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Acolhimentos presencial e remoto falham

Marco Zero Conteúdo / 08/10/2020

Ilustração: Thiko Duarte

É nos centros de referências que as vítimas são bem atendidas, mas falta recursos e reconhecimento

Por Joana Suarez

Foram cinco horas de espera com Gisele*, de 27 anos, na porta da Delegacia da Mulher, no Centro do Recife, até que ela registrasse o boletim de ocorrência contra um ex-namorado que havia voltado a lhe perseguir na pandemia. A unidade geralmente tem filas diárias de mulheres, mesmo durante o isolamento social por causa da Covid-19. Eram cerca de 20 pessoas na tarde de agosto em que fomos com ela e havia dois policiais atendendo.

Gisele separou-se do namorado em novembro de 2019, após dois anos de um relacionamento que ela só percebeu ser abusivo ao fim. Esse término se deu quando ela pintou o cabelo de loiro e foi, toda arrumada, sair com ele, mas o rapaz não gostou e aquela noite acabou com Gisele ensanguentada. Apanhou, foi arrastada para fora do carro, puxada pelo cabelo e levou um mata-leão. Um trauma que Gisele gagueja muito recontando.

Mas ela precisou narrar essa história em uma delegacia novamente meses depois porque da primeira vez não resultou em Medida Protetiva de afastamento do ex. Em maio, ele ligou de um número desconhecido: “Era para a gente estar juntos agora nessa quarentena”. Bastou Gisele ouvir isso para reativar o medo.

O agressor nunca aceitou o fim, na verdade, continuou vigiando a vida dela, retomando insultos e ameaças. Chegou a ligar 10, 20 vezes uma madrugada, “me chamando de rapariga, dizendo que estou com vários caras, perguntando porque mudei de emprego, sabe até as festas que estou indo”, relata Gisele ao policial, que registra a queixa como perturbação. Em seguida, precisa repetir para a escrivã na delegacia, responsável pela solicitação de nova Medida Protetiva.

Bem acompanhada

A advogada popular Margareth Senna acompanha Gisele na delegacia para garantir que a denúncia surta efeito, que a vítima entenda tudo e possa instruir outras mulheres. Aproveitou o chá de cadeira na porta da unidade para orientar Gisele sobre a narrativa do registro.

“Nem sempre os policiais nas delegacias estão preparados para atender a vítima como deveriam, percebendo o medo e o discurso social machista que impera sobre as mulheres”, ponderou Margareth. “Você precisa dizer exatamente o que aconteceu, usar as palavras que o agressor usava e não se culpar por nada”, falava a advogada, ouvindo de Gisele: é difícil, parece que quando a gente fala vira realidade”.

A vítima não conseguia repetir os palavrões e quando começava a explicar o que estava acontecendo amenizava o lado do agressor. “Ele diz que me ama, que quer voltar, aí quando digo que não quero…” – nesse ponto ela justifica o porquê de ele iniciar as ameaças – “…ele não aceita, fica nervoso e me xinga”. 

“A linguagem muda tudo, ela estava defendendo o agressor”, indicou Margareth. E as orientações da advogada, que milita pelo fim da violência contra mulheres há dois anos foram fundamentais naquele momento. Gisele já teria desistido da queixa. A demora deu tempo de pensar se o que estava fazendo prejudicaria a vida do ex-namorado ou mesmo tornaria as agressões piores para ela.

Margareth explica todos os direitos que ela tem de viver em paz. A lei Maria da Penha prevê há 14 anos esse dispositivo de Medida Protetiva para garantir o afastamento de homens que veem mulheres como objetos de posse eterna.

Margareth explica todos os direitos a vítima. Crédito: Joana Suarez/MZ Conteúdo

Pela tela

Se, presencialmente, acolhida por uma advogada, uma mulher pensa em desistir da queixa, como um boletim de ocorrência (BO) feito pela internet pode resolver algo? Margareth Senna é direta, “não vai adiantar muita coisa”. Não há busca ativa dessas vítimas, sugere a advogada pernambucana, e a Medida Protetiva, que poderia garantir o fim da violência imediata, não pode ser feita pelo computador, a não ser que seja um advogado do outro lado da tela.

