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Com 14 anos de atraso, Suape começa a retirar barreira que destruiu manguezal do rio Tatuoca

Raíssa Ebrahim / 11/08/2021
Suape canal de mangue fechado pelo porto

Crédito: Débora Britto/MZ Conteúdo

Uma luta de quase 14 anos. Esse foi o tempo que a comunidade quilombola Ilha de Mercês, em Ipojuca, litoral sul de Pernambuco, esperou para que o Complexo Industrial e Portuário de Suape começasse a retirar a barreira que bloqueou o fluxo do rio Tatuoca e asfixiou o ecossistema local para dar lugar a uma estrada. A via foi usada para levar materiais e máquinas para construir o Estaleiro Atlântico Sul.

O barramento ou enrocamento, como também é chamado, era para ter durado cerca de um ano apenas, mas durou o tempo da omissão socioambiental do empreendimento. E foi mais do que suficiente para degradar o manguezal e levar junto a fonte de sustento de mais de 200 famílias. Agora, Suape finalmente deu início à retirada de parte da pista e liberação do rio.

As três únicas passagens do Rio Tatuoca após construção da estrada (crédito: Clemente Coelho)

A previsão é que a obra, que começou esta semana, libere cerca de 30 dos 180 metros totais do barramento, que só permitia a passagem da água de um lado para o outro da estrada através de três bueiros, insuficientes para manter o manguezal vivo. Ainda não é o que pede a população, que segue brigando pelo desenrocamento total, mas o anúncio está sendo considerado um começo.

Para Magno Araújo, liderança quilombola, o sentimento é de uma pequena vitória e de dever cumprido após tantos anos de luta. “Tivemos uma parcial vitória, visto que o rio não vai ser aberto 100% este ano. Tem muita coisa pela frente ainda para acontecer. A gente só vai estar com a vitória 100% quando tiver o rio totalmente aberto e o mangue estiver sendo restaurado”, reforça. Ele frisa que a presença do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União (DPU) são essenciais nas cobranças dos órgãos regulamentadores.

População protesta em audiência pública na DPU Recife (crédito: Rafael Negrão/comunicação Fórum Suape Espaço Socioambiental)

Nesta terça-feira, 10 de agosto, aconteceu uma audiência pública convocada pela DPU no Recife, por iniciativa da defensora regional substituta de direitos humanos em Pernambuco, Maíra de Carvalho Pereira Mesquita. A população ribeirinha e quilombola marcou presença levando cartazes de protesto.  

Prejuízos incalculáveis

Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo

Pode até ser difícil calcular em números todos os prejuízos. Mas eles ficam evidentes no sofrimento da população, que viu peixes e crustáceos se acabarem junto com o manguezal. Antes, as pessoas pescavam na porta de casa, onde havia bastante unha de velho, sururu, marisco, ostra. Hoje não sobrou quase nada, a pesca diminuiu tanto em quantidade quanto em variedade, limitando-se a um pouco de caranguejo, peixe e aratu. Ir para dentro do mar é uma opção cara demais, além de ser uma outra cultura pesqueira, com técnicas e instrumentos específicos.

“A gente não chegou a um acordo em papel dizendo que a gente queria 32 metros não. A gente queria o rio todo aberto de vez”, disse Marinalva Maria da Silva, pescadora da Ilha de Mercês na reunião desta terça, 10 de agosto. Ela até lembrou que o anunciado inicialmente seriam 34 metros.

“Suape é o terror de lá, já massacrou. E sobre Suape dizer que está preocupada sobre o que vai causar à gente, eu não confio em nada que saia de Suape, porque Suape já pisou demais, já humilhou demais”, protesta. “Quando ele mostra aí a metade das coisas que está morta, ele nunca mostra uma área de mangue que tem lá que está morta. É de se perder de vista o mangue seco que tem. Os caranguejos morrem, os aratus morrem. Por que não mostra isso?”, provoca, em fala direcionada ao diretor de de meio ambiente e sustentabilidade de Suape, Carlos André Cavalcanti. 

“Embora não seja ideal, é uma vitória de uma luta de muitos anos. Antes tarde do que nunca, antes 32 metros do que nada. Vai ser um respiro”, avalia Mariana Vidal, advogada do Fórum Suape. Ela reforça a fala de Marinalva sobre o desenrocamento parcial ter sido uma “imposição”, e não um acordo. 

