últimas semanas se atentou às mudanças, talvez tarde demais. Para a coordenadora da Lei dos 12 Bairros, a professora da UFPE Norma Lacerda, Felipe Matos disse que algumas mudanças poderão ser revistas. A aguardar. A comissão especial da Câmara que cuida deste projeto de lei – presidida pelo vereador Eduardo Mota, também do PSB – deve se reunir novamente na próxima semana.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org