Experimentamos preencher esse documento virtual mas, além de muitas etapas de leituras extensas, que se você parar por 10 minutos sai do ar, a escrita com o relato sobre o que ocorreu torna-se ainda mais desafiadora do que a fala.Mas foi essa a solução apresentada nacionalmente na pandemia pelas autoridades policiais: incluir o registro da violência doméstica na lista de queixas online. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma recomendação aos Estados para disponibilizar esses registros eletrônicos.

Em Pernambuco, 48 mulheres utilizaram a Delegacia pela Internet para denunciar crimes de injúria, calúnia e difamação, dentro do contexto da violência doméstica e familiar, entre maio (quando o serviço começou a ser disponibilizado) e agosto. Em contrapartida, presencialmente, 12.527 BOs foram registrados no Estado, no mesmo período.

Queixas relacionadas a agressões físicas ou sexuais não estão disponíveis online em Pernambuco, por demandarem perícias médicas. Conforme a Secretaria de Estado de Defesa Social (SDS-PE), todos os boletins são distribuídos a delegados do Departamento de Polícia da Mulher para que procedam às investigações.

Os complicadores dessa medida iniciam pela falta de conexão com internet de grande parte das mulheres. Cerca de 70 milhões de brasileiros têm acesso precário ou não têm, conforme a pesquisa TIC Domicílios 2018, do departamento do Comitê Gestor da Internet no Brasil.

“(Os BOs eletrônicos) são vendidos como uma panaceia. As mulheres não podem sair para fazer denúncia então a gente leva a denúncia até elas”, criticou a socióloga Wânia Pasinato, especialista em gênero e enfrentamento à violência. E ela questiona mais: “O que passa na cabeça das pessoas que oferecem um boletim eletrônico para uma mulher que está sofrendo violência e convivendo 24 horas com seu agressor em casa?”

Dependendo do Estado, cita Wânia, só se aceita a denúncia virtual para crimes de ameaça. Outros aceitam para lesão corporal, diz, mas não tem como anexar documentos e, dias depois do boletim eletrônico, a vítima é chamada para comparecer na delegacia, problematiza a socióloga.

“É uma resposta que vem no modo automático, de que a violência contra a mulher é crime, tem que ser denunciada à polícia e, assim, todo o problema se resolve”.

Escuta e amparo

Por várias vezes, as próprias delegacias encaminham as vítimas para o Centro de Referência da Mulher (CRM) dos municípios, pois identificam a necessidade de atendimento psicológico, por exemplo.

“A solidão é uma característica da mulher que sofre violência doméstica e sexista, porque ela sente vergonha”, afirmou Glauce Medeiros, socióloga e secretária da Mulher do Recife, que defende mais investimentos no CRM, como também em ações e campanhas que divulguem o que são os relacionamentos abusivos. “É onde a violência começa. Mas a gente vive um desmonte nacional das políticas públicas para mulheres hoje”, concluiu.

Quem trabalha com vítimas de violência não tem dúvida: o que, realmente, essa mulher precisa é acolhimento, escuta e orientação. Algo que robôs não conseguem fazer. Os CRMs, com suas equipes multidisciplinares, sim. A assistente social Rejane Santos sente falta dos abraços que dava ao final dos atendimentos, muitas vezes a pedido da vítima. Com as medidas de prevenção contra o coronavírus, ficaram prometidos para depois. Ela compõe a equipe do Centro de Referência Maria Purcina, no Cabo de Santo Agostinho, Região Metropolitana do Recife.

“Receber de máscara ficou muito impessoal, mas não deixamos de atender de jeito nenhum”, disse Rejane. Lá, foram recebidas, até julho deste ano, 46 mulheres. Muito menos do que as 287 vítimas nos 12 meses de 2019.

“A gente ficou de plantão. Se uma mulher foi atendida já valeu à pena. Quem é do movimento (pela mulheres) vai até o fim”, afirmou a secretária executiva da Mulher do Cabo de Santo Agostinho, Dalvanice Nascimento. Ela nunca esqueceu quando um gestor alegou que estava gastando muito dinheiro para determinada casa de acolhimento de mulheres. “Respondi que não tem preço salvar a vida de uma mulher, fora as crianças (filhos)”.