A advogada lembrou ainda que, em 2020, Suape se negou a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que tornaria oficial um acordo que vinha sendo construído e em que haveria uma pactuação para a abertura parcial, com monitoramento, seguida da reabertura total. “A negativa de Suape em assinar o TAC impediu que houvesse processo de participação no monitoramento ambiental. Como isso vai acontecer?”, questiona. “Seria ideal que a comunidade tivesse participado dessa metodologia. É preciso haver também uma comissão de pescadores e pescadoras acompanhando essas obras e esse monitoramento”, reforça. 

Na ocasião, o diretor Carlos Cavalcanti falou sobre os detalhes da obra de desembarreiramento e explicou que, somente após o monitoramento ambiental dessa liberação inicial, é que será avaliada a viabilidade da obra completa.

“Fizemos uma consulta à CPRH (Agência Estadual de Meio Ambiente) e ela estabeleceu que, nessa primeira etapa, faremos o vão de 32 metros. Não haverá mais trânsito nessa área, não haverá nenhuma estrutura de ponte ou qualquer obra para interligar o porto organizado à Ilha de Tatuoca”, garantiu o diretor. “A partir de 2022, da avaliação dessa obra atual, vamos fazer uma proposta para retirar o que aponta o EIA Rima (Estudo de Impactos Ambientais). Esse monitoramento é pré, durante e pós-obra, e vamos mandar isso para a DPU”, assegurou Carlos.

Os argumentos da liberação parcial

Vista áere da barreira (crédito: Clemente Coelho)

A Marco Zero entrou em contato com a CPRH para saber se Suape chegou a solicitar à agência a licença para executar o desenrocamento total e também para saber se foram apresentados estudos que comprovem se o desembarreiramento pode provocar danos ao ecossistema. Porém, a reportagem ainda não obteve retorno. Durante a audiência pública, foi dito que esse é um dos motivos para execução apenas da obra parcial nesse primeiro momento.

A coordenadora do gerenciamento costeiro da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, Andréa Olinto, defende que é “fundamental acompanhar e avaliar a evolução dos processos atuantes e suas tendências evolutivas na área”. Isso porque o cenário hoje está bem diferente do de antes do barramento do Rio Tatuoca. A região costeira mudou bastante na última década e passou por processos de erosão e sedimentação.

Após a abertura parcial, diz Andréa, será restabelecida parte do fluxo hidrodinâmico e, a partir daí, é preciso monitorar como a região irá responder. “Se houver alguma modificação significativa e não prevista das condições ambientais, deverão ser implementadas as medidas corretivas necessárias, além de indicar a possibilidade da abertura total do enrocamento”, resume.

Na avaliação do professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Pernambuco (UPE), Clemente Coelho, que vem acompanhando a questão há vários anos, começar nos 32 metros para depois abrir tudo “é um passo grande” e “vai permitir que o ecossistema respire”. Integrante do Instituto Bioma Brasil, ele recorda a demora nessa iniciativa, que estava prevista desde o licenciamento do enrocamento.

Clemente também lembra que a área está dentro da lei autorizativa de supressão de mangue. A previsão era que o território virasse bacia de navegação. Mas o investimento não aconteceu até o momento, o complexo passou por uma forte desaceleração de investimentos nos últimos anos. O manguezal da região era tido, até então, como “área de sacrifício”, em prol do crescimento e da atração de negócios.

Sobre a recuperação do ecossistema, o professor explica que é possível. “A restauração dos manguezais é do tipo hidrológica, quando a maré entra no ambiente novamente. Ainda há vegetação no local, então o próprio retorno da maré restabelece o ecossistema”, detalha. Esse processo leva tempo, em torno de dez a 20 anos.

Na próxima segunda, 16 de agosto, haverá uma nova reunião pública em que Suape terá que explicar os detalhes da obra e de como se dará o processo de monitoramento e reavaliação durante e após o serviço iniciado nesta semana. A população ribeirinha presente na primeira audiência cobrou mais informações e maior participação nesse processo.

Em nota, a direção do Porto de Suape informou que irá aguardar o resultado final da audiência pública para se pronunciar definitivamente sobre o assunto, quando terá a oportunidade de fazer a apresentação do processo de desenroncamento. Suape também reiterou “que vem cumprindo, rigorosamente, com o cronograma de monitoramento ambiental antes e durante as obras no estuário do Rio Tatuoca, cujos serviços foram iniciados no último dia 9, em conformidade com o que ficou acordado com as partes envolvidas no processo”.

Suape pelo Avesso
AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com