Sem apoio

As estruturas dos centros de referência da mulher são mantidas com verbas apenas dos municípios, geralmente, sem suportes estadual e federal, o que inviabiliza muitas vezes que as prefeituras providenciem essas unidades.

Há cerca de 10 anos, o Governo Federal ofereceu recursos para a criação dos centros de atendimento às vítimas nas cidades, mas a manutenção do espaço e da equipe seriam da gestão local. “Apenas os municípios mais avançados, que acreditam que isso é muito importante, implantaram”, considerou Dalvanice. Esse foi o caso do Maria Purcina, no Cabo, que em 2010 recebeu cerca de R$ 40 mil para estruturação.

Nos últimos seis anos, não houve mais aportes federais para esses centros, conforme coordenadoras e secretárias da Mulher ouvidas pela reportagem em Pernambuco.

Emergencial

Dinheiro, ou a falta dele, também é um fator determinante individualmente para as mulheres. Juntamente com o discurso religioso e os filhos, são motivos que aparecem com frequência nos relatos das vítimas para postergar a saída do ciclo de agressões.

O auxílio da Covid-19 – de R$ 600,00 ou até R$ 1,2 mil para mulheres que criam filhos sozinhas – aumentou o valor que muitas recebiam pelo Bolsa Família e possibilitou que algumas delas conseguissem independência financeira para afastamento do agressor. Seis milhões de mulheres chefes de família receberam o benefício emergencial do governo federal para proteção e enfrentamento à Covid-19.

Uma vítima atendida no CRM Maria Purcina, em junho, conseguiu alugar uma casa com esse dinheiro e saiu de perto do marido agressor. O repasse, no entanto, iria acabar e a mulher ainda não sabia o que faria depois disso.

Reincidentes

Ainda há muitos dados a serem analisados nesses meses de pandemia sobre o comportamento da violência doméstica, com diversos recortes necessários. Mas já é perceptível o volume de descuprimentos de medidas protetivas e reincidências (das agressões), afirmou Avani Santana, coordenadora do Centro de Referência da Mulher Clarice Lispector, no Recife.

“Sete em cada 13 mulheres que chegavam aqui (no CRM recifense) reportaram descumprimento, mas ainda não fechamos esse levantamento”, disse ela. No dia em que entrevistamos Avani na unidade, tinham cinco mulheres no setor jurídico e três comunicavam a reaproximação de agressores com medida protetiva.

Abrigo

No Rio Grande do Norte, os registros de violência doméstica no Estado mais do que dobraram: passaram de 946 para 2.000, entre março e setembro de 2019 e 2020, respectivamente. “Os novos pedidos de medidas protetivas de urgência aumentaram”, constatou a promotora da mulher Érica Canuto (que ainda não tinha o dado finalizado em agosto).

Na casa abrigo Clara Camarão, em Natal, que é de alta complexidade (com mulheres em situação de violência e risco iminente de morte), as acolhidas e seus filhos precisaram se manter por mais tempo que o normal na pandemia.

Ana Cláudia Mendes, diretora do departamento de Enfrentamento à Violência Doméstica de Natal, não sabe dizer em números ou dias, mas avalia que as condições de retorno delas para o lar ficaram mais complicadas nesse período, “pela própria necessidade de isolamento social tanto da vítima quanto do agressor”.

As unidades de Natal – a casa abrigo e o Centro de Referência da Mulher Elizabeth Nasser – são as únicas que acolhem [e salvam] vítimas de violência no Estado inteiro, e sustentadas com verbas municipais. “O recurso é insuficiente”, conclui Ana Cláudia.

Esta reportagem faz parte da série “Um vírus e duas guerras”, que vai monitorar até o final de 2020 os casos de feminicídios e de violência doméstica no período da pandemia. O objetivo é visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil. Ela é resultado de uma parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, sediada no Amazonas; #Colabora, no Rio de Janeiro; Eco Nordeste, no Ceará; Marco Zero Conteúdo, em Pernambuco, Portal Catarinas, em Santa Catarina; AzMina e Ponte Jornalismo, em São Paulo.

Em Pernambuco são quatro casas abrigo, a Marco Zero já fez matéria sobre o funcionamento delas:

*Nome fictício